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O DESIGN DA HISTÓRIA DO DESIGN
MÁRIO MOURA
Quando fala da "Colecção D" Jorge Silva costuma lamentar com ironia que com estes livros está a fazer publicidade à concorrência, promovendo colegas, vivos ou mortos, construindo os seus portfolios e apresentando-os a um público, dando a entender que com isso se dedica mais ao trabalho deles do que ao seu próprio. É uma boca, claro, porque esta colecção tem muito do toque do próprio Silva. É significativo, por exemplo, que nas capas não haja reproduções do trabalho de cada um dos designers apresentados mas ilustrações tipográficas dos seus nomes, dando uma unidade, um estilo, à colecção que seria difícil de conseguir de outro modo. Mesmo a selecção e apresentação das obras ficam a dever muito à prática de Silva como director de arte, embora aqui não se trate apenas de gerir ilustradores, designers e editores [1] mas a obra já feita, por vezes encerrada pela morte, de outros designers. Se a direcção de arte exige muita estratégia e jogo de cintura, lidando por um lado com ilustradores, designers, e, por outro, com editores, escritores ou jornalistas, para quem o lado visual dos conteúdos não é assim tão importante, podendo mesmo ser sacrificado a outras prioridades, a história do design apresenta também os seus perigos, os seus egos e as suas negociações.
Recolher a obra de certo designer, por exemplo, parece uma tarefa simples, o esforço de ir encontrando tudo o que assinou ao longo dos anos. Porém, esse trabalho foi concebido ao serviço de clientes como resposta a necessidades específicas. Em muitos casos, foi feito para criar a identidade de pessoas, empresas, instituições ou até de eventos, através de um sistema de símbolos a que habitualmente se chama identidade gráfica. Reunir numa antologia os trabalhos de um designer equivale a dizer que essas identidades não pertencem apenas a quem as pagou e as usa, mas que foram de algum modo emprestadas a prazo por quem as fez, pelo próprio designer. Ou seja: que ele não serviu inteiramente os interesses do cliente mas os seus próprios.
Talvez por isso ainda seja comum acusar-se os livros que certos designers fazem sobre si próprios de auto-promoção mais ou menos descarada. Mas (claro está) o sacudir reprovador de cabecinhas não impede uma autêntica avalanche destas publicações, sejam elas produzidas de maneira mais ou menos disfarçada pelos próprios designers, sejam catálogos de exposições retrospectivas, sejam incluídas dentro de uma série.
Se a Colecção D fica a ganhar em relação a outras iniciativas do género é precisamente na unidade e elegância do seu tratamento gráfico e no modo discreto como apresenta estes designers e o seu trabalho, num formato modesto, portátil e relativamente barato, que encaixa bem dentro de um dos modelos mais típicos da publicação sobre design, a monografia, onde se apresenta uma sucessão de imagens da obra atribuída a um designer ou colectivo de designers, comentada através de legendas e de uma introdução mais ou menos breve.
O seu modelo assumido é a colecção francesa Designer&Design, editada pela Pyramid e contando já com algumas dezenas de títulos, incluindo um sobre o estúdio português Barbara Says [2], mas há diferenças subtis entre as duas colecções, em particular no modo como representam os designers. Na colecção francesa, a capa mostra habitualmente um exemplo do trabalho do designer e uma imagem fotográfica dos seus olhos dividida por uma banda colorida com o seu nome. Na primeira badana, surge uma fotografia mais completa do designer acompanhando uma curta nota biográfica. Na colecção D, como já se referiu, a capa é ocupada por uma ilustração tipográfica do seu nome e a fotografia do autor aparece apenas na última página do livro, como se só através da sua obra fosse possível finalmente ter acesso à identidade do seu designer. Comparando as duas abordagens percebe-se que, no caso português, se tenta evitar o “culto do herói”, subordinando cada um dos designers a uma linguagem de série.
Com três livros publicados no espaço de um ano, sobre o estúdio R2, sobre Vítor Palla e sobre Pedro Falcão, estando previstos para breve volumes sobre Fred Kradolfer ou Paulo Guilherme, já é possível observar certos padrões editoriais. Em primeiro lugar a ideia que é possível usar o nome de um designer ou de um estúdio como uma certa unidade para explicar a coerência de uma obra que foi – como já se viu – feita ao serviço de terceiros, por vezes à custa de muita negociação. Seriam possíveis, como é óbvio, outras unidades como a década, a escola, o estilo, o formato, etc. E, no caso de nomes mais clássicos, mesmo chamar-lhes “designers” pode ser arriscado, tendo em conta que os seus livros, revistas, logótipos, cartazes ou embalagens eram muitas vezes apenas uma pequena porção do que faziam enquanto arquitectos, decoradores, escritores, cineastas. Basta ver como Vítor Palla, arquitecto de formação, tão depressa fazia a capa ou o arranjo gráfico de um livro, como o projecto e decoração de um snack-bar. Decidir o que é ou não é a sua obra enquanto designer é uma decisão crítica em larga medida retroactiva, que pode cair facilmente no anacronismo de ver design e designers quando ainda não os havia, um erro comum que é encorajado pela vontade de legitimar a disciplina atribuindo-lhe um passado longo, dizendo que sempre existiu, etc. Só um trabalho cuidado, não apenas de recolha, mas também de interpretação pode evitar estas tentações.
Um outro padrão editorial, mais evidente, é a alternância entre nomes históricos, consagrados, e designers mais recentes, também eles não exactamente desconhecidos. Entre uns e outros, é possível confirmar que o reconhecimento, dentro do design português, cumpre quase sempre certos requisitos, que não se limitam apenas à qualidade formal, mas também aos temas e clientes, que se centram quase sempre na esfera cultural, o que é plenamente visível nos designers mais recentes, tanto os R2 como Pedro Falcão, mas também na selecção da obra de Vítor Palla, que se limita sobretudo às suas capas de livro, com poucas excepções – os já mencionados Snack-Bars e uma embalagens solitária de adesivos. Haverá sem dúvida quem se queixe desta tendência, perguntando se não valerá também a pena mostrar a obra de designers que trabalham mais frequentemente para o comércio ou para a indústria, mas para o responder será necessária uma discussão sobre os mecanismos que inscrevem a obra de um determinado designer na história enquanto condenam a de outros ao esquecimento – no fundo, uma reflexão sobre o cânone do design português e as suas características.
Se esta discussão existe, tem-se limitado em larga medida aos circuitos de investigação académica em torno do design gráfico – comunicações, teses e encontros – que pecam pelo seu pouco alcance, mesmo entre a própria comunidade académica. Pouco se sabe sobre o que foi ou está a ser feito sobre determinado assunto ou designer. Em alguns casos, a obra de um designer mais ou menos desconhecido é patrulhada implacavelmente por um grupo reduzido, que a vê como sendo sua, limitando o acesso aos não-iniciados. Assim, se há muita coisa a ser investigada e escrita sobre alguém relativamente consagrado – como Vítor Palla, por exemplo –, seria difícil para o comum dos mortais ter uma ideia de com que se parece a sua obra se não fossem iniciativas laicas e despretensiosas como a Colecção D, que compilam de um modo atraente e democrático a obra de designers, trazendo-a finalmente a público.
NOTAS
[1] A Colecção é um trabalho colectivo do atelier Silvadesigners, com a colaboração de escritores, críticos e investigadores académicos, entre os quais eu mesmo (declaração de interesses).
[2] Nova declaração de interesses: prefaciei esse livro.