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O ESTADO DA ARTE


Aurélia de Sousa, Autorretrato, 1900. Óleo sobre tela, 45.6×36.4cm, Museu Soares dos Reis, Porto.


Rosa Carvalho, L’Odalisque blonde (1992). Óleo sobre tela; 140 x 180 cm. Coleção Particular.


Ofélia Marques, Sem título, não datado. Grafite e lápis de cera sobre papel; 34,2 x 48 cm. Fundação Calouste Gulbenkian – Centro de Arte Moderna.


Maria José Aguiar, Sem título (1974). Óleo sobre tela; 130 x 159,7 cm. Fundação Calouste Gulbenkian – Centro de Arte Moderna.


Maria Helena Vieira da Silva, Moi, réfléchissant sur la peinture (1936-1937). Óleo sobre tela; 41,4 x 24 cm. Coleção Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva.


Maria Helena Vieira da Silva, A Partida de Xadrez (1943). Óleo sobre tela, 81x100cm, Centre Pompidou.


Filipa César, Memogramma (2010) & Insert (2010). Projecção vídeo. Fotografia: Marc Lenot.


Grada Kilomba, Illusions Vol. II, Oedipus (2018). Instalação vídeo com dois canais, HD, cor, som, 45’26” (loop).


Rosa Ramalho, Animal (1960). Material inorgânico, barro pintado; 14,6 x 7,6 x 8,8 cm. Museu de Olaria / Município de Barcelos.


Ana Vieira, Ambiente – Sala de Jantar (1971). Redes de nylon, mesa de madeira pintada, pratos de loiça, copos de vidro, facas em inox, som; 200 x 312 x 312 cm.


Patrícia Garrido, Móveis ao cubo (A.L.T.) (2013). Madeira, ferragens e cola; 95 x 95 x 95 cm.

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Se pedirem a um estrangeiro para nomear artistas portugueses, há fortes chances de que a grande maioria dos nomes de que se lembrará sejam nomes de mulheres: Maria Helena Vieira da Silva, Helena Almeida, Paula Rego, Joana Vasconcelos, talvez também Lourdes Castro ou Ana Vieira (e, por esse facto, falarei menos das mais conhecidas aqui). E é, creio eu, o único país onde esse é o caso, o único país onde a maioria das pessoas não menciona espontaneamente o nome de um homem (faça o exercício e diga-me depois). Mas como é que essa predominância feminina é compatível com a cultura de um país latino, católico, conservador, e que, para mais, conheceu a mais longa ditadura da Europa Ocidental no século XX, quase 50 anos (1926-1974)? Será que a arte foi uma "bolha" igualitária num mundo machista, um espaço preservado? Não verdadeiramente. Os apreciadores das estatísticas feministas são rápidos em apontar que as mulheres artistas representam apenas uma minoria das obras nas coleções de museus (Gulbenkian, Serralves, Culturgest, EDP), entre 20 e 30%. O que é então este paradoxo português, esta disparidade entre a imagem internacional e a realidade local? O Museu Gulbenkian apresenta (até 23 de Agosto) uma exposição sobre artistas portuguesas do século XX (antes, dificilmente encontramos artistas femininas, excepto Josefa de Óbidos, na qual, em todo o caso, pouco se fala), exposição que era para ir a BOZAR antes do incêndio, e que irá a Tours. É a quarta exposição que vejo num mês sobre mulheres artistas, depois da época 1780-1830 no Luxemburgo, as africanas no MAMVP e a abstracção no Pompidou, de descoberta em descoberta, e não é a pior, longe disso. Mas não estou certo de que o referido paradoxo seja aqui elucidado. Apenas um outro lembrete para desmascarar os estereótipos franceses sobre Portugal: seis anos antes de Orsay, o Museu Gulbenkian já tinha organizado em Paris a primeira exposição de envergadura sobre mulheres fotógrafas, mas nunca é mencionada pelas nossas "militantes".

Quarenta artistas são apresentadas; as nascidas depois de 1980 não foram deliberadamente incluídas, por razões claramente enunciadas. Qualquer lista exclui, naturalmente, mas aqui, à excepção de Leonor Antunes e Ana Perez-Quiroga, esta escolha parece-me bastante completa (mesmo se me encontro longe de ser especialista na matéria), e pelo menos (não como aqui), as escolhas são explícitas. E, novamente, apercebo-me que conhecia apenas metade das artistas incluídas na exposição. Elas são apresentadas em dezasseis salas temáticas (o olhar, o corpo, a política, o espaço, a casa, a afirmação de si,...). Mas esses temas não se impõem às obras como grilhões intelectuais, pelo contrário, são as próprias obras que nos fazem descobri-los. Encontramos, portanto, obras diferentes da maioria das artistas em diversas salas. Apenas seis de oito delas eram realmente activas na primeira metade do século; metade delas nasceu depois de 1950 e, claro, a Revolução dos Cravos em 1974 foi um acelerador. 24 delas estão vivas, sendo a mais velha Lourdes Castro, nascida em 1930.

A exposição inicia-se com um contraste. Em 1900, Aurélia de Sousa, então com 34 anos, ex-aluna da Academia Jullian, a viver uma existência cómoda e burguesa na sumptuosa casa de família no Porto (onde faleceu em 1922), pintou este autorretrato de casaco vermelho; não é o seu primeiro autorretrato (um outro, de 1895, é mais íntimo, mais frágil), mas aqui afirma-se com uma força inusitada, e é a obra que, simbolicamente, abre este século e esta exposição. A mulher não é mais objecto, modelo e musa, é sujeito e pintora: certamente, esse é já o caso noutros lugares (ver o excelente livro de Frances Borzello), mas este é talvez uma das primeiras vezes em Portugal (estes sendo discutíveis). Em eco a essa afirmação feminista antecipada, três grandes telas de Rosa Carvalho, evocando Rembrandt, Boucher e David, onde a personagem feminina foi apagada: objecto de desejo desaparecido, voyeurismo frustrado (embora Madame Récamier não fosse exactamente um objecto sexual, mas sim uma mulher independente e assertiva, mas bom, vamos simplificar ...). Uma outra pintura de Aurélia de Sousa, de 1902, mostra-a travestida de homem, e além disso, em santo aureolado, em santo emblemático de Portugal, Santo António, uma audácia então impensável, uma transgressão de géneros, um desafio fazendo discretamente alusão à sua identidade sexual, talvez.

No início do século, se as belas inocências da belga-portuguesa Milly Possoz não fazem sonhar, ficamos por outro lado impressionados com a ousadia dos desenhos eróticos de Ofélia Marques: se a conhecemos sobretudo como uma simpática ilustradora de livros infantis e como caricaturista mordaz, conhecemos menos os seus desenhos de casais lésbicos (que, destaca Emília Ferreira no catálogo, não estão isentos do domínio de um parceiro sobre o outro), que só foram exibidos após a sua morte, em 1988; talvez possamos ler neles uma forma de tristeza, uma solidão, uma resignação. Com o seu marido, o pintor Bernardo Marques, esta artista diletante viveu em Berlim, em Paris, em Nova Iorque, enriquecendo-se de experiências e contactos inabituais no seu meio social. De regresso a Lisboa, desesperada pela mediocridade do ambiente e pela sua separação, suicidou-se aos 50 anos, no final de 1952. Em eco, uma tela de Maria José Aguiar (nascida em 1948) que parece ser uma explosão de falos: a dimensão erótica, consciente e provocadora das suas pinturas conjuga o desejo e a violência, atingindo um esgotamento do sentido, uma banalização irónica da ereção. Mas, segundo a nota de Laura Castro, a artista declarou recentemente que estava cansada da instrumentalização da sua obra para ter um discurso politicamente correto.

Entre as telas de Vieira da Silva (que não assinou com o seu primeiro nome, querendo-se pintora antes de ser mulher), o pequeno quadro apresentado ao lado, Moi, réfléchissant sur la peinture, é um sinal de afirmação "imperiosa e obsessiva" de uma artista notável. Dela também, uma coleção de seixos nos quais são pintados olhos, ao lado de uma tela coberta de olhos rodopiantes como uma plumagem de pavão, mas especialmente esta pintura de 1943, a primeira onde Vieira estrutura o espaço por uma quadrícula de aparência tridimensional, nos antípodas do cubismo, abrindo caminho para as suas composições arquitecturais bem conhecidas (que aqui estão ausentes, e isso não é muito mau, a sua ausência permite melhor compreender a formação da artista antes da guerra). A representação realista dissolve-se nessa desmultiplicação de formas e linhas.

Várias artistas portuguesas movem-se entre a pintura e a escrita: Salette TavaresAna HatherlyLourdes CastroJoana Rosa, e isto poderá ser uma exposição em si. Mas quero salientar três das artistas que têm um discurso político (não são as únicas, podemos citar também os cartazes descolados de Ana Hatherly após a Revolução dos Cravos, esse belo monumento de Ângela Ferreira a uma poetisa falecida, a instalação de Carla Felipe, ou o olhar ácido sobre o turismo de Patricia Almeida), e verifica-se que, por razões de cenografia, cada uma das três beneficia de uma sala dedicada. Em 1948, Maria Lamas, à frente do Conselho Nacional das Mulheres Portuguesas, dissolvido pelo Estado Novo, publicou o livro "As Mulheres do meu País", cujos textos e fotografias testemunham um trabalho etnográfico em profundidade, indo contra o invólucro salazaro-católico então imposto aos portugueses. Filipa César revisita sobre dois ecrãs, em dois filmes de ritmos diferentes (vistos nos Açores há seis anos), o campo de relegação das salinas de Castro Marim, para onde foram enviados os dissidentes sob Salazar: entre estes relegados, um casal de lésbicas, culpadas de um crime contra a moral e a família, que César mostra com pudor, doçura e ternura, em contraponto a uma pirâmide de sal.

Depois dessas duas obras sobre os tempos da ditadura (César também trabalhou muito sobre o pós-colonialismo, em particular na Guiné-Bissau), Grada Kilomba, que é a única artista não branca de toda a seleção, e que já havia apresentado em São Paulo, um trabalho notável em torno das palavras, da descolonização do saber, mostra aqui toda a riqueza do seu talento de escritora, de psicanalista, de discípula de Fanon. Ela conta sob uma outra perspectiva as histórias de Narciso, de Édipo (mostrada aqui sozinha, 45 minutos) e de Antígona (A World of Illusions) num dispositivo sobre dois écrans, com Grada, como contadora, lendo o seu poema sentada sobre degraus negros, e os protagonistas hieráticos, vestidos de branco, de preto e de vermelho sobre um fundo branco deslumbrante, atuando sobre o grande écran vizinho: como é que estas histórias eternas, fundadoras, podem ser encarnadas hoje, e isso em corpos negros? como podem essas violências congeladas na história assombrar o nosso presente? É sem dúvida a obra mais forte desta exposição, a mais actual.

Se Grada Kilomba é a única artista afro-descendente aqui, a única proletária é Rosa Ramalho (1888-1977): pelo menos até recentemente, todas estas artistas vinham da aristocracia (como Clara Menéres), da grande burguesia (como Vieira da Silva ou Menez) ou de famílias de artistas (como Helena Almeida). Mas Rosa Ramalho é uma camponesa, casada com um moleiro, e que, desde o seu casamento até a sua viuvez, deixou de produzir, confinada ao seu papel de esposa e mãe. Vendia as suas pequenas cerâmicas nos mercados e as suas produções destacavam-se tanto do artesanato tradicional que um pintor a notou em 1956 e a fez conhecer. Ao invés da beleza usual dessas estatuetas folclóricas, as suas personagens têm uma violência, uma sexualidade, um carácter grotesco ou sádico, algo entre surrealismo e arte bruta. Se a carreira artística de Rosa Ramalho foi de facto inibida pelo seu casamento, se fizermos um grande caso da asfixia do trabalho artístico de Sarah Affonso devido ao seu casamento com Almada Negreiros, devemos contrabalançar este discurso de sacrifício incluindo as artistas cujos cônjuges, também artistas, aceitaram e apoiaram a carreira (Ana Vieira e Lourdes Castro, entre outras) e notar de passagem que Árpád Szenes ou Victor Willings são bem menos conhecidos e cotados que as suas esposas, e que o arquitecto e escultor Artur Rosa abandonou quase a sua carreira para se tornar o colaborador da sua esposa (a Gulbenkian mostra em "reparação" uma escultura mural dele). "Atrás de toda a grande mulher artista encontra-se um homem", escrevi a propósito de uma exposição sobre este tema de Ana Vidigal.

A casa, por último. A de Ana Vieira, vista em La Monnaie há 4 anos, toda de transparência azulada, revelando o que as paredes dissimulam, fazendo ouvir os ruídos secretos da lareira, convidando a uma deambulação preguiçosa em torno dela. A de Patricia Garrido, estes "móveis em cubo" à escala do seu corpo, montagem díspar de caixotes recuperados, montados como os livros, onde se acredita adivinhar os vestígios, as memórias, as dores e as alegrias do passado, os vestígios de uma arqueologia pessoal. E também aquela, mais secreta, mais íntima, da perturbação sonora de Luisa Cunha, que coloniza os WC do museu tapando os espelhos com papel kraft, e substituindo-os por espelhos minúsculos nos cubículos das casas-de-banho, difundindo em loop "Are you there? Can you hear me? Hello!". 

Por fim, outras que não mencionei e que também me impressionaram: os motivos geométricos de Maria Keil, as impressões corporais de Maria José Oliveira, as telas expressionistas de Graça Morais, a performance conceptual de Armanda Duarte, as esculturas de Fernanda Fragateiro, de Susanne Themlitz e de Inês Botelho.

Belo catálogo de 336 páginas, ricamente ilustrado, com um texto detalhado (em português e em francês) sobre cada artista (não uma nota da Wikipedia como muitas vezes, mas, de cada vez, uma crítica argumentada; uma dúzia é redigida por homens, sem ostracismo aqui, a qualidade primeiro) e várias páginas de ilustrações das suas obras apresentadas. O ensaio introdutório, dos dois curadores Helena de Freitas e Bruno Marchand, tem primeiro a inteligência de precisar o objetivo e os limites da exposição, nem identitária, nem excludente, mas um reequilíbrio em face da sub-representação destas artistas (sublinhando que muitas delas, incluindo Vieira da Silva, recusaram declarar-se feministas). Notamos também que, dos seis prefácios, quatro são assinados por mulheres (a Ministra e três diretoras ou presidentes de museus), sendo os dois homens um editor e um banqueiro ... De passagem, notar que Joana Vasconcelos é apresentada aqui com obras de juventude (incluindo o lustre em tampões higiénicos) antes de sucumbir ao marketing (e se ter tornado politicamente incontornável), mas que, ao que parece, nenhum crítico português quis escrever sobre ela: foi preciso apelar a uma crítica francesa que faz uma leitura feminista do seu trabalho, o que faz sorrir aqui… Bibliografia um pouco sucinta, e as biografias dos contribuidores não teriam sido inúteis, mas fora isso, é um excelente catálogo. [Livro recebido em serviço de imprensa]

 

 

 

Marc Lenot
É desde 2005 autor do blog Lunettes Rouges, publicado pelo jornal Le Monde. Em 2009 obteve o grau de Mestre com uma dissertação sobre o fotógrafo checo Miroslav Tichý, e em 2016 doutorou-se pela Universidade de Paris com uma tese sobre fotografia experimental contemporânea. Membro da AICA, venceu em 2014 o Prémio de Crítica de Arte AICA França, pela sua apresentação do trabalho da artista franco-equatoriana Estefanía Peñafiel Loaiza.