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EIJA LIISA AHTILAEija-Liisa Ahtila: une rétrospectiveJEU DE PAUME (CONCORDE) 1, place de la Concorde 75008 Paris 22 JAN - 30 MAR 2008 EIJA-LIISA AHTILA: A psicologia em situaçãoA auto-denominada criadora de “dramas humanos”, Eija-Liisa Ahtila, deitar-se-á até final de Março no divã do Jeu de Paume para um check up – co-produzido pelo K 21 Kunstsammlung Nordrhein-Westfalen (Düsseldorf) – que, à guisa de retrospectiva, passará em revista uma parte substancial do trabalho produzido pela artista finlandesa desde 1992 até ao presente. A mostra, que não é exaustiva, compreende seis instalações vídeo, duas séries fotográficas e um conjunto de quatro esculturas, deixa de fora algumas obras emblemáticas – como “Anne, Aki and God” (1998), “The Present” (2001) ou “The Wind” (2002) –, mas apresenta, em contrapartida, um trabalho inédito – “Where is Where?” (2008) – produzido especificamente para a presente exposição, num esforço de adaptação da linha de pesquisa que tem vindo a ser desenvolvida por Ahtila ao contexto social e político francês. As questões – formais e temáticas – que caracterizam essa pesquisa são (literalmente) anunciadas à entrada da exposição numa reformulação de “Me/We”, “Okay” e “Gray”, trilogia realizada em 1993 para um projecto expositivo em Helsínquia, Estocolmo e Moscovo, constituída por curtíssimos filmes de ficção (com duração de 90 segundos cada), concebidos para serem emitidos pelos canais de televisão nacionais dos três países nos intervalos da programação regular. Adoptando a linguagem que caracteriza a publicidade televisiva – directa, compacta, fragmentária e repetitiva, onde a exploração de emoções e fantasmas está ao serviço de uma eficácia comunicativa – para falar de questões do domínio da psicologia – como a desintegração da identidade, as fronteiras entre o “eu” e o “outro”, a vulnerabilidade, o amor, o ciúme, a sexualidade ou o sentido da realidade –, estes filmes propõem uma relação de consignificatum entre desajustamentos formais e perturbações mentais, colocados num mesmo plano de problematização que tende para uma homologia do tema, do discurso e da recepção. Organizada num percurso definido que se inicia com o trabalho inédito (“Where is Where?”) e se conclui com “The Hour of Prayer” (2005), a exposição impõe um trajecto que vai da correlatividade do psíquico e do político (o papel social) até à subjectividade autobiográfica (a identidade pessoal). “Where is Where?”, instalação composta por seis projecções vídeo, dramatiza um facto real ocorrido no final dos anos 50, durante a Guerra da Argélia. Trata-se do assassinato de uma criança francesa por dois dos seus colegas argelinos. O filme, baseado em textos do psicanalista e militante anti-colonialista Frantz Fanon sobre os traumas de guerra, começa por reconstituir as circunstâncias do esfaqueamento da criança, para, logo de seguida, tentar compreender as motivações desse acto. Desdobrado em quatro projecções contrapostas numa sala quadrangular (reproduzindo, desse modo, a multiplicação de pontos de vista sobre um mesmo acontecimento) e enquadrando a representação num dispositivo manifestamente teatral (num efeito de distanciação relativamente ao que é apresentado), o relato assume então a forma de um interrogatório. As crianças argelinas explicam ter morto o colega, com quem habitualmente brincavam, em resposta às mortes provocadas entre os seus concidadãos pelos soldados franceses. O problema inicial, do entendimento da morte e do assassinato pelas crianças, é assim complexificado, ampliando-se a uma interrogação sobre as figurações do colonialismo, da guerra e da nacionalidade no imaginário (e no comportamento) infantil. “The Hour of Prayer”, filme que se desenrola num alinhamento panorâmico de quatro projecções vídeo, é o único trabalho claramente autobiográfico de Ahtila onde procura um sentido para alguns dos episódios que marcaram a sua vida pessoal durante o ano de 2004. Se, no seu trabalho, Ahtila tende a desconstruir a cronologia e a causalidade dos acontecimentos procurando estruturá-los com base noutros princípios (emocionais, estéticos ou linguísticos: quebrando a sequência lógica da narração, introduz uma interpretação cubista da realidade que enfatiza a percepção em detrimento da causalidade), as ocorrências em que se viu envolvida no período em questão afiguraram-se-lhe encadeadas: “como um colar de pérolas, cada acontecimento determinava e explicava o seguinte”. Contada por uma narradora (alter-ego da artista) que, num estilo marcadamente televisivo, se dirige directamente à assistência para revelar a dimensão espectacular do seu discurso e potenciar o sensacionalismo da situação (sublinhados tanto pelo tom da narrativa como pela banda sonora), a história remete para aquilo que os psicólogos designam por “pensamento mágico”, fixando, ao mesmo tempo, um padrão de “rimas” que encontrará ressonâncias e desdobramentos ao nível da estrutura da exposição. Luca, o cão da artista, sofre um acidente e parte uma pata. Como a fractura demora a sarar, os médicos descobrem que Luca tem um cancro ósseo e que lhe restam poucos meses de vida. Confrontada com a notícia, a artista reza para que o cão sobreviva pelo menos até ao Verão. É Inverno e a vista, a partir da janela do quarto, das ruas de Nova Iorque cobertas de neve acentua o seu sofrimento. A 11 de Agosto Luca morre. Para se refazer da morte, a artista pensa na possibilidade de fazer uma residência artística no Benim onde existe uma instituição finlandesa de luta contra o cancro que acolhe projectos artísticos. Apesar dessa instituição não anunciar quaisquer vagas, a artista apresenta um projecto na expectativa de poder haver alguma desistência. Pouco tempo depois é-lhe comunicado que a sua proposta foi aceite. A instituição dispõe de uma vaga pela desistência de uma candidata seleccionada que sofreu um acidente na neve e partiu uma perna. A artista dirige-se para o Benim onde a paisagem de Verão contrasta com as últimas imagens de Nova Iorque. À noite, o toque dos sinos faz com que um grande número de cães se reúna à beira do cemitério. Da janela do quarto, a artista ouve os cães a ladrar continuadamente como se estivessem a proferir uma oração pela memória de Luca. Recorrendo, num primeiro nível, a uma reflexão sobre a irrupção da morte no ambiente familiar (embora a personificação do cão canceroso desvie a questão no sentido do que George Steiner considera ser o último dos tabus da psicologia moderna, o facto da ligação do homem aos animais poder ser mais forte do que os vínculos que se estabelecem dentro da espécie humana), o filme pode ser visto como uma tentativa de racionalização do sofrimento. Por um lado, procura fazer emergir alguns dos mecanismos mentais que regulam a produção de sentido ou que conduzem à semantização do que, à partida, não é significado; por outro, tenta compreender, através das imagens, o modo como um acontecimento doloroso (neste caso, a perda) determina, no sujeito, modificações ao nível da percepção. A dada altura, a narradora refere que, depois da morte de Luca, toda a realidade se modificou, os objectos à sua volta “perderam a identidade”, como quem diz que o real é insignificante e que o sentido é sempre putativo: só pode ser lido como uma projecção da subjectividade nas coisas. Levando mais longe o que já se verifica noutros filmes – como, por exemplo, em “Consolation Service” (1999), onde a exposição da história se decompõe em duas projecções, uma delas centrada no fio narrativo e a outra na descrição do espaço e nas reacções das personagens –, em “The Hour of Prayer” as imagens não se subordinam aos acontecimentos (que são narrados no pretérito perfeito) nem à acção (o protagonista está morto), detendo-se, pelo contrário, na distância da câmara face ao espaço deixado vazio (pela perda e pelo esgotamento dos factos decorridos). O protagonismo do espaço – a paisagem precede a narrativa –, ou do que Ahtila designa como “sensory surroundings”, é, a vários títulos, um aspecto fundamental, tanto ao nível da construção fílmica como da recepção. Denunciando a influência da pintura paisagista finlandesa do início do século XX (reabilitada pela artista contra a prevalência, no seu país, da tradição abstracta), a figuração do espaço funciona como contraponto à acção humana, como imagem subjectiva ou, ainda, como reflexo de estados psicológicos, a meio caminho entre a paisagem moralizada renascentista e a paisagem intelectualizada do cinema expressionista alemão. Além disso, ensaiando uma desconstrução tanto mental como física do espaço – o melhor exemplo encontra-se em “The House” (2002), instalação composta por uma tripla projecção em que a perspectivação das imagens é acentuada pela posição oblíqua de várias telas de projecção e pelo rebaixamento do tecto, prolongando assim, na estrutura caligaresca do mecanismo de apresentação, o problema da incongruência do espaço, tema fulcral do filme –, Ahtila coloca o espectador face a dispositivos de projecção que, longe de se anularem (procurando a discreta transparência da tela de cinema convencional), recorrem à obstrução formal como meio de complexificação da experiência sensorial. É, de resto, neste aprofundamento dos factores espaciais, por vezes simétrico à desvalorização das dimensões ligadas ao tempo e à duração, que o trabalho de Ahtila se destaca das questões propriamente cinematográficas, com as quais é, muitas vezes, confrontado, para se inscrever claramente no domínio das artes plásticas. É nesta ordem dúplice, de metaforização e de materialização, que a casa assume um papel central no trabalho de Ahtila. Sede da instituição familiar, espaço de inscrição dos “dramas privados”, lugar de recolhimento e segredo, prolongamento do eu e, tradicionalmente, território da mulher (principal figura dos filmes da artista), a casa constitui com frequência – como em “The House”, “Ground Control” (2001), “The Wind” (2002), ou, de um modo ainda mais nítido em “The House Sculptures” (2004) – uma poderosa metáfora da mente humana. Recorrendo a essa mesma analogia que serve a Santa Teresa de Ávila para, nas Moradas do Castelo Interior, pensar o êxtase místico e a relação da alma com Deus, Ahtila vê na casa um instrumento que permite tornar tangíveis (e figuráveis) os momentos de perturbação mental e os processos reflexivos. Enquanto para a santa a morfologia do castelo interior – hierarquizado em magnificência e acessibilidade em sete moradas, correspondentes às necessárias etapas do processo de autoconhecimento e oração que permitiriam à alma “abandonar-se nas mãos de Deus” – esquematiza um pensamento ontológico; para a artista, a casa é, pelo contrário – como acontece muitas vezes no cinema de Hitchcock (veja-se, por exemplo, “Shadow of a Doubt”, 1943) – uma concretização da dramatis persona: a tradução fenomenológica dos estados de consciência que só podem ser em situação. É ainda com referência à metáfora da casa que deve ser entendida outras das figuras que percorre o trabalho de Ahtila: o cão. Arquétipo da fidelidade e guardião do mundo familiar, o cão regula as entradas e saídas no espaço doméstico. A imagem do cão vigilante, à porta de casa, popularizada durante a Antiguidade Clássica – como se vê num mosaico com a advertência cave canem (“cuidado com o cão”) encontrado em Pompeia, à entrada da casa dita do Poeta Trágico –, assegura a separação entre dois mundos, o público e o privado (um exterior, o outro interior). Para entrar na intimidade é, pois, necessário o consentimento do cão. No sentido inverso, Cérbero (o “demónio do poço”), cão que, de acordo com a mitologia grega, guarda a porta do Hades (versão clássica do inferno), acolhe calorosamente as almas à entrada, mas é mais inflexível no que respeita à sua saída. Entre os poucos que conseguiram ludibriar o monstruoso cão tricéfalo e escapar com vida do Hades encontra-se Psykhé (“alma” e raiz etimológica de psique). Em diálogo com esta tradição iconográfica, a figura do cão é, nos filmes e fotografias de Ahtila, um ponto de clivagem e um elemento de mediação fundamental na aproximação ao subconsciente. Em “The Hour of Prayer” é a morte de Luca que desencadeia uma modificação do estado de consciência; em “Consolation Service” a relação conflituosa de um casal à beira da ruptura só começa a resolver-se depois dos dois cônjuges “rosnarem” e “ladrarem” um ao outro o seu ponto de vista sobre a discórdia; na série de oito fotografias “Dog Bites” (1992-1997), a modelo, uma mulher nua que adopta as posições de um cão tentando agradar ao seu dono, confunde-se com a artista. A confusão identitária levou Ahtila a escrever um pequeno texto para acompanhar a série fotográfica, intitulado “The woman is not me”, onde questiona se aquela personagem não será afinal ela própria reflectida no corpo da modelo. Eija-Liisa Ahtila é, antes de mais, uma ficcionista que se interessa pela psicose humana e recorre a casos de estudo de doenças mentais para construir um mundo imaginário. A pesquisa de Ahtila inscreve-se assim numa corrente neo-romântica que firma uma crença absoluta na psicologia como instrumento privilegiado para analisar e descrever a realidade. Se Jean-Jacques Rousseau escrevesse hoje “O Contrato Social”, esta posição, corroborada por outros artistas escandinavos (entre os quais, o mais representativo é Ingmar Bergman), obrigá-lo-ia a redefinir os princípios de distinção entre os povos do Norte e os povos do Sul, incluindo nos factores dessa diferenciação o lugar ocupado pela psicologia no pensamento das sociedades. Reconhecendo que as baixas temperaturas do Norte determinam uma necessidade de recolhimento, do mesmo modo que o clima ameno do Sul predispõe para uma vivência ao ar livre – o que aponta para modelos de sociabilização absolutamente distintos –, podemos questionar se a fé irrestrita na psicologia não será antes, hoje, um sinal da retracção política do indivíduo.
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