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ENTREVISTA


Hélio Oiticica e Neville D’Almeida, Festival Internacional de Jazz, São Paulo, 1979 (arquivo pessoal).


Vista da instalação Tabamazônica, Oi Futuro, Belo Horizonte 2010. Foto: Fábio Cançado.


Nelson Rodrigues e Neville D’Almeida, Rio de Janeiro, 1978. Foto: Antônio Guerreiro.


Neville D’Almeida, Rio de Janeiro, 2008.


A Dama do Lotação. Cartaz: Lielzo Azambuja. Foto: Antônio Guerreiro.


Nelson Rodrigues, Neville D'Almeida e Sônia Braga, Rio de Janeiro, 1978. Foto: Antônio Guerreiro.


Cosmococa - CC5 Hendrix-War, Foto: César Oiticica Filho.

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MARGARIDA VEIGA




NEVILLE D’ALMEIDA


“EU jamais teria a necessidade de inventar esse tipo de experiência não fossem as longas conversas e caminhadas pela linguagem limite criada por MANGUE-BANGUE de NEVILLE”,
Hélio Oiticica, 1974





Neville D’Almeida: da liberdade à estética do deslimite


Seria redutor descrever Neville d’Almeida (Belo Horizonte, 1941) como “apenas” um cineasta. Carismático, explosivo, indigesto e libertário são adjetivos esparsos para descrever este mestre polémico da história do cinema brasileiro.

Homem plural, o roteirista, produtor escritor, ator, fotógrafo, ativista, artista plástico e claro, cineasta, Neville Duarte d’Almeida passou de artista proscrito a autor do segundo maior êxito de bilheteira da história do cinema brasileiro (A Dama do Lotação, 1978, adaptado do texto de Nelson Rodrigues). Neville recusou-se a vestir o manto do artista maldito e sobreviveu. Hoje define-se como bem-aventurado, não apenas por ter vencido, mas por ter resistido livre.

Autor de cerca de dez longa-metragens, quatro curtas e oito documentários, acaba de editar o seu primeiro romance, já para não falar do seu percurso nas artes plásticas, e promete não ficar por aqui.

Em 1968, termina a sua primeira longa-metragem Jardim de Guerra, um filme ousado, provocatório e premonitório, abordando temas intocáveis como a floresta amazónica, drogas, política e feminismo. Inscrevendo-se num registo marginal, rompe com a proposta do Cinema Novo brasileiro, as linguagens vigentes (fazendo uso de slides, posters e fotografias fixas para jogar com a dinâmica do movimento cinematográfico) e as exigências da ditadura militar. Com enorme investimento pessoal, aposta tudo neste filme no ano coincidente com a implementação do conhecido AI-5 (Ato Institucional Nº5) – o instrumento de censura mais repressivo criado pelo regime.

É no laboratório de montagem de Jardim de Guerra, numa sessão fechada para cineastas e amigos, que conhece Hélio Oiticica, encontro decisivo que se tornará profícuo mais tarde. Neville continuará fiel ao seu estilo livre e indigesto e o ciclo de proibição e censura repetir-se-á nos dois filmes seguintes.

Em 1973 Neville está em Nova Iorque, tal como Hélio Oiticica que assiste a Mangue-Bangue. Escreve três ensaios completamente entusiásticos sobre a película – apelidando-a de “experiência-limite” – que se tornam no único testemunho da sua existência (perdida por 30 anos, a única cópia de Mangue-Bangue só veio a ser reencontrada no acervo do MoMA em 2010).

Deste encontro – entre um artista plástico interessado em cinema e de uma cineasta interessado pelas artes plásticas – nasce o Cosmococa Programa in Progress – Quasi-cinema, a proposta “suprasensorial” que consiste na variação de cinco Bloco-Experimentos organizados numericamente por ordem cronológica (CC1 Trashiscapes, CC2 Onobject, CC3 Maileryn, CC4 Nocagions, CC5 Hendrix-War), configurando instalações que incluem projeções de slides (com imagens de desenhos de cocaína por pigmento branco sobre imagens fotográficas de celebridades), a criação de um ambiente, banda sonora, textos e variações para uma utilização caseira.

Foram necessários 30 anos para que o projeto saísse da caixa, e entretanto tem corrido mundo.

Rever a estória de Neville D’Almeida é rever a história cultural do Brasil, pelo menos nos últimos 50 anos. Não obstante o caráter documental da sua carreira, quisemos saber pormenores sobre a sua colaboração com Hélio Oiticica e o projeto da Cosmococa (conceito criado por Neville). Não é todos os dias que se tem a oportunidade de ouvir um mestre.

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Por Pietra Fraga

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P: Recordo-me de o encontrar na inauguração de Museu é o Mundo, em Lisboa, e de me parecer reconhecer em si uma espécie de “dupla personalidade”... de exuberante, excêntrico, quase militante, a um Neville de olhar longínquo e de preocupações acutilantes. Afinal, quem é Neville D’Almeida?

R: Posso falar sobre esse negócio de dupla personalidade? Essa é uma questão milenar do artista e a vida, de viver artisticamente e de haver uma integração entre a ARTE e VIDA, espírito e criação. O artista tem uma correspondência existencial, que leva para posições diferentes, mas a personalidade é a mesma em vários espaços: no cinema, na literatura, na poesia, na fotografia ou na instalação.

Por exemplo, conhecer o Óscar Niemeyer foi muito importante na minha vida. O primeiro trabalho do Óscar Niemeyer foi a Pampulha. Com uns cinco, seis anos, meu pai levou a minha família para conhecer a igreja da Pampulha e aquilo me causou um grande impacto. Os murais, a via-sacra do Portinari… Para uma criança numa cidade neoclássica – como é Belo Horizonte – supostamente moderna, toda quadrada, aquelas obras do Niemeyer me causaram grande impacto e me influenciaram. Quanto mais tempo passa, mais eu entendo a importância daquele passeio. A igreja me impressionou muito, as formas, e eu me lembro que tinha uma marquise toda em curva... eu perguntei: - Mas porquê isso?! Eles falam que é por causa da forma do corpo da mulher... – Por causa do corpo da mulher?!... Olha que coisa…

Enfim, como artista me influenciou muito a liberdade do Niemeyer de mudar, de acabar com o quadrado, de acabar com a linha reta, a liberdade dele foi muito importante para mim. Mais tarde quase fiz um documentário com ele e estive no aniversário dele há uns dez anos atrás.


P: Há um conceito: a estética do deslimite – que surge muito da colaboração com o Hélio – que aplica na preocupação de romper com os limites dos mediums. A carreira do Neville tem sido uma prova disso, na forma como se movimenta facilmente em diferentes tipos de linguagens plásticas e as funde e transforma em experiências imersivas.

R: Você sabe, isso foi acontecendo com o tempo. Eu fiz a Cosmococa e só voltei a fazer mais alguma coisa nessa área vinte anos depois, eu fui totalmente dedicado ao cinema, porque eu não tinha coragem. Eu achava muitas vezes que eu não iria conseguir, essa coisa da dúvida, do medo, da falta de confiança… Tudo isso aconteceu. Mas aí, nesses últimos dez anos, eu resolvi me expandir em todas as mídias e me senti totalmente à vontade, mas parece que eu demorei uma vida inteira para ter coragem. Na Cosmococa, nós ficámos muito tristes na altura porque não aconteceu nada, nós não ganhámos um dólar, um real com aquilo, foi proibido, não podia mostrar para ninguém. Então, sete anos depois o Hélio morreu, totalmente inesperado, aí eu quase que desisti daquilo e passaram mais quinze anos… vinte anos para voltar a ver a Cosmococa. Ela estava dentro de uma caixa e eu nem sabia, e realmente foi uma coisa maravilhosa aparecerem dois curadores, um da França e um da Bélgica, me convidando para mostrar a Cosmococa, que eles iam fazer uma exposição mundial de Hélio, com mais de 100 obras e me pediram autorização para fazer a Cosmococa e aí começou. Você vê como é que as coisas aconteceram comigo?

Esta exposição em 1992 passou pelo Witte de With, o museu de arte contemporânea de Roterdão, pela galeria Jeu de Paume em Paris, pela Fundação Tàpies, em Barcelona, já em 1993 na Gulbenkian em Lisboa e no Walker Art Center em Minneapolis.

Foi maravilhoso, conseguimos abrir a terra e tirar esse tesouro 20 anos depois.


P: Eu tenho lido entrevistas onde o provocam, perguntando se se sente um artista maldito… por tudo aquilo que aconteceu no início da sua carreira…

R: Isso é um risco, é um perigo, é uma armadilha… o aceitar ser maldito, é uma cilada. Num momento de vaidade na vida, você pode até achar bacana: – Ah eu sou maldito, o rei dos malditos!

Mas rapidamente eu entendi que estava errado, entendi que era uma falsa afirmação. Eu entendi que eu era um bem-aventurado. Ter aquelas ideias, fazer o meu primeiro filme Jardins de Guerra, fazer a Cosmococa, tudo isso perto uma coisa da outra, eu entendi que era um bem-aventurado e que o tempo ia dar um jeito naquilo. Eu falava: a minha obrigação é fazer e vai ter que acontecer um dia, eu acreditava nisso. Então eu me desfiz logo da capa, do manto da maldição e me cobri com o manto da bem-aventurança.


P: Fale-me um pouco da sua origem. Foi em Belo Horizonte que se tornou cinéfilo, que teve a ideia clara de que a sua expressão estava no cinema?

R: Numa viagem também com sete, oito anos, eu nunca tinha ido ao cinema, nem sabia o que era cinema. Parámos na lanchonete do meu tio e ele falou no cinema. Eu falei: – O que é “cinema”? Ela falou assim: – Vai lá e olha. Eu fui. Puxei a cortina de veludo grosso e na tela tinha um closing incrível de uma mulher linda a preto e branco e me causou grande impacto, como aquele negócio do Niemeyer.
– Que beleza isso, isso daqui é lindo! Quando eu crescer eu quero fazer isso!

Depois comecei a frequentar o Cineclube de Belo Horizonte com 15, 16 anos. Eu lia a crítica de cinema. No jornal vi que ia passar um filme do neorrealismo italiano, tinha o endereço do cineclube e eu fui e nunca mais saí de lá. Enfim, passei cinco anos lá e era genial. Lá eu aprendi quantas coisas tem um filme: tem história, tem fotografia, cenografia, figurino, maquiagem, montagem, direção, música, olha, tem letreiro… foi uma experiência maravilhosa. Eu aprendi tudo lá, eu aprendi a amar o cinema profundamente e eu conheci o cinema russo, francês, italiano, sueco, japonês, americano, mexicano e inclusive o cinema português.


P: Li que nessa fase, pelos seus 15 anos, via os filmes americanos com os seus happy endings, com o beijo fotográfico que se suspendia no fim do filme e decidiu na altura que se um dia fizesse cinema não seria assim, dizia: “eu vou mostrar o que tem depois…”

R: O que todo o mundo queria ver era: beijar na mulher. Chegava assim, sentava na cama com ela, tinha um abat-jour… e daí ele apagava a luz… aaahhh… aquilo era o que a gente mais queria ver no cinema inteiro... E só eu é que reclamava! Mas eu falei: – Eu nunca vou fazer assim, isso é horrível, deve ter outro jeito de fazer isso.


P: Recorda-se de como foi a chegada no Rio e do seu contato com o meio cultural da altura? Já trazia um projeto consigo? Que expetativas tinha e o que é que encontrou?

R: Eu fui para Nova Iorque para estudar cinema, tinha um concurso de curta-metragem no Brasil, em 1966, e eu fiz uma curta-metragem chamada O bem-aventurado, para o festival nacional de Cinema Amador JB-Mesbla. O presidente do júri era o Nelson Pereira dos Santos e o nosso filme ganhou um prémio. Enfim, eu esperava mais, voltei para Nova Iorque, estava trabalhando, conheci o Nelson Pereira que ia fazer um filme chamado Fome de amor, que ia ser rodado em Paris. Ele, me conhecendo, passou o filme para Nova Iorque e me chamou para organizar a produção do filme. Eu fiz a produção do Fome de amor e voltei com o Nelson para o Rio para fazer cinema, voltei com um projeto chamado Jardim de Guerra. Eu tirei esse nome de um livro de um poeta português.

Alguém me mostrou o livro e eu gostei do título. Eu tinha feito um nome que era assim: Decúbito dorsal. Aí o Glauber falou assim: – Pô, esse nome é horrível, você já pensou alguém ir no cinema assistir Decúbito dorsal? Eu falei: – Cara! Tem toda a razão… tenho de arranjar um nome bom, esse é muito dramático.
Enfim, aí vi o livro e falei: – Pô, Jardim de Guerra, genial. Glauber! Bolei um nome Jardim de Guerra. Ele falou – Genial!
Foi o maior barato.

Eu cheguei com o Nelson aqui com o projeto de fazer o Jardim de Guerra e conheci as pessoas do Cinema Novo: o Gustavo Dahl, o Carlos Diegues, o Nélson (que eu já conhecia), o Walter Lima Júnior, Paulo César Saraceni… O Nélson me apresentou a essas pessoas, eu não era desse grupo, mas foi muito bom conhecê-los. Mas eu sabia que aquele não era o meu caminho e eles também entenderam rapidamente que eu não era um deles, que era um amigo deles e que tinha uma grande admiração, mas que eu não queria fazer nada como eles faziam.


P: Um cinema politizado, contaminado pela esquerda?

R: Mais do que contaminado pela esquerda, era um momento criado e estabelecido e eu achava que tinha uma coisa mais moderna para o cinema, do que ficar preso, de suscitar um mau filme aos trâmites de um discurso, através da política, através da ideologia… eu acho que a gente deve ter um cinema cada vez mais livre. Era o meu primeiro filme, eu não identificava isso naquele cinema, era um cinema muito esteticista, mas muito comprometido com conceitos muito antigos. Era um cinema que pegava a câmara na mão uma série de coisas, mas existia um conservadorismo que eu achava que a gente devia ir além disso e quebrar isso, devia ser um pouco ou totalmente iconoclasta em relação ao cinema, em relação à linguagem e em relação à liberdade de linguagem. Você está começando agora, procura ser o mais livre possível, talvez isso seja o mais importante, você tem que buscar ser livre: na criação, na invenção e não apenas ser livre de palavras, na retórica. As pessoas confundem a retórica com a criação mesmo. Tem que ser livre na criação, naquilo que você se expressa.


P: Ser livre nesses trâmites envolve correr riscos e falhar…

R: É, sem dúvida. Ser livre é aquela coisa de desde o princípio buscar a liberdade dentro dessa arte e ter a consciência de que o cinema não é uma arte livre, o cinema é uma arte cativa. Arte livre, o que é? A pintura, a música, a literatura... Já pensou quanta liberdade existe nestas artes? O cinema é muito comprometido com a indústria, com uma série de coisas.

O cinema é uma arte cativa. Você está começando a fazer cinema e o que é que você quer? O cinema cativo como sempre foi? Ou você quer buscar mais, pensar mais, ir de encontro a outras ideias, não ficar conformista achando que coisa linda é o cinema, mas o cinema é caro…


P: Depois do Jardim de Guerra – que teve aquela receção traumática – como foi ser um cineasta que procurava trabalhar a liberdade num período de censura militar? Um contexto que o próprio Neville aborda no Jardim de Guerra

R: A verdade é que apesar de tudo eu não consegui exibir os filmes então, houve sim um trabalho muito difícil. Quando ficou pronto o Jardim de Guerra, em setembro de 1968, em novembro é editado o tal do Ato Institucional N.º 5 onde cortava todos os direitos e liberdades civis e era um momento impossível, o filme foi proibido, interditado e jamais exibido. Então eu lutei mas não aconteceu. Então eu fiz mais outro filme chamado Piranhas do Asfalto e aconteceu a mesma coisa. Isso aconteceu comigo com os meus dois primeiros filmes. Eu tinha um apartamento com o meu irmão em Belo Horizonte, eu vendi. Eu tinha um apartamento no Rio que vendi, eu vendi tudo, gastei todo o dinheiro que eu tinha conseguido até ali nesses filmes, mas eu achava e sabia que o importante era ser livre e não ficar baseado nos inconformismos. Eu não queria ser conformista, eu não queria deixar que as pessoas pudessem atrapalhar.


P: Que tipo de proibições ditava a Censura que o Neville teria de contornar para conseguir exibir os seus filmes?

R: A resposta a essa pergunta, uma parte, está nos Certificados de Censura que estão no livro Além Cinema: corta na hora em que aparece Marciano começando a tirar a calça até à hora em que aparece não sei o quê. Isso já tem ali uma amostragem disto. Eu tenho uns seis ou oito desses certificados. Nunca segui a regra, nem nunca cheguei nem a ler direito a regra, sempre achei que devia fazer tudo e por isso os filmes foram proibidos. E no cinema brasileiro a maior parte das pessoas se adaptou a fazer só o que podia ser feito e eu não julgo ninguém, eu acho que estão totalmente certos. Mas eu não tinha esse ânimo, não tinha essa vontade, tinha uma revolta de fazer diferente, eu não posso fazer assim. Foi aí, quando estava fazendo o meu primeiro filme proibido, que eu conheci o Hélio Oiticica. Levaram ele numa sessão do Jardim de Guerra, o Waly Salomão levou o Hélio Oiticica para ver no laboratório o meu filme. Eu não conhecia o Hélio, ele tinha um cabelão de louco, eu também tinha, eu adorei a cara dele.

Acabou o filme e o Hélio falou: – Adorei o filme, genial! Foi a primeira vez que eu vi o uso de poster em cinema como linguagem.

Eu nem sabia, quando pus os posters pensava em linguagem, mas como linguagem cinematográfica e eu achei aquilo maravilhoso.
– Cara você entendeu o filme de uma forma… até eu quando o fiz não pensei tanto nisso.

E o Hélio falou também: – É a primeira vez também que eu vejo a projeção de slides e é lindo. E mais tarde, seis anos depois, em 73, viemos a fazer a Cosmococa que era em projeção de slides.

Então dessa sessão em que o Hélio esteve, a nossa amizade começou aí, ele gostou muito do filme, falou da projeção de slide, falou dos posters e nós fomos para casa dele, passámos a noite inteira falando até às sete horas da manhã e decidimos (eu e o Hélio) fazer um trabalho duplo que pudesse significar a união do cinema e das artes plásticas, foi lindo a união dessas duas coisas. E daí vem a Cosmococa programa em progresso, daí vem o quasi-cinema. A gente falou isso nessa noite, mas só viemos a fazer dois anos depois, e ele viu o filme três anos depois de eu ter filmado os slides, eu fiz o filme em 67 e o Hélio assistiu ao filme em 69.


P: O Jardim de Guerra teve essa receção traumática no Brasil e o Neville ficou sem recursos. Entretanto, a crítica em Cannes desenhava rasgados elogios…

R: Eu sabia da força do filme, sabia como o filme era diferente dos outros filmes daquele momento. Chegando em Cannes, as pessoas tão maravilhosas, o que falaram do filme, eu fiquei surpreso, eu nem imaginava… Mas, ao mesmo tempo, eu achava também. Eu acreditava no filme. Eu tinha essa perceção. Eu conhecia o filme, amava o filme, fizemos o filme intensamente, o filme tem coisas de linguagem maravilhosas, tem câmara na mão, mudança e experimentação de linguagem, mas eu não sabia da força do filme. Fiquei totalmente surpreso de eles entenderem isso e fiquei mais surpreso ainda depois quando vi que apesar daquilo tudo as coisas começaram a ficar cada vez mais difíceis. E eu fui também radicalizando mais, o Jardim de Guerra é mais elegante, o Piranhas do Asfalto um pouco mais radical e depois que eu fiz o Piranhas e o Jardim de Guerra em 35 mm preto e branco, eu fui para os 16 mm, depois eu fui para o Super8, para continuar exercendo o ofício de fazer filmes. Para mim era importante não ficar parado, tinha tanta coisa que eu tinha vontade de mostrar. Foi aí que eu fiz o Mangue-Bangue, o meu primeiro trabalho planeado com o Hélio. O Mangue era uma zona deprimida do Rio onde o Hélio tinha muitos amigos. Eu não sabia onde era o Mangue, ele me levou lá e eu rodei o filme Mangue-Bangue.

Essa receção da crítica internacional foi totalmente surpreendente para mim, aliás nunca mais aconteceu isso. Me despertou também muita competição, muita rivalidade, despertou várias reações que eu também não esperava, porque eu não era da turma, eu não era do grupo, eu apareci… mas foi lindo aquilo. Eu achava que tudo ia ser fácil depois daquilo, mas por excesso de timidez foi aquele momento difícil: de ter de passar para o 16 mm e para o Super8, essas mídias alternativas, de não ter nenhuma possibilidade de exibição, ficar esquecido pela crítica, é um momento de isolamento muito grande.

Aquilo não continuou, aquilo parou ali, foi um grande isolamento, mas eu sempre achei que tinha de continuar filmando e achava muito bom ficar filmando em Super8. Ficava vendo as pessoas estando até 10 anos sem filmar, eu achava que devia filmar todo o dia mesmo não sendo daquela forma. Mas tudo tem limites…

Aí eu falei: – Não vou ficar no Brasil, vou ser preso, vou morrer torturado, vou apanhar, com dois filmes proibidos interditados, dois processos contra mim na polícia política… para sair do Brasil tinha que ir lá fazer uma declaração: estou indo para Portugal, vou passar 17 dias, o objetivo da minha viagem é cultural. Vou montar uma obra e estarei de volta, mais não sei o quê... Enfim, então, não era bom continuar aqui para não ser preso e para não morrer e continuar a fazer as minhas coisas em um lugar que tenha mais liberdade.

Em 1970 fomos para Londres. Todo o mundo foi para Londres, houve um grupo de pessoas: o Rogério Ganzela, o Júlio Bressane, o Neville, o Caetano Veloso, o Gilberto Gil… Tinha um grupo enorme de pessoas em Londres. Podiam fazer várias “viagens” em Londres, era lindo: tomava um ácido e ia para o parque. Foi muito bom e não parámos de filmar em Londres. Em Londres rodei um filme chamado Gatos da Noite (Night Cats), o filme está perdido.


P: Ia mesmo perguntar-lhe sobre a sua relação com o movimento do Tropicalismo, nomeado pelo projeto Tropicália do Hélio. Esteve em Londres ao mesmo tempo que a geração do Caetano e do Gilberto. Esteve com o Glauber no festival Glastonbury (1971), no ano seguinte à mítica apresentação dos Tropicalistas lá exilados…

R: Eles eram meus amigos, nós vivíamos juntos, nós éramos uma turma. Uns eram músicos, outros cineastas, outros eram pintores, artistas, enfim… era uma coisa muito linda que acontecia. Você vê que no meu primeiro filme depois de tudo isso, A Dama do Lotação, a música é de Caetano Veloso, fruto da nossa amizade e da nossa relação artística em Londres. Geralmente a relação é só social, mas quando a relação é social e artística aí fica muito melhor, uma relação de poder criar junto, de poder inventar, se expandir, de poder transacionar ideias. Pode ter vários desdobramentos porque ela é artística, criativa, abrindo caminhos para várias mídias e várias ideias.


P: Alguns dos temas nos seus filmes são crus, agressivos e radicais. Como encara o papel da violência na arte? Esta questão surge-me após uma crítica de Jacques Demy (em repercussão do filme no festival de Cannes/1969) que disse: “Neville D’Almeida chega ao romantismo pelo caminho mais difícil: a violência”.

R: No meu caso, do meu filme – porque tem a violência no cinema que é total, né? O cinema americano é um grande mestre na violência absoluta e total, o que reflete a sociedade americana –, mas nos meus filmes essa violência, essa crueza, é uma transgressão de linguagem e uma transgressão poética. Ela é brutal e delicada, isso é uma forma de expressar a realidade.

Eu adorava o Jacques Demy. Eu conheci ele, estivemos juntos algumas vezes, considero ele um cineasta totalmente romântico poético, ele era aquilo na vida, a leveza e a poesia dos filmes que você vê no Les Parapluies de Cherbourg. Quando o Jacques Demy falou através da violência eu fiquei um pouco surpreso, mas ele falou também no sentido poético, como ele era um poeta e como era uma das pessoas mais sensíveis que eu já conheci. Eu me identifico com a frase sim, mas quando se fala em violência tem assim a invasão do Afeganistão, a guerra do Iraque, o atentado... Enfim… e esta é uma violência no sentido da poesia, dentro de uma transgressão de linguagem, que não trata da linguagem convencional, mas tem uma poética própria. Eu acho assim.


P: O Neville é um cineasta que passou do experimental para grandes êxitos de bilheteira. O que mudou na sua fórmula para conseguir isso?

R: Em termos de linguagem mudou muito pouco. Eu tive 5 filmes que nunca foram exibidos, tive o privilégio de conhecer o lado obscuro, o pior, o fracasso, a obscuridade, o desconhecimento, o prejuízo, a falta de tudo e depois tive o outro lado, sucesso, dinheiro, mais do que isso, a consagração popular. Porque o sucesso às vezes é crítico, armado ou até comprado, mas quando o sucesso vem com a consagração popular é uma experiência muito mais fascinante, que atinge mais os seus objetivos. Então eu tive tudo isso, aconteceu só comigo. Não conheço ninguém mais com essa história. Então eu me considero um bem-aventurado. Eu achava que se um dia um filme meu for exibido vai dar certo porque o povo vai gostar, o público vai ver que não é uma coisa qualquer, que não é um cineminha nojento, vai ver que Neville tem uma proposta. Se deixarem passar, vai dar certo, mas os filmes foram proibidos, interditados.

Então, quando eu fiz o “Dama”, mudei de propósito a fórmula comercial. Eu não podia ser o dono do filme, essa foi a mudança. Não era mais eu. Eu já tinha perdido tudo. Eu entendi que os donos do cinema brasileiro, da exibição, da distribuição, da produção, se estiverem fora do filme, o filme não dá certo.

Mudei a distribuição comercial para lançar um filme sem precedentes, onde eu fazia as mesmas coisas de sempre que eu fazia em 16 mm e em Super8, a mesma transgressão. Me falaram: – Não seja louco, agora que tem uns promotores aí (que eu que arrumei), agora fica tranquilo, faz direito, não vai fazer aquelas loucuras, por favor aproveita a oportunidade… Mas eu fiz tudo como eu sempre fiz, e fiz ainda com mais força, imprimindo uma tensão muito grande no filme, foi dessa forma que deu certo.

Ou dá certo quando você segue as convenções, ou pode dar certo quando você acerta, quando você faz um produto mais verdadeiro e que tenha grande impacto diante do público, que é o que eu busco.

O que mudou foi o formato comercial, foram os “poderosos” que tornaram possível o filme ser exibido, que acreditaram no filme. De repente, pessoas que nunca acreditaram compraram parte (tinha sete sócios), e tornaram possível a exibição e foi como eu dizia: – Se fosse exibido, se batesse na tela, o público ia notar que tinha uma coisa diferente. Foi o que aconteceu, muito mais do que eu esperava.

Na verdade, vários filmes nem foram para a censura. Então aconteceu no A Dama do Lotação a condição de o filme de alguma forma chegar aos cinemas. Os sócios eram pessoas muito influentes e viram ali uma oportunidade. Uma pessoa viu, que era o principal distribuidor no Brasil, o Gustavo Dahl, um cara maravilhoso. A partir daí continuaram os problemas. Depois do A Dama do Lotação, principalmente com o Rio Babilónia, o filme ficou proibido quase um ano, depois a polícia federal (já era o final da ditadura) criou uma coisa chamada Conselho Superior de Censura, que era do Ministério da Justiça e era composto pelo Procurador da Justiça, Polícia Federal, mas tinha também representantes dos escritores, da Associação Brasileira de Imprensa, da Igreja, das famílias: era um conselho. Então o filme foi para o Conselho Superior de Censura e conseguiu ser liberado com 15 minutos de corte. Isso foi a negociação possível: com vários cortes, um ano depois.

Não é exatamente uma vitória para se comemorar, é uma luta muito grande. O sucesso do A Dama do Lotação e do Sete Gatinhos também, deixou as pessoas querendo se vingar dos filmes e de mim porque a minha carreira continuou com filmes sempre na mesma linha. São coisas que a gente determina para nós mesmos, essas lutas, esses filmes, essas dificuldades. Mesmo vindo de um sucesso estrondoso como o Dama, o Rio Babilónia já virou aquele velho problema de sempre e eu pensei: – Puxa… Será que isso nunca vai acabar? Mas debaixo da crítica isso nunca acabou, eles estão sempre querendo vingança. Mas o talento é o mais importante. E você tem que pedir, buscar, insistir e ficar de joelhos pedindo talento… E tem que exercitar os talentos. É como a parábola bíblica em que o cara enterra o talento. O “talento” era uma moeda, o Amo vai viajar distribui talentos a três escravos. Um dobrou o valor, outro acrescentou a metade e o terceiro enterrou. Quando ele volta um diz: – Olha, tá aqui, eu investi e dobrei o dinheiro. O segundo, também. O terceiro olha e diz: – Eu sabia que você era muito rígido. Eu enterrei. Tá aqui o seu talento de volta. E esse então é punido, entendeu? E eu acho que esse é o “talento”.


P: Acha que o fato de na altura o governo estipular uma cota de exibição para filmes nacionais também interferiu para o sucesso do cinema brasileiro dentro do país?

R: Não, nada interferiu, se tinha uma cota de 30% havia 70% de ocupação do mercado. Nós passámos a distribuidora do Embrafilme, que estava em 11.º lugar no ranking, para o 1.º lugar. Nós fomos a maior bilheteira do ano de ingressos vendidos, fomos um fenómeno, entendeu? Foi surpreendente, maravilhoso, eu que tinha perdido tudo não conseguido exibir um filme… foi assim sem precedentes. Aconteceu, até hoje, três vezes na história da distribuição comercial do cinema brasileiro.


P: Sobre o cinema do futuro, em que moldes é que essa liberdade pode ser trabalhada hoje? Existe diferença entre o artista/cineasta dos anos 60 e o de hoje? Veja a mutação na utilização desse “erotismo de reação” no cinema brasileiro durante a censura. Banalizou-se tanto na década de 80 que perdeu a força política e estética que tinha... Assim sendo, como é que a expressão da liberdade pode ser feita hoje?

R: Existem ciclos, existe na indústria do cinema algumas coisas cíclicas como aqui no Brasil a chanchada da Atlântida, que foi uma produtora que produzia acho que 290 filmes. O ciclo da Atlântida demorou uns 20 anos: eles tinham cadeia de cinema e produziam. Foi o primeiro grande circuito durante uma parte da ditadura, mas não só por causa da ditadura mas por causa da forma como o povo brasileiro era, multirracial. Aqui existe uma grande mistura de várias raças, as pessoas são mais sensuais, a propaganda e o comércio inteiro põem pessoas nuas, nos jornais, arranja-se um jeito de explorar a sexualidade, aqui eles valorizam demais tudo na mulher. O Carnaval luta para pôr em público na frente de milhares de pessoas, mulheres nuas e as mulheres fazem questão de aparecerem peladas e põe homens também, claro.

Então a Pornochanchada era uma coisa ingénua, que teve também o seu ciclo num momento de repressão militar. Ela era ingénua e machista e agradava o sistema: não fazia mal a ninguém, só cumpria o seu papel de divertir o público de cinema, era entretenimento. Você sabe que eu nunca vi pornochanchada? Mas agora, no ano passado e neste, tenho visto várias e achei de uma ingenuidade tão grande que é comovente e que não deve nada a cinematografia nenhuma, não tem lugar nenhum mas é um ciclo, como existem ciclos no cinema francês, no cinema italiano, espanhol, até no cinema americano, argentino ou mexicano, por exemplo.

Hoje, eu acho, vivemos um momento maravilhoso. Passei minha vida inteira no cinema, me apaixonei pelo cinema muito novo, nunca foi tão maravilhoso e espetacular como é hoje. Hoje é possível. Como era o mundo antes do HD, antes do vídeo, do miniDV, antes até do Super8, como era o mundo?

Filmar era uma coisa para as elites, uma coisa caríssima! Era um sonho impossível ter uma câmara, comprar um negativo, filmar, mandar para um laboratório, tirar uma cópia, mandar a cópia para você, comprar um projetor, pegar uma tela na parede e projetar, olha que operação que era! Foi o que faltou a Orson Welles, Eisenstein, Griffith , Humberto Mauro, Mário Peixoto, até ao Glauber mesmo. Ele não chegou a experimentar essas minicâmaras maravilhosas. Hoje você pode ir para casa e fazer um filme. Você junta os seus amigos e cria uma história. Nada disso era possível. O mundo mudou. Hoje bilhões de pessoas produzem imagens. Tudo isso é novo, tem uns dez, vinte anos… Se fosse assim quando eu comecei, eu não teria feito doze, quinze, vinte longas. Eu tinha feito duzentas! Por isso é que eu filmo tanto agora, é tão bom. Meu discurso é otimista.

Claro que dentro disso tudo falta talento, capacidade, falta competência, sobra burrice, sobra arrogância, desconhecimento… enfim, o cinema é um campo aberto. Mas é natural que existam distorções, o que não é natural é a influência do poder económico e político: que haja controle numa forma de produção. A força política e a força económica criam grandes contradições dentro da coisa em si. O cinema deve ser uma arte livre e tem que se chegar a uma harmonia com relação aos seus códigos morais. Quanto mais livre, quanto mais possível de se mostrar, mais tem que haver uma conduta. Qualquer criança pode ver? Pode não ser bom para crianças. Se você tem um filho: – Pô, isso daqui não é bom para o meu filho! O crescimento cada vez maior dos meios de comunicação e de reprodução, levam a questões de alta sensibilidade como essa: códigos de ética para poder ser adequado a todos. A liberdade traz também mais sensibilidade e um exercício maior da mente, no sentido de proteger a todos.


P: Ainda sobre este assunto dos êxitos de bilheteira, achei muito interessante um comentário que fez sobre o filme político. Concordo em absoluto consigo quando diz, em entrevista à Playboy em 1982, que: “Não só tratando de problemas políticos que se faz cinema político. (...) eu acho que político no cinema é o A Dama do Lotação. Sete milhões de pessoas são capazes de se reunir, assistir e discutir esse fato, isso é político”, consegue aqui uma tarefa rara: conciliar um programa estético e chegar ao público? Não o assusta essa responsabilidade?

R: Esse poder não assusta. É bem-vindo na medida em que você pode usá-lo para o bem comum. Você tem essa responsabilidade do exemplo, eu acho que ainda não tenho esse poder, posso ter esse poder mental, sim alguma coisa, mas você só consagra o poder hoje, infelizmente, é na mídia, de uma forma muito mais efetiva. Hoje o poder está diluído e na mão de algumas das piores pessoas num mercado mainstream e popular. Eu tenho muito pouco poder, mas o poder é para ser usado para ajudar a todos e para continuar criando, ousando. Se tem uma coisa que o poder possa servir é para você continuar fazendo coisas realmente desafiadoras, que é o que move e dá uma alegria muito grande, que é fazer o que eu nunca vi e fazer o que eu nunca fiz, como foi a Cosmococa ou a Tabamazônica, como foi o Mangue-Bangue. O poder é bom para isso: para trabalhar com mais liberdade.


P: A liberdade ou poder não se refere à quantidade de pessoas que estará em contato com a obra, mas, no ato criativo, as decisões éticas que o artista toma para causar impacto e para trazer mudança naquilo que acha que é preciso, que é urgente. Uma espécie de “terrorismo”, ao conseguir introduzir no circuito dos filmes mainstream uma coisa diferente, detonadora de ideias. Não sente assim?

R: Eu acho que eu consegui isso com esses filmes que foram tão bem. Acho que consegui e eles não querem me perdoar por isso. Logo depois eu fiz o filme dos índios Maksuara. Está na distribuidora há 4 anos e eles não conseguem exibir o filme. Essa coisa de conhecer os dois lados. É verdade, é um terrorismo poético, muito bom.

Mas tem uma questão aí que tem que ser colocada, dos novos tempos e das pessoas que querem entrar numa escola e estudar cinema e sair para o sucesso comercial imediato. Então o sucesso comercial virou uma coisa muito maior do que a primeira ambição de que você fala, que é o sucesso artístico, de você pensar no filme como uma obra de arte, um poema, uma linguagem e buscar intensamente isso. Isso hoje continua principalmente em quem faz vídeo e usa as mídias alternativas. Existe o discurso do mercado do consumo que a gente deve ver com naturalidade e ter a serenidade de pensar nisso. Existem também muitas formas comerciais criativas e inventivas que estão começando a acontecer.

O futuro está em as pessoas fazerem os seus filmes, ganharem dinheiro com eles na maior tela do mundo que é a internet. Esses caminhos vão aparecer. Então vai haver uma pulverização, mas vai continuar a televisão e vai continuar o cinema, isso é o que eu espero.


P: Tal como tem acontecido com a indústria discográfica…

R: Exatamente. E nós estamos a caminho para isso na indústria do cinema, de uma forma mais bem resolvida que a indústria discográfica. É possível fazer no negócio da distribuição, pagamento, os direitos, dá para resolver isso tudo. Eu acho que esse é o futuro: a pulverização. E acho que as oportunidades são inúmeras para as pessoas sensíveis e criativas, para as pessoas que se sentem excluídas do poder imenso desse “cinemão”. Para essas pessoas existe um caminho (que às vezes pode parecer mais difícil), de exercer a sua criatividade e de poder ir até mostrando e fazer outra vez e outra vez.


P: Cosmococa foi um termo escolhido por si. Como nasce o interesse pela cocaína como elemento gráfico e plástico? (usava cocaína como pigmento branco...). Era um elemento provocatório?

R: Ela é uma provocação poética sim, artística e de linguagem. Há exatamente 40 anos atrás, era março de 73. É uma provocação neste sentido, não no sentido superficial, bobo, de querer criar um cliché ou alguma coisa, mas num sentido profundo. Em toda a História esse pigmento jamais tinha sido usado em arte. Então, pegar cocaína, usar como pigmento branco e desenhar com ela, aconteceu pela primeira vez. Houve uma rejeição, uma dificuldade policial e legal, mas a verdade é que não existe nem dentro da lei uma culpa específica sobre a utilização da cocaína como tinta branca em arte, ou uso dessa substância na arte. Eu fiz os desenhos todos, gostava de desenhar e o Hélio ficava admirado com aqueles temas. Existia ali uma coisa muito profunda. Se eu pegar a capa de um disco, jogar uma quantidade de açúcar em cima e fazer o desenho na capa do disco já é uma obra, mas para mim, para o Hélio a gente teria vergonha só de fazer um desenho numa foto e dizer: – Isso é uma obra.

O que nós fizemos foi o Programa in progresso. Nós deliberadamente pegámos em cinco mitos, colocámos como temas centrais da Cosmococa 1, 2, 3, 4 e 5, cada uma tem um nome específico Marilyn, Hendrix-War… Não é apenas uma folha com um desenho em cima. Foi muito além disso, foi fazer uma foto, uma instalação, um livro, uma caixa, uma edição de posters e foi fazer uma versão doméstica para a performance da instalação. Para cada série foram criadas instalações diferentes. Uma, como você sabe, é com duas telas, um colchão, travesseiro e lixa de unha. A outra é com espuma coberta com lona, com figuras geométricas para você brincar e interagir com elas. Outra é areia coberta com vinil amarelo e laranja. Outra é com uma piscina, para poder sentir e vivenciar, participar da obra de dentro de água (pela primeira vez, também nunca tinha acontecido). E, finalmente, outra com quatro telas e várias redes para deitar, que é o Hendrix-War. Acho que foi esse conceito que a gente conseguiu criar e essa união com o Hélio, viver esse momento, conseguir levar essas ideias para ele levar essas imagens para as artes… Eu nem sabia nada de arte, mas eu sabia que seria muito bom levar imagens para a arte.

A cocaína foi usada para criar, mas depois se transformou, ela foi cocaína e depois deixou de ser da mesma forma como é o princípio fundamental da arte que é a transformação e mais a transmutação, como a Fonte, urinol do Duchamps, as múltiplas possibilidades de todos os elementos que nós temos para interagir e para se transformar totalmente numa obra de arte.


P: Na primeira exposição itinerante da Cosmococa, o catálogo refere a produção de outras Bloco-Experiências com o Hélio em colaboração de outras pessoas: a CC6, CC7 e CC9. Como surgiu esse prolongamento?

R: A gente achou que seria bacana convidar os amigos para fazer uma Cosmococa, sem contrato, sem autorização, sem convite, sem nada. Tem até pouca referência disso. E assim chamámos (é como eu falar para você: – Faça também a sua Cosmococa, eu vou te dar esse negócio aqui, você faz aí os desenhos e eu vou fotografar e assim será). A gente achou que isso era ótimo e eu ainda acho que na arte quanto mais pudermos desdobrar melhor, toda a gente participar, qualquer um poder fazer. A gente chegou a esse ponto que era uma coisa linda. Daí chamámos o Thomas e o Andreas, que eram nossos amigos aqui do Rio, e convidámos eles para fazer. O Guy Brett era um grande amigo do Hélio, que fez a primeira exposição do Hélio, em Londres, em 69, na Whitechapel Gallery (onde eu também estive com a Cosmococa). Então convidou o Guy Brett e o Vergara, com quem também não tinha muita proximidade, embora goste muito dele. Mas sabe o que aconteceu? Ninguém fez. Ninguém teve coragem. Ninguém quis fazer. Apenas os primeiros dois fizeram, o Thomas e o Andreas, os outros não. Mas nós abrimos essa possibilidade. Daí as propostas foram enviadas ao Hélio que me manda uma carta (que eu ainda tenho) perguntando o que eu achava, a coisa estava pronta aí falei: – Vai em frente! Foi o uso do nome Cosmococa que nós abrimos.

Depois, passaram 20 anos e não aconteceu nada, mas era esse o princípio. Tudo isso está num livro chamado Cosmococa - Programa in progress, editado pelo Museu do Inhotim, pelo MALBA de Buenos Aires e pelo Projeto Hélio Oiticica.


P: Embora tivesse como referência outras colaborações entre artistas e cineastas como Dali e Buñuel, a sua colaboração com Hélio no projeto Cosmococas teve um contorno bem diferente, que extrapolava a linguagem clássica do cinema. Começou aqui o conceito de quasi-cinema?

R: Sim, sem dúvida nenhuma o quasi-cinema vem junto com a Cosmococa. Foi um conceito que se transformou numa palavra natural para nós, mas apareceu quando fizemos a Cosmococa juntos. E eu falo da colaboração do Dali e Buñuel, como outros, porque essa colaboração com o Hélio foi muito legal. A verdade é que eu levei o projeto para o Hélio, mas o Hélio cresceu tanto que as pessoas se esquecem… ele cresceu tanto e ficou tão importante pela grandeza dele, pela qualidade dele, pelo homem que ele era, de uma integridade e de uma capacidade criativa fora do comum. Mas eu levei o cinema para a obra dele, a imagem projetada para a obra. Nós fizemos juntos esse avanço. Eu tenho um vídeo dele falando que ele achava que a Cosmococa era o ponto mais alto onde ele tinha chegado.


P: É conhecido o encontro do Hélio com o seu trabalho já em 1968 no estúdio de montagem de Jardim de Guerra. Mas como foi ao contrário? Como foi o encontro do Neville com o trabalho do Hélio?

R: Eu nem conhecia o trabalho do Hélio. Nem sabia o que era. Eu conhecia aquele trabalho em que você pisava dentro de água, num cercadinho e vi o Parangolé, mas eu estava totalmente concentrado no cinema. Então tive um interesse enorme pelas artes plásticas e quando vi o Hélio eu conhecia muito pouco dele. Isso só aconteceu porque eu gostei dele e ele gostou do filme. De repente, apareceu um cara inteligente que vê o filme e fala umas coisas incríveis. Eu falei: – Esse cara é muito louco! De cabelo até ao ombro, fumava maconha muito doido… finalmente conheci uma pessoa inteligente. Então o meu encontro com ele é extracurricular, não é baseado em fatos normais de procurar o artista. Aí eu descobri ele e ele me descobriu, mas foi ele que veio a mim. Passámos a noite a fazer planos. Éramos libertários, queríamos romper com todas as linguagens tradicionais e decidimos fazer um trabalho junto que fosse uma união do cinema e das artes plásticas.


P: O Neville sabotou a sua própria conceção de cinema? Em Cosmococas – Programa in Progress você manipula, uma por uma, as assunções do que é a experiência do cinema: começa com a sala (espaço), com a deslocação para a galeria, na múltipla projeção, a libertação do corpo, devolve a imagem em movimento aos frames, manipula a trilha sonora e o ambiente… O cinema sempre foi visto como a obra de arte total, a experiência mais imersiva, mas Neville leva o seu cinema mais além em projetos instalatórios como o Cosmococas, o Tabamazônica ou o Cine Bus. Onde fica a fronteira entre o cinema e a instalação?

R: É muito importante essa desconstrução mesmo, de forma consciente, e eu modestamente não aceito o cinema como a maior das artes. Agora abordando o cinema da perspetiva da questão imersiva de que você falou é uma fronteira entre o cinema e a instalação. Eu acho que devia haver uma revolução de liberdade que ainda não está muito clara, que as pessoas ainda não têm muita consciência disso e o sonho do cinema comercial é muito forte. E em relação a esse namoro entre as artes plásticas e o cinema, que nós começámos com a Cosmococa – Programa in progress, com o quasi-cinema, esse namoro ainda está começando. Ele vai ter que ser humano e imersivo, uma coisa de experiência sensorial intensa.


P: O Neville é um cineasta rigoroso, com uma formação completa, inspirado em mestres como Godard, Kubrik, Eisenstein, Buñuel, Jean Genet… Quem o inspira hoje em dia?

R: Eu sou de Belo Horizonte e desde criança que eu sou assim. A nossa turma só buscava autores libertários como Jean Genet… eram esses artistas que eram um exemplo para o mundo. Eles queriam pôr o Jean Genet na cadeia, fizeram manifestação, passearam na rua, o Ministro da Cultura perdoou… então a gente achava isso maravilhoso. Cultura, as pessoas se revoltarem, buscarem, fazerem, admitirem, o cara falava lá que era gay, isso há 50 anos atrás, quando tudo era proibido, então o filme do Jean Genet, Un Chant d’Amour, esse filme foi talvez o que mais me impressionou e o Genet não é um cineasta, nunca tinha filmado, faz um filme de 15, 30 minutos, sem diálogos, sem trilha sonora, todo de imagens, como eu gosto como o Maksuara e o Mangue-Bangue.
Esse me impressionou e o cara não era de cinema. Também o Luís Buñuel pela perplexidade, Eisenstein, Orson Welles, Mário Peixoto e gosto muito de Humberto Mauro, outro cineasta também que fez um estúdio de cinema nos anos 30 em Minas Gerais, o Estado de onde eu venho, um génio pela simplicidade. Gosto muito de Godard também e outros loucos que tenham por aí. Tinha até vontade de pegar no carro e ir até à Suíça, onde o Godard mora, para ver ele e fazer até um filme.


P: A sua carreira está recheada de encontros e parcerias históricas, por exemplo com Nelson Rodrigues e Glauber Rocha. Aliás o Glauber Rocha escreveu um roteiro para ser realizado exclusivamente por você: O testamento da Rainha Louca. Sempre avança? Só você pode… Como ficou?

R: Foi lindo isso, que o Glauber me surpreendeu dizendo: – Eu quero que você dirija um roteiro meu, eu quero que você faça uma história minha. Só você tem a ousadia e a liberdade para fazer sem fazer parecido comigo. Vão querer copiar Glauber, vão querer fazer do jeito que eu gosto. Você não, você pode fazer do seu jeito. E isso eu achei genial.

Assinou um documento (que está até no livro [Além Cinema]), e eu arranjei um produtor para comprar os direitos. Mas ele me deu e depois viajou para a Europa, para o festival de Veneza. O filme foi mal e ele teve a grande deceção da vida dele, foi vaiado, não conhecia a vaia, foi mortal para ele, ele não sabia o que fazer. Voltou para o Brasil, voltou no dia seguinte. Eu fiquei com o roteiro.

Será que vai dar tempo? Muitas vezes a gente faz essa pergunta. Que fazer de todas as coisas que a gente quer, que a gente tem vontade, que a gente sonha, que pensa… é totalmente possível, mas financeiramente, materialmente tem sido muito difícil, mas eu espero que isso mude. O roteiro que o Glauber me deu, eu falei: – Por favor Glauber, escreve aí. E ele sentou na minha máquina na minha casa, escreveu, assinou junto com a mãe, e alguns dias depois viajou para a Europa e faleceu no dia que voltou. Eu fiquei com o roteiro, arranjei um produtor, um amigo meu, o Hélio Paulo Ferraz, para pagar a todos os herdeiros, dar um preço, 20.000 dólares, isso há 15, 20 anos atrás… esse produtor, com grande dignidade, pagou aos filhos, às viúvas e à mãe do Glauber, D. Lúcia. Então nasceu uma coisa com muita dignidade, ficámos com os direitos por 10 anos, e durante 10 anos eu fui perseguido por uma comissão que apareceu em Brasília com o Ministro de Estado da Cultura, o Sr. Luiz Roberto Nascimento Silva, e o projeto foi vetado. O Ministério da Cultura fez um concurso para roteiros para filmes. Aprovaram mais de 40 e o nosso roteiro foi vetado por manobras políticas.

Depois apresentei na Embrafilme, quando o presidente era o Sr. Roberto Parreiras, e por incrível que pareça, a Embrafilme vetou também o projeto. O Glauber queria que eu fizesse o filme por causa da minha liberdade de estilo e ficaram com muito ciúme disso e não queriam que eu o fizesse. Mas eu também não podia morrer com esse projeto na mão como uma cruz. Passaram os 10 anos e nós não conseguimos filmar e eu perdi os direitos que tinham a validade por 10 anos. Então hoje, teria que comprar novamente os direitos e fazer. Eu gostaria muito de fazer, mas não sei se vai acontecer.


P: O que está a fazer neste momento? Sei que acabou de editar o seu primeiro romance A Dama da Internet, tem o Bye Bye Amazônia para rodar… e quando falei com você estava com vários em mãos em simultâneo…


R: Esses dois que você falou, Bye Bye Amazônia e A Dama da Internet (que a intenção é transformar em filme, logo…) mais um outro projeto chamado A Frente Fria que a Chuva Traz. Esse projeto é baseado numa peça de teatro do escritor Mário Bortolotto. É um escritor do Paraná, que mora em S. Paulo, tem 48 anos, já publicou mais de 50 textos. É um grande artista, também faz trilha sonora, é iluminador, diretor, ator e autor. Eu tenho uma admiração muito grande pelo Mário Bortolotto e esse filme do Mário está aprovado um certo dinheiro há dois anos, mas ainda não é o suficiente para filmar. Está bloqueado porque só libera quando for aprovado até 60 ou 80% do orçamento... Não sou eu que estou produzindo. Eles conseguiram captar um terço do necessário e eu acabei de ligar para os dois produtores e falar para a gente fazer com o que tem. Para a gente não continuar sofrendo assim de captação. Então eu espero fazer a qualquer momento. Eu aceito fazer com um terço do orçamento, acho que é importante. Mas queria demais fazer esses três filmes logo. Para mim eu faria em dois anos, em 2013 e 2014. Vamos ver.


P: O Neville foi o artista convidado para representar o Brasil na 54.ª Bienal de Veneza e integrar a exposição Entre Siempre y Jamás, com curadoria de Alfons Hug, no Pavilhão América Latina. Embora inicialmente tenha sido selecionada a instalação TabAmazônica, acaba por apresentar o vídeo Verde Moreno (4’30’’, 2010, Pará), porque o pedido de financiamento ao Ministério da Cultura foi negado, com a justificativa de corte no orçamento, isto enquanto se observa o crescimento económico vertiginoso que o Brasil tem tido… Estas situações revoltam-no?

R: Sem dúvida, é revoltante para um artista, conseguir um convite para um evento tão importante e o Ministério da Cultura falar que não tem dinheiro. O Ministério da Cultura gasta milhões por ano e não tem dinheiro para pagar uma passagem, um hotel, o frete de uma obra, não tem a capacidade de dialogar com o artista. Porque a capacidade de dialogar é muito importante, não é só o dinheiro, mas simplesmente negaram: – É impossível a obra Tabamazônica ir para o Pavilhão Latino-Americano.

A exposição representava alguns países importantes da América Latina: o Brasil, a Argentina, o México… E o curador do pavilhão da América Latina, o Alfons Hug, é um grande curador e especialista em arte latino-americana.

O Brasil tem uma Fundação em São Paulo que é formada por um grupo restrito, muito poucas pessoas participam dessa escolha, e selecionam lá os artistas para representar o Brasil. Existe uma falta de representatividade, de democracia, de informação… Como é que três ou quatro pessoas ou a diretoria de uma Fundação pode escolher uma obra para representar o Brasil em Veneza? É uma coisa muito fechada, no mínimo...

Eu acho que o Pavilhão Latino-Americano foi a coisa mais importante e mais instigante da 54.ª Bienal de Veneza. Eu visitei os grandes pavilhões, dos países que se acham importantes, e realmente o Pavilhão Latino-Americano com a curadoria do Alfons Hug foi muito interessante, foi uma arte viva… não foi uma arte morta, como tem muito.

E claro, que gostei muito do pavilhão da Alemanha, daquele artista que morreu no ano passado… Foi muito bom. Parece uma igreja. Adorei aquilo. Então com o Hug, nós estivemos muito bem lá, o vídeo que levámos também foi bom. Mas a participação do Ministério da Cultura, só teve uma vantagem, é que continuo não devendo nada ao Ministério da Cultura. Mas eu quero levar a TabAmazônica para a Europa, porque eu sei que é uma peça de grande força, de grande impacto. Acho que seria um sucesso.


P: Tendo em vista tudo o que se tem escrito e reescrito, você se sente marginalizado pelos intelectuais da arte contemporânea?

R: Eu não me sinto, tenho um amor e uma admiração muito grande pelos artistas brasileiros em geral, particularmente na arte contemporânea, e sou muito amigo de vários, como do Cildo Meirelles, do Tonga, da Adriana Varejão, do Ernesto Neto, do próprio César Oiticica Filho... Sou muito amigo então de pessoas muito significativas dentro do panorama da arte, e admiro muito estes amigos. O que acontece não é na área dos artistas, é na área dos administradores culturais, da curadoria, das pessoas que administram a Cultura. É na área de quem distribui o dinheiro. Existe aí um dirigismo político e financeiro, ou seja, as verbas são dirigidas para grupos. Está faltando liberdade com o dinheiro público, sim, liberdade para poder ampliar o “muito para poucos” e “pouco para muitos”… e nenhum para alguns… Essa é a lei do Brasil, mas é uma lei que nós podemos mudar também. Eu não devo ficar reclamando, porque sou um bem-aventurado, porque apesar de tudo consegui vitórias espetaculares. Então eu não posso reclamar e fazer da vida um muro de lamentações. Consegui coisas maravilhosas.


P: Quais são as suas maiores preocupações hoje, como ser humano? E como artista?

R: É uma pergunta muito difícil. São as mesmas preocupações, como ser humano-artista. Eu acho que vivemos um momento crucial da história da humanidade: a soma da tecnologia contra a ideologia. Então quando me perguntam se eu tenho medo de alguma coisa, o que eu vejo hoje e que realmente é muito estarrecedor é a produção de armas químicas e nucleares em massa sem nenhum controle, arsenais nucleares controlados por pessoas e por grupos que não se tem confiança. O mundo está em perigo diante desse tipo de situação e diante dessas experiências conduzidas por déspotas não esclarecidos. Não são pessoas espiritualizadas, não são filósofos. As armas estão todas contra a humanidade.

Mesmo o Brasil que tem um uso pacífico das energias nucleares (tem duas usinas), você também está aí num país que não tem nada a ver com isso, mas todos podemos ser afetados, o mundo inteiro pode. Existe então uma grande mediocridade na liderança mundial. Existe uma filosofia de corte de gastos e de aumento de lucros, de corte de emprego para vender mais. Quem vai comprar tudo isso desempregado, no meio dessa loucura? E o mundo inteiro pensa do mesmo jeito. Vender muito e cortar nos empregos, não existe mais a filosofia do bem-estar social. Então o Neville-artista socialmente vê dessa forma, mas vê também um novo mundo emergente. Eu gosto de falar do futuro.

Eu queria até fazer um reparo da minha relação com o Hélio Oitica e com as obras dele. Quando ficámos amigos e quando trabalhámos juntos, uma das coisas mais interessantes é que a gente não ficava falando do passado, a gente falava do futuro. As obras do Hélio que eu não conhecia, continuei sem conhecer… os Metaesquemas, ele fez 400, 500… Quando a gente estava junto criando e trabalhando a gente não ficava falando de Metaesquema. Ele falava era o contrário, ele falava assim: – Eu nunca mais quero fazer isso, eu quero sair da parede, eu quero entrar no espaço. O Hélio falava: – Eu quero entrar no espaço, igual você tá no espaço com a projeção.

Então eu não tive uma relação de ver as obras do Hélio, eu vi pouquíssima coisa. A única obra de que ele falava era a Tropicália e da ida dele a Londres e da galeria onde conseguiu fazer a Tropicália. E a única obra de que eu falava era o Jardim de Guerra e o Mangue-Bangue, a gente não ficava debatendo obra, Grupo Frente, Neoconcreto, nada. Eu acho maravilhoso o Grupo Frente. Igual ao Cinema Novo: eu amava o Cinema Novo, admirava eles todos… mas eu sentia que tinha um outro caminho.

Mas voltando ao futuro, eu acho que nós estamos nesse momento decisivo, que vai haver grandes movimentos de arte, movimentos coletivos, movimentos criativos, a função social da arte vai mudar, acabar com essa arte burguesa.

Quando eu estive em Lisboa, teve um show do Ney Matogrosso no Terreiro do Paço, saí de lá pelas 24 h para Belém, para o hotel onde eu estava. E aí eu vi hordas de jovens pelas ruas, nas portas dos bares, bebendo, falando, na rua, pelas esquinas… era tanta gente. E eu falei: – Gente! Essa é a única solução! É a arte coletiva, para o mundo! Tantas pessoas bacanas ali como verdadeiros rebanhos. Aquilo em Lisboa me deu muita inspiração, sobre arte coletiva, sobre o que todos, muitos, possam fazer, porque esse é o futuro do lazer, o futuro do pouco emprego, o futuro dessas maluquices de cortes de benefícios que as pessoas têm… vai ter de haver uma função social para a arte. Para que as pessoas possam ser felizes ou buscar ser felizes. Para mim foi muito inspiradora aquela noite.


P: Pegando no que está a dizer, para que as pessoas possam ter uma opinião, algo a dizer, o papel da informação e da educação será também muito importante. Precisamente pelo fato de os movimentos sociais terem muita força, aumenta a importância da informação e da educação.

R: Eu acho que você está totalmente certa e que o maior artista do nosso tempo é o professor. É quem pode ensinar, é quem pode dar educação artística, moral, cívica, espiritual, todo o tipo de educação. É verdade isso que você falou da educação, eu só penso nisso. Os países mais desenvolvidos, muitas vezes pequenos e com lucros enormes são os países que investiram tudo em educação, países que têm zero em analfabetismo. E estas hordas precisam sim de educação e de arte.

Eu achei a noite de Lisboa tão animada, achei mais animado do que em Paris. E aqui no Rio mais ainda. Olha só quantas favelas. Aqui no Rio está acontecendo uma mini-revolução, estão valorizando a música, fazendo instalações em favelas, pacificação, enfim… estão fazendo alguma coisa que é muito significativo, porque é o futuro.

Então, vendo aquelas hordas de pessoas bonitas, homens e mulheres… O que é que se pode fazer para as pessoas ficarem junto, conversar e curtir? É beber. E eu acho que aqui é que entra a arte. A arte entra para que as pessoas possam ficar juntas, alegres e felizes. Podem fazer arte, inclusive arte coletiva, pelo prazer de fazer.


P: Ou seja, há espaços não formais para a aprendizagem também. O acesso à informação, ao conhecimento, à troca de ideias não está necessariamente dentro de uma sala de aula, pode dar-se noutros espaços: nas ruas, na sala de cinema, na galeria de arte… neste sentido o artista é também ele um pedagogo?

R: São novas formas de a pessoa se sentir artista porque as pessoas têm medo de ser artistas, de fazerem parte. As pessoas se sentem inferiores (artistas são só aqueles…). Nós temos que dessacralizar a arte. A arte devia ser um bem coletivo. Dessacralização sim, de linguagem poética e de haver uma visão social e ampla. – Vocês também são poetas, meus queridos amigos, nos serões, bêbados, idiotas, falando besteira, vocês também podem!!


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