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O ESTADO DA ARTE


Vista do primeiro núcleo da exposição: Arquivo (ver Nota [3]). Fotografia: Cortesia Hélice.


Vista do primeiro núcleo da exposição: Arquivo (ver Nota [3]). Fotografia: Cortesia Hélice.


Vista do segundo núcleo da exposição: 8 imagens, ampliadas para diversos tamanhos, emolduradas e dispostas na parede (ver Nota [4]). Fotografia: Cortesia Hélice.


Vista do segundo núcleo da exposição: 8 imagens, ampliadas para diversos tamanhos, emolduradas e dispostas na parede (ver Nota [4]). Fotografia: Cortesia Hélice.


Vista do terceiro núcleo da exposição: 2 vídeos (ver Nota [5]). Fotografia: Cortesia Hélice.


Vista do terceiro núcleo da exposição: 2 vídeos (ver Nota [5]). Fotografia: Cortesia Hélice.


imagem selecionada do núcleo Arquivo. Cortesia Hélice.


imagem selecionada do núcleo Arquivo. Cortesia Hélice.


imagem selecionada do núcleo Arquivo. Cortesia Hélice.


imagem selecionada do núcleo Arquivo. Cortesia Hélice.


imagem selecionada do núcleo Arquivo. Cortesia Hélice.

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O OLHO DO FOTÓGRAFO TAMBÉM SOFRE DE CONJUNTIVITE, (UMA CONVERSA EM TORNO DO PROJECTO SPECTRUM)

SORAYA VASCONCELOS E SOFIA SILVA

2018-06-24




 

Na viagem de regresso de Sines, eu e a Sofia [1] começámos a falar sobre o projecto Spectrum [2] e sobre a exposição é a poeira que torna o feixe de luz visível, de Duarte Amaral Netto, João Paulo Serafim, Rodrigo Tavarela Peixoto e Valter Ventura. Surge assim o texto que se segue, em que tentámos articular as nossas ideias sobre os propósitos e resultados do projecto. Decidimos manter o formato de conversa.

 

(......)

 

— [Sobre a sala do Arquivo] há um revisitar e, mais, há uma partilha dos seus quatro "arquivos". O facto de eles estarem a produzir uma exposição leva-os a rever o trabalho uns dos outros, algo que talvez não acontecesse se não fosse esse espaço de produção. No Arquivo vê-se o diálogo entre eles, nota-se o processo.
— Há muita brincadeira. Isto vai ao encontro de um texto que te interessa, de Hans Prinzhorn - Artistry of the Mentally Ill -, em que ele fala do "play" (do brincar, do jogar) na arte.
— Sim, que a justifica. O próprio gozo justifica a coisa. Prinzhorn está a falar de gente que é louca e está internada (deixa-me fazer uma adenda: no princípio do século XX um "louco" era alguém que fugia aos padrões da normalidade e não era produtivo). A questão é que os pacientes de Prinzhorn estão a produzir para seu próprio gozo, num sentido catártico, sem finalidade artística, e acho que nessa experimentação há uma liberdade que é muito autêntica. Ou seja, há uma expressividade com a qual é possível criar empatia, que não é limada por um discurso legítimo ou legitimador.
— Há uma ideia de seriedade na arte... outra referência que me ocorre ao olhar para a exposição é A Teoria das Cores, do Goethe. Essa é uma referência "séria", das tais que são invocadas repetidamente (porque são boas, não se lhes pode retirar validade, mas também porque fornecem um discurso legitimado... "pronto a usar"). Parece haver uma necessidade de justificar a componente do gozo através de discursos e regimes visuais "sérios".
— Prazer vs. seriedade? 
— Ou prazer que é legitimado como sério. A questão será entre um "alto" e "baixo" discurso? Aquilo que é sério, está fundamentado... muitas vezes vai beber à filosofia ou outras áreas, que funcionam como bengalas, emprestando seriedade. Mas no final a pergunta é: porque é que isto tem de ser sério? Porque é que um trabalho, para ser bem recebido tem de ter algum aspecto sério?
— Prinzhorn, quando fala do gozo, não o opõe à seriedade. Ele faz essa distinção com muito cuidado, opondo o gozo com finalidade a um gozo sem finalidade. A questão aqui é: porque é que os artistas, que supostamente têm uma liberdade ditada pelo próprio processo de criação, deixam que esse processo seja condicionado pelas balizas que o meio da arte lhes dita? Não sei porquê, mas parece que esse discurso artístico se tornou demasiado importante.
— Uma coisa boa desta exposição é o Arquivo: sim, as fichas têm um formato standard (no modo como foram preparadas e impressas), mas depois há uma grande liberdade no tratamento delas - na escolha das imagens, na colagem, na forma como os textos são inscritos, na origem dos textos (os textos estão cheios de brincadeira no diálogo que estabelecem com as imagens, etc.). Depois eu tenho alguma dificuldade em entender o salto para as outras duas salas. Tenho dificuldade em sair daquele espaço íntimo. Eu sei que não é preciso inventar a roda para mostrar fotografias, mas... acho que os materiais nas outras duas salas estão muito presentes. Talvez para se produzir um discurso verdadeiramente original, ligado à materialidade, à terra, à existência dos materiais – à presença deles –, seja preciso mais tempo, para ver o que as coisas querem ser; não havendo esse tempo, faz-se muitas vezes aquilo que parece óbvio e que ao mesmo tempo é acessível para os outros.
— Por acaso até acho que os vídeos... os dois, mas particularmente aquele em que se vê o arco iris, ainda têm alguma brincadeira.
— Sim, têm os dois e as experiências que eles fizeram, das quais resultam esses vídeos, têm muita brincadeira. A nossa discussão no final tinha a ver com o facto de não ser possível mostrar essa brincadeira, de ela não passar para o modelo de apresentação. Também não sei a fórmula... só não me parece orgânico. Está muito fechado, está muito limpo, está muito polido para dar conta da brincadeira que houve. Mas o que seria preciso para quebrar com essa seriedade? Porque é uma falsa seriedade. Aquilo não deixa de ser sério por ser uma brincadeira. Acho que é aí que está o problema, mas não sei se há lugar para isso. É raro ver… coisas que não estejam polidas.
— A verdade é que esta questão da seriedade tem a ver com a nossa cultura/educação/sociedade, esta coisa iluminista. A objetividade, a cientificidade...
— Estava de novo a pensar na questão do tempo. O Arquivo tem um tempo mais caótico, de condensação, de camadas, de muito. Já o tempo que resulta da leitura deles do Arquivo – das fotografias e dos vídeos – é mais lento, mais contemplativo. Goethe propunha a observação, o olhar para as coisas, o deixar que elas nos afectem. Chamou à atenção para a impossibilidade de matematizar a experiência. Era muito contemplativo: as cores, as nuvens, as plantas... Mas para mostrar as suas conclusões usava a mesma forma que os outros usavam na altura: os tratados científicos. Isto para dizer que as coisas não evoluem de um momento para outro, vão evoluindo, lentamente.
— Às vezes há saltos. São momentos de clarividência. Não quer dizer que se vá produzir uma obra prima, mas há uma compreensão. Não sei quais são as consequências disto, mas acho que eles tiveram um momento de transformação ao olhar para o Arquivo: não só estão a olhar para aquilo que produziram nos últimos anos como estão a olhar para aquilo que cada um dos quatro andou a produzir durante esse período. Perceberam os pontos de contacto entre eles. Eles têm mesmo muitos pontos de contacto, mesmo muitos. Apesar de cada um ter uma linguagem visual diferente, são todos filhos da mesma escola: literalmente, da escola onde se formaram em fotografia, mas também da cultura, do espaço que habitam, onde circulam… é por isso que a linguagem dos quatro se funde tão bem. E sim, esse pensar lógico e científico é transversal aos quatro. E há a discussão em torno da técnica, da metodologia e do rigor que está na base de todo o projecto Spectrum. É uma coisa que está muito presente. Não como constatação, mas como inquietação. Essa problematização expressa-se de formas diferentes em cada um, seja pela ironia ou pela obsessão, mas está bem presente: eles lutam com o peso da técnica, da metodologia, do rigor, da ciência, do dispositivo...
— E isto tem a ver com fotografia?
— Acho que sim. O peso da técnica na fotografia é tão grande que se torna uma batalha.
— Porque é que é tão grande?
— Tens de mexer numa câmara (na verdade não tens, mas eles fazem essa fotografia). É preciso perceber a máquina e pôr a máquina a fazer aquilo que eles querem que ela faça. E para isso é preciso dominar a técnica, superá-la! Há um carácter obsessivo nisso.
— Mas aí o problema é igual para todos... é mais na fotografia que na pintura? Porquê? A partir do momento em que se domina uma técnica, seja qual for… um pintor também tem de decidir como é que vai pintar. A partir do momento em que de alguma forma ele ou ela se reconhece numa determinada forma de fazer, o problema é sempre o mesmo.
— Talvez se possa acrescentar aqui que a fotografia cresce condicionada pelo peso da tecnologia. E o publico é particularmente difícil com meios que julga saber reproduzir. E, portanto, parece-me que sempre houve uma necessidade de produzir discurso em torno da fotografia, porque parece que a fotografia é o meio (visual) de comunicação por excelência. Então a fotografia também batalha com isso. Tenho ideia que há mais espaço na pintura e no desenho, ou nas artes performativas, para uma expressividade menos balizada pelo discurso.
— Não sei… acho que o discurso está presente em tudo neste momento.
— Acho que tem muito a ver com aquilo da seriedade: "estou a produzir uma arte séria: uma arte que pensa, uma arte que reflecte...”
— Que tem um significado...
(silêncio)
— É possível que seja geral, porque duvido que a academia esteja a tratar as outras disciplinas de modo diferente. Mas o que vejo nas escolas é professores a massacrar alunos por causa da necessidade de haver um certo tipo de conteúdo: um conceito. Eu estou-me a marimbar para isso. Acho que é possível ver pela maneira com que se fotografa um conteúdo, que não é um tema, não é um conceito.
— Lá está... a palavra conceito vem da filosofia.
—Na arte não é o mesmo tipo de construção, não pode ser feito da mesma forma, não desperta, não mexe com as mesmas coisas, e aí voltamos ao gozo ("play", prazer, fruição, o que lhe quisermos chamar). Não sei se conheces o Mihaly Csikszentmihalyi, que fala da "flow experience", e é engraçado que na exposição eles referem zonas (o Arquivo divide-se em zonas), e quando se está em "flow" também se diz "estar na zona". Ele descreve a experiência como algo que dilata o tempo, de ultra-concentração, uma pessoa perde a noção de onde está, de quanto tempo é que está a gastar com as coisas, embrenha-se completamente naquilo que está a fazer. Fala disto em relação ao desporto, à arte... enquanto se está no momento, o momento basta-se a si próprio. Não tem finalidade. À partida, diria eu, os artistas gostariam que o espectador conseguisse ter essa experiência: estar perante a obra e deixar-se levar.
— Será que a leitura que eles fazem do seu Arquivo pretende ir ao encontro disso, da vontade de colocar o espectador nesse lugar de contemplação em que a experiência pode fluir? Isto é rebuscado.
— E na verdade nós estamos para aqui a produzir discurso... isto tem qualquer coisa de armadilha.
— Voltando à exposição, ao tal vídeo dos arco-íris, parece-me que tem o mérito de nos colocar num sítio quase infantil.
— É. Eu vejo lá balões, também entro num universo infantil. Mas é isso: a brincadeira está lá, eles exerceram liberdade ao fazer este trabalho e o gozo está lá... em tudo. No pensar as zonas, no ser capaz de se rir do próprio trabalho, das ligações que é possível fazer - entre imagens, entre texto e imagem. Mas talvez seja mesmo impossível escapar ao paradigma do discurso artístico.
— Mas se houve uma coisa gira, na preparação da exposição, foi a resistência deles em produzir discurso sobre o projecto. Eles não queriam conceptualizar. E, na realidade, a certa altura apareci eu a produzir discurso, porque precisava de organizar ideias e entender o que eles estavam a fazer.
— Aí estás-te a colocar no lugar do espectador? Achas que nós, enquanto espectadores é que precisamos de discurso?
— Enquanto falavas estava-me sempre a lembrar da exposição do Hélio Oiticica e do quanto eu curti a exposição. Por acaso fui vê-la no contexto de um seminário de doutoramento. Antes de ir ver, houve uma sessão para produzir discurso sobre a exposição. Eu estive lá sentada, mas não retive nada. Não quero saber. Mas há pessoas que acham que aquilo é que interessa: o discurso!
— Daí a questão das folhas de sala... da palavra, do peso da palavra. Relembro a nossa discussão sobre se devia ou não haver uma folha de sala no Spectrum. No fim age-se como um autómata: é costume haver, faz-se. Não há necessidade… só porque os outros fazem. Não é preciso acrescentar nada. Mas continua-se... lá está(!)
— A arte não é o campo de liberdade por excelência? Então que se ponha em prática essa liberdade. Caguem nas estruturas. Claro que é fácil falar de fora, mas tudo isto exige...
— Tempo e esforço e experimentação...
— E liberdade e não ter medo dessa liberdade e das consequências dessa liberdade.
— As coisas mais cruas que vejo são próximas da natureza; manifestações de comunidade, espontâneas. No Carnaval da terrinha fazem uns caretos. 3 caretos a passear, num sábado à tarde, numa aldeia onde há pouca gente na rua, com uns gajos a mandar foguetes atrás. O que é isto?! e essas pessoas estiveram 2 semanas num armazém a construir aquilo. E tem uma manifestação artística. São coisas com uma natureza mágica, uma função de elevação... espiritual.
— Por isso digo que a fotografia sofre com circunstâncias muito particulares: ela nasce numa altura em que se exige uma separação, em que se querem separar as coisas: a manualidade e a tecnologia. Nasce numa altura tramada e é muito condicionada pelo seu nascimento.
— Nasce mesmo no epicentro do cientificismo.
— Eu achei piada a uma foto do Arquivo, que é um olho inflamado e a legenda diz qualquer coisa como: "o olho do fotógrafo também sofre de conjuntivite". Acho que resume qualquer coisa.
— Sim. E uma das imagens que foi transportada do Arquivo para a segunda sala é uma imagem velada, queimada, em que a película viu luz que não lhe era destinada.
— E no fundo eles são obcecados pela luz, por conter essa luz.
— São filhos do iluminismo, do racional, da ciência. Por muito pensamento poético, abstracto, que eles tenham, são mesmo muito metódicos e isso é algo com o qual eles se debatem…
— É a conjuntivite.

 

 


Soraya Vasconcelos
(n.1977) artista e docente; concebeu e coordenou com Susana Gaudêncio o projecto Estação Vernadsky em Sines para o programa Verão Arte Contemporânea - a exposição esteve patente no Centro Cultural Emmérico Nunes e no Centro de Artes de Sines entre Julho e Outubro 2017; é colaboradora na Propeller .

Sofia Silva
(n. Coimbra, 1982) é uma fazedora de imagens. Dá aulas de fotografia e é editora (coordenadora) da plataforma Nihilsentimentalgia e da revista Propeller .

 

 

 

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Notas

 

[1] O presente texto é originário de uma conversa entre Sofia Silva (coordenadora editorial da Revista Propeller - produzida pela Hélice e editada pela Stolen Books - e responsável pela plataforma Nihilsentimentalgia, na qual se dedica a pensar sobre fotografia e cultura visual); e Soraya Vasconcelos (concebeu e coordenou com Susana Gaudêncio o projecto Estação Vernadsky em Sines para o programa Verão Arte Contemporânea - a exposição esteve patente no Centro Cultural Emmérico Nunes e no Centro de Artes de Sines entre Julho e Outubro 2017 -, é colaboradora na Propeller).

[2] A exposição Spectrum: é a poeira que torna o feixe de luz visível, de Duarte Amaral Netto, João Paulo Serafim, Rodrigo Tavarela Peixoto e Valter Ventura, é uma proposta do colectivo Hélice, que estará patente no Centro Cultural Emmérico Nunes até 1 de Julho de 2018. Está integrada no programa Spectrum, um projecto mais extenso que a Hélice levou a Sines com o apoio da Direcção Geral das Artes, do qual fizeram parte uma conferência, que juntou diversos autores ligados à fotografia em torno de um pensar sobre a tecnologia e a ciência: Rogério Taveira, Orlando Franco, José António Leitão, entre outros; um ciclo de cinema no Centro de Artes de Sines, organizado por Nuno Lisboa, que contou com a presença dos realizadores Susana de Sousa Dias e André Príncipe; e, por fim, uma publicação com a qual irá encerrar o programa Spectrum. Importa referir a importante contribuição de Andreia Páscoa, responsável pela produção do projecto, e de Sofia Silva, que teve a indispensável função de “olhar de fora”, dando apoio na coordenação.

[3] Num primeiro momento encontra-se o Arquivo que reúne mais de 400 fichas A3, em que os quatro autores se dedicaram a catalogar e legendar imagens próprias ou apropriadas, que são distribuídas por 9 “zonas” (Apontamentos de Orogénese e Náutica, Anatomia e Autópsias, Jogos entre o Céu e a Terra, Probabilidades e Incógnitas, Metamorfoses e outros Acidentes, Vertigem e outras Hesitações, Estudos da Terra e do Tempo, Construções e Acumulações, Signos Técnicos e Mecânicos).

[4] Um segundo núcleo da exposição combina 8 imagens, ampliadas para diversos tamanhos, emolduradas e dispostas na parede. E ainda uma comprida caixa de luz, em MDF, colocada no chão. Na sua face luminosa está disposto um longo rolo de papel milimétrico, “furado” a intervalos incertos pelos raios do sol concentrados por uma lupa.

[5] O terceiro núcleo é constituído por dois vídeos: um primeiro vídeo revela uma experiência que dá forma ao fumo. O segundo vídeo apresenta os reflexos arco-íris, sobre fundo negro, produzidos por um prisma de vidro.