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DéLIO JASSE, JOSé PEDRO CORTES E LETíCIA RAMOSBES Photo 2014 | 10ª Edição![]() MUSEU COLEÇÃO BERARDO Praça do Império 1499-003 Lisboa 28 MAI - 07 SET 2014 ![]() 3 equações-entre-espaços![]() Diz-se uma equação ao que se pesa e iguala, resolvendo valores anteriormente desconhecidos. Os três artistas nomeados a concurso para o 10º BES Photo, parecem querer movimentar-se entre incógnitas que permanecem irresolúveis. E aí reside justamente a sua força. A ideia de equação aqui forjada para os projetos que Délio Jasse, José Pedro Cortes e Letícia Ramos apresentam no Museu Berardo, surge desse lado do enigma, algo que está por descobrir e que atravessa, de um modo distinto, os respetivos trabalhos. No prémio que comemora 10 anos de existência e 4 de um profícuo alargamento geográfico ao Brasil e aos países de língua oficial portuguesa (os PALOP), a prática da fotografia tem vindo a arriscar deixar de caber na tradicional gaveta da modalidade artística. Por isso, ao percorrer as salas das exposições que agregam a coletiva, noto que das imagens diarísticas de Cortes até ao vídeo de ficção científica de Letícia - passando pela instalação central com imagens submersas em caixas, do angolano Délio Jasse - há uma exploração multifacetada do mesmo suporte fotográfico. Micro e macro-cosmos, privado e público, pessoal e coletivo, realidade e ficção, ausência e presença não são só contrários. São também as infinitas variáveis nos espaços que estão entre. E os criadores selecionados sabem como fazê-las aparecer. José Pedro Cortes (Portugal) | Um Eclipse Distante What a beautifull fall! Everything shimmering and golden and all that incredible soft light. Laurie Anderson, obituário de Lou Reed (31 outubro 2013) Um Eclipse Distante começa com a presença do obituário de Lou Reed, escrito pela mulher, a performer Laurie Anderson. Visualmente deslocada das restantes obras, quase despercebida no entorno do espaço expositivo, aquela impressão de um site de internet [1] sinaliza um determinado tempo: “o ano em que Lou Reed morreu”, assim se esteve para chamar a exposição. A contextualização nesta espécie de prólogo, o próprio título, aparentemente contradizem o que José Pedro Cortes depois apresenta. Um conjunto de fotografias de maiores dimensões mostram resquícios do quotidiano urbano, lado a lado com séries onde o corpo feminino se celebra nos pormenores e nos movimentos sequenciados. Este é um tempo íntimo, sem história. O tempo suspenso, que se traduz apenas no olhar que demora e repara: “uma visão sobre o momento da minha fotografia”, diz o artista. Cortes já não é só o fotógrafo que se infiltra, silencioso, no espaço público e privado que procura. Mais que vouyeur, ele estabelece uma relação com o fotografado. Como acontece no retrato quase encenado: dezasseis imagens de uma sala antiga, um pano negro pendurado, uma cadeira que suporta o peso da modelo que experimenta posar para ele, ora clássica, ora frágil. Interessado na edição de álbuns, o fotógrafo compromete-se com os fragmentos do mundo: pormenores re-velados dos corpos humanos, vegetais, objetuais, a pequena arquitetura do país invadida pelo sol. São focos de atenção num bairro lisboeta (sabemos, mas podemos tentar adivinhar qual é), como aliás já fora no projeto Costa, sobre a Costa da Caparica, um livro [2] e exposição [3] apresentada no Carpe Diem em 2012. A foto ampliada serve para defender a importância do representado, trazendo para o mesmo plano distâncias e aproximações: o exotismo verde da planta, o cigarro apagado na superfície indefinida, o pedaço de madeira chamuscada, o pormenor do turbo fixado num velho carro, o retrato em close-up, belíssimo, daquela flor. Mas é sempre sobre luz (tangente ou eclipsada) que esta exposição se equaciona. A luz que quase queima a foto do rosto de uma mulher jovem porque isso pertence à materialidade da cidade e da própria fotografia. Délio Jasse (Angola) | Ausência Permanente Certas pessoas padecem do medo de ser esquecidas. A essa patologia chama-se atazagorafobia. Com ele sucedia o oposto: vivia do terror de que nunca o esquecessem. Lá, no Delta do Okavango, sentira-se esquecido. Fora feliz. José Eduardo Agualusa, Teoria Geral do Esquecimento (2012) A instalação fotográfica de Délio Jasse convoca a memória num duplo-sentido: ao nível formal, exibe o processo da analógica; ao nível do conteúdo, traz ao presente o passado colonialista. Uma série de imagens boiam no interior de caixas acrílicas pousadas no chão. Ao longe, vemos a transparência branca, vermelha, azul, amarela bem iluminada e visualmente apelativa. De perto, a emulsão que o próprio artista produz, misturando e alterando os compostos químicos, faz aparecer fotos trabalhadas a partir de sobreposições. Tratam-se de imagens de imagens e documentos que são recolhidos em alfarrabistas, na feira da ladra, ou que pertencem à coleção do artista. Este arquivo de registos da identidade coletiva ao mesmo tempo que pessoal transportam uma multitude de camadas de sentido. A biografia é, em primeiro lugar, do artista que veio para Lisboa aos dezoito anos, trabalhou num atelier de serigrafia e passou o cabo dos trabalhos em aventuras burocráticas para a obtenção da nacionalidade portuguesa. Sabemo-lo mais concretamente presente, porque Délio Jasse nos explica que estão ali também documentos seus, a sua identidade condensada num número. Passaportes, carimbos datados dos Serviços de Migração e Estrangeiros, impressões digitais, cartas de aviso de morte e retratos anónimos convivem com imagens da capital de Angola. Luanda velha e Luanda da nova era. Ausência Permanente constitui a síntese dos trabalhos sobre vestígios e fronteiras que o artista vem apresentando, sobretudo nas séries Arquivo Urbano, Contacto [4] e Pontus [5], todas de 2012. É também um olhar poético para o património histórico, povoado de fendas, temática transversal a outros artistas contemporâneos. O criador diz ser quase um arqueólogo, no desvelamento das imagens, não fossem estas submetidas à manipulação depois do confronto. Portanto, ele afirma que não se quer (ou pode) chegar à verdade: “nenhuma narrativa é pura”. Até porque à semelhança dos projetos dos nomeados, o espaço é ambíguo e o tempo está entre-tempos. Na água que simboliza o oceano de Portugal a Angola, a realidade e a imaginação também se diluem. Letícia Ramos (Brasil) | Nós Sempre Teremos Marte Estamos pois face a dois estados de atenção, a dois modos de pegar numa lupa: o cientista que só procura o novo para o eliminar, por via da repetição do olhar (...) O imaginador não quer obter a garantia de que pode voltar ao mesmo sítio e ver o mesmo, quer sim, pelo contrário, a garantia de que pode, a qualquer momento, “sair do sítio que conhece”. Gonçalo M. Tavares, Atlas do Corpo e da Imaginação (2013) Com Letícia Ramos entramos numa ordem espacial. É até progressivo o caminho, da particularidade imagética de Cortes até aqui. Ainda que o trabalho de Nós Sempre Teremos Marte constitua também uma narrativa íntima. O leque de influências da brasileira assenta nas descobertas científicas, as primeiras transmissões da expedição inter-planetária e expande-se para a ficção, para a música, para os filmes dos anos 50. Ou para a fala amorosa de Rick Blaine em Casablanca (1942) “Nós sempre teremos Paris”, renovada no título. Marte simboliza a promessa de recomeço do mundo, a hipótese de sair do sítio que se conhece. Neste sentido, a artista fabrica o seu universo ao mesmo tempo que reflete sobre a evolução do contexto e dispositivos na fotografia. Formada em arquitetura e cinema, Letícia busca uma poética do desconhecido - que provoque um deslumbramento - rejeitando a rapidez provocada pela massificação cinematográfica. A preto e branco, as fotografias Paisagens e a série de Meteoritos evocam estado caótico ou pré-cósmico a partir de imagens com ruído e poeira, reconhecíveis pela associação aos títulos. São, contudo, resultado de uma paisagem artificial. Alguns apontamentos subtis desnudam o próprio trabalho de ateliê, com estudos quantificando a atuação da luz sobre o papel, caso do trabalho Fita Teste do microfilme. Já o díptico que parece repetir a mesma imagem, mas em posição invertida, joga com a percepção e imaginação do observador. Podemos ensaiar contornos à mancha de cor produzidas, como quem quer dar nomes às nuvens. A artista cita, curiosamente, essa simulação no título da obra Teletransporte, a semelhança à figura humana, virtual ou real. Na última sala, um elogio ao cinema. Vostok (2013-2014) [6] é o filme pertencente a um projeto que incluiu uma performance ao vivo (cuja gravação é incorporada na banda sonora), um LP, um website e um livro de documentação. A inspiração surge após uma residência da artista no Pólo Norte e a notícia de uma base de pesquisa na Antártida, onde se estuda o campo magnético do planeta: “Em 2012, cientistas russos puderam retirar amostras do lago submerso Vostok, o resto é invenção”, nas palavras de Letícia. A expedição criativa concebe-se no imaginário da artista com sede num estúdio de micro-filmagem e com as miniaturas que produz. Antecipam-se incursões científicas, como na literatura de Júlio Verne e Jacques Cousteau. O universo é um deserto de possibilidades e novas equações. De uma sensibilidade invulgar, a última mostra da coletiva transmite uma serenidade que nos envolve, a tal familiaridade inquietante. O nada é ainda-não-ser. Rita Xavier Monteiro ::: Notas [1] Ver: http://www.easthamptonstar.com/obituaries/20131031/lou-reed [2] Ver: http://www.vimeo.com/85702013 [3] Ver: http://www.carpediemartepesquisa.com/pt-pt/content/jos%C3%A9-pedro-cortes [4] Ver: http://www.deliojasse.com/Contacto [5] Ver: http://www.deliojasse.com/Pontus [6] Ver: http://www.leticiaramos.com.br/category/vostok/ ![]()
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