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O ESTADO DA ARTE


Vista exterior do CAM; área coberta Engawa. © Fernando Guerra


Vista exterior do CAM; área coberta Engawa. © Fernando Guerra


Vista exterior do CAM; área coberta Engawa. © Fernando Guerra


Vista exterior do CAM; área coberta Engawa. © Fernando Guerra


Vista exterior do CAM. © Fernando Guerra


Vista exterior do CAM. © Fernando Guerra


Vista interior do CAM. © Fernando Guerra


Vista da exposição O Calígrafo Ocidental. Fernando Lemos e o Japão, Espaço Engawa - CAM. @ Pedro Pina


Vista da exposição O Calígrafo Ocidental. Fernando Lemos e o Japão, Espaço Engawa - CAM. @ Pedro Pina


Vista da exposição Linha de Maré, Galeria da Coleção - CAM. © Pedro Pina


Vista da exposição Linha de Maré, Galeria da Coleção - CAM. © Pedro Pina


Vista da exposição Linha de Maré, Galeria da Coleção - CAM. © Pedro Pina


Vista das Reservas Visitáveis, CAM. © CAM / FCG


Vista das Reservas Visitáveis, CAM. © CAM / FCG


Vista da exposição da desigualdade constante dos dias de leonor*, de Leonor Antunes; CAM. @ Pedro Pina


Vista da exposição da desigualdade constante dos dias de leonor*, de Leonor Antunes; CAM. @ Pedro Pina

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Comece por dizer-se da dificuldade que há em nomear com termos comuns o que sucedeu ao Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian [CAM], nesta reabertura em Setembro de 2024. Não apenas no que se refere ao conjunto arquitectónico, edifício, espaços de exposição e demais recintos, mas também à vocação institucional e museológica. Se no primeiro caso, a junção de uma peça de arquitectura como o é o Engawa – uma cobertura sobre o espaço exterior adjacente à empena sul do edifício original –, desenhada pelo arquitecto japonês Kengo Kuma, inibe a simplicidade de designações correntes como, por exemplo, as de recuperação, reabilitação, remodelação; no segundo, e citamos os princípios da missão respectiva disponíveis no sítio da instituição, aquilo que foi concebido, em 1956, como «espaço para acolher uma coleção de arte moderna e contemporânea», será agora um lugar onde se almeja «a possibilidade de proporcionar experiências impactantes, (…) experiências artísticas imersivas [n]uma ligação mais próxima com a natureza e a ciência», o que constrange a pensar-se numa mera renovação de objectivos sem a ideia de estar-se, de facto, perante uma refundação do Centro. Por isto, este novo CAM parece ser antes um contra-CAM. E não se pense que nesta vacilação, ou declinação, possa apontar-se um deslize por parte da Fundação Calouste Gulbenkian, a quem, em questões de cultura no nosso país, parece ter sido outorgado um papel constitucional semelhante ao do monarca de Inglaterra, ou seja, não pode falhar: tudo o que faça é intrinsecamente bom. Pois a bondade deste contra-CAM tem muito a ser posto sob escrutínio, não tanto pelo que nele haja de fracassos, mas antes pelo que pareceria serem valores seguros surgirem enredados em contradições que fazem talvez temer que mesmo naquilo que se tem por perpétuo, há mudanças que não resultam em que tudo fique na mesma. Na verdade, aquelas contradições são apenas fruto de debates redivivos a que mesmo as instituições doutrinariamente mais blindadas não conseguem resistir. Debates que convém percorrer, e a que o novo CAM oferece irradiações.

O carácter iconográfico obrigatório a que as peças de arquitectura que se relacionam com a arte devem procurar, sobretudo tendo em vista a inscrição num circuito mais ou menos internacional (por vezes, apenas regional) de espaços artísticos visualmente identificáveis para lá das obras e dos artistas que albergam, advém de uma lógica cheia de reveses (e que Hal Foster cunhou como “art-architecture complex”). O fenómeno redundou num “estilo global”, reconhecível em edifícios tão desiguais como a consensualíssima Tate Modern ou o muito embotado Reina Sofia. O debate está aqui inquinado por argumentos que extravasam os campos disciplinares da arte, da arquitectura, do planeamento urbano e das práticas culturais, e que, na verdade, são argumentos políticos disfarçados de divisas estéticas sobre a cidade, onde ora tanto grassa um cosmopolitismo dissolvente (Guggenheim Bilbao), que diz faça-se aqui como se fosse lá, quanto um ultra-identitarismo personalista (Ala Siza de Serralves), que diz faça-se aqui como só cá.

 

Vista exterior do CAM; área coberta Engawa. © Fernando Guerra

 

A peça prodigiosa que, no CAM, Kengo Kuma concede à cidade de Lisboa está enredada nesta contradição. A iconicidade cheia de fotogenia, que apenas espera que se lhe juntem as letras da palavra “Lisboa” à cobertura contra-curvada para que resulte na melhor ilustração gráfica de um destino artístico de prestígio, parece trair uma necessidade de afirmação em termos de imagem arquitectónica que não é retribuída pela experiência da escala extravagante a que ela obriga o lugar, e sobretudo o edifício antigo projectado, em 1983, por Leslie Martin (edifício que foi sempre mal-amado, incompreendido e a que, é inegável, o tempo não vinha favorecendo, apesar do preciosíssimo desenho em escalonamento espacial na tradição dos hanging gardens). Esta nova área coberta, de nome Engawa, e que recria os espaços avarandados em torno das casas tradicionais nipónicas, tem sido sujeita, na divulgação ao público, a um esforço tradutório para inscrevê-la na arquitectura e na cultura portuguesas, o que denuncia aquilo que de mais escusado ocorre neste género de intervenção: a má-consciência por trazer-se qualquer coisa vinda de fora. E é assim que entre ser uma ‘pala’ ou ser um ‘telheiro’, entre ser um ‘alpendre’ ou ser um ‘terreiro coberto’, ou ainda, sem que se tenha poupado na caricatura, entre ser ‘casco de navio’ ou ‘telhado de azulejos’, tem vivido este Engawa as suas equívocas referências imagísticas. O que lhe estará reservado porém, e é o que constitui já um dos seus trunfos, será vir a ser conhecido somente como o Engawa de Lisboa. E melhor sorte haverá ainda se, num golpe de metonímia, o nome Engawa de Lisboa for substituindo a designação Centro de Arte Moderna, recorte terminológico que pouco interessará à actual direcção de Benjamin Weil, curador de artes dos media. E que mostra bem como este CAM é contra o outro CAM. O Engawa de Lisboa não é uma peça fácil, sobretudo ao nível da escala, com desequilíbrios vários que se reflectem, por exemplo, nas diferentes dimensões dos apoios verticais em “V” invertido que resulta num jogo desconexo e pouco elegante, além de estar cheio de intenções desencontradas: quer ser espaço de abertura do CAM ao novo jardim a Sul, mas o contacto visual que dali se estabelece é com uma manta cerâmica cega e duplamente dobrada; quer ser espaço de permanência, mas uma configuração sobre o comprido transforma-o num espaço-canal, mais propício à circulação de circunstância, o que, de resto, quem teve a oportunidade de visitá-lo nos primeiros dias pôde comprovar, transformado que foi no abrigo das filas de visitantes, não muito diferente do que sucede no controle de segurança de um terminal aeroportuário, o que, espera-se, não lhe marque para sempre o uso. Mas à parte a volumetria exuberante, à parte uma detalhação refinada e uma execução irrepreensível – veja-se a maravilha técnica que são as vigas metálicas em perfis encurvados –, o Engawa tem um momento de glória dentro do edifício do CAM, nas janelas da galeria semi-enterrada que lhe pede o nome, e também ela se chama “Espaço Engawa” (onde está montada a exposição «O Calígrafo Ocidental. Fernando Lemos e o Japão»): trata-se de uma longuíssima janela horizontal sobrelevada que dá para o terreiro debaixo de sombra, e onde se pode observar num suave contra-picado, efeito amplamente cinematográfico, a vaga dança dos visitantes e passeantes debaixo do Engawa, puro cinema. Porém, o encantamento maior vem-lhe talvez do que tem de mais discutível, e que é ser um espaço abertamente cenográfico, no sentido em que encena, e reproduz, um espaço segundo. Acontece por isso que, a trecho, tornar-se-á seguramente num espaço cénico, lugar daquelas manifestações artísticas que abafam num museu, não procuram um auditório e também não demandam um anfiteatro. Quem sabe, talvez nem precisem de paredes. Saberemos quais são, com certeza, quando em dois mil e cinquenta, pela reabertura de outro CAM e pela reconversão urgente deste Engawa, se tiver de celebrar a memória de todas elas.

 

Vista da exposição Linha de Maré, Galeria da Coleção - CAM. © Pedro Pina

 

O papel do CAM como sede da mais ampla colecção de arte moderna e contemporânea portuguesa pode trazer perplexidade, senão mesmo indignação, ante a opção curatorial de dedicar a galeria subterrânea às soi-disant «Reservas Visitáveis», isto em vez de consagrar-se uma selecção fixa das cerca de doze mil obras do acervo para exposição permanente na nave principal, como anteriormente, ou no mezanino (ou agora no “Espaço Engawa”). Trata-se, antes de mais, de uma estratégia museográfica, que responde às perguntas ‘como expor?’ e ‘quando expor?’, e não tanto de uma resposta de índole museológica à questão de fundo, ‘o que expor?’. Nestas «Reservas Visitáveis», as obras em exposição irão rodando. O efeito que isto desencadeia não é desprezível, porque dá azo àquelas perguntas de sabor contrafactual a que a história da arte, com a celebração dos seus cânones, costuma reagir mal, como, a exemplo, a de saber se o que foi guardado e esquecido não merece igual atenção à do que sempre esteve exposto. Se desse modo for, que o que já andou exposto terá de recolher a reserva. Inicia-se uma espécie de contra-história, ou uma história alternativa desafiantíssima. Ao assim fazer, este CAM é um contra-CAM. Porque ao poder correr-se ali para ver o muito inesquecível quadro de Jorge Pinheiro Stabat mater (2006), já pintado neste milénio, em vez de um enésimo estudo de vanguarda novecentista; porque ao poder ver-se a muito inesperada sequência de dez xilogravuras do livro-de-artista de Hein Semke Apocalipse à Portuguesa (1975), em vez da consabida collage surrealista; porque ao poder experimentar-se a peça enigmática de Graça Pereira Coutinho Viagem ao interior desconhecido através de linhas paralelas (2015), em vez do tão regurgitado desencanto conceptual; aquilo que este CAM está de certa forma a replicar é o fenómeno de que a arte contemporânea mais se tem aproximado, o da deflagração das contraculturas (que depuseram as vanguardas). E nisto há coragem a assinalar. Tanta que as obras dos modernistas Amadeo, Eloy e Almada, num gesto que dá brado, e que fez subir o tom dos que oferecem as suas reservas a este novo CAM, podem apenas ser vistas numa exacta sala do depósito, penduradas em grades e calhas de suporte, e dispostas sem outra ordem aparente que não a de ocuparem a máxima superfície disponível, com um mínimo de respiração entre elas. Mas por sorte de uma ironia que parece bafejar as manobras arriscadas, se alguém quisesse demonstrar visual e espacialmente esse cisma em que vivem já as instituições de protecção e salvaguarda da arte moderna e da arte contemporânea de modo a distinguir as duas, não teria sucesso maior do que o acaso que se dá nesta sala dos fundos da galeria subterrânea do CAM, e a que alguém chamou já a “gaiola dos Amadeos”. É que a arte moderna ainda consegue pendurar-se e expor-se nas reservas e nos armazéns. A arte contemporânea já não. Precisa pelo menos de um Engawa.

 

[Na linha do que antes se veio cunhando de efeito “CAM e contra-CAM”, é ainda curioso, e eloquente, processo de acareação, face e contra-face, que a exposição de Leonor Antunes, «da desigualdade constante dos dias de leonor*», engendra entre as obras da artista e um conjunto de obras do acervo da autoria de artistas mulheres, o que merece observação estudada e comentários ulteriores; as peças de Leonor Antunes transportam complexidades raras e que não se deixam exibir prima facie, nem colher por imagens, o que lhes conferem um apelo irrecusável]

 

 

 

 

João Borges da Cunha
Doutorado em Estudos de Cultura, Universidade Católica Portuguesa. Arquitecto, Faculdade de Arquitetura da Universidade de Lisboa. Professor no Departamento de Arquitectura da ECATI [Escola de Comunicação], Universidade Lusófona. Investigador nos centros ARQ.Id e CECC. Publicou ensaio, teatro e ficção.