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JOÃO PENALVAT.D. TRANSMISSÕES DIRECTASPALÁCIO DOS CORREIOS Rua Guilherme Costa Carvalho, 38-3º Piso (à Av. dos Aliados) 4000-274 Porto 26 SET - 28 NOV 2015
Se o relógio é uma forma humana de coisificar o tempo – uma representação numérica da temporalidade que se impõe à realidade fluida e ao anacronismo do tempo mental –, T.D. dirige-se para uma interioridade que coloca-nos para além desta natureza objectificada do relógio. É precisamente no confronto com a visão da máquina, que o tempo retorna ao seu temperamento abstracto, porquanto o que vemos já não é a depuração e serenidade da cadência de um mostrador, mas todo o mecanismo intrincado e maquinal que o faz operar e está ocultado por trás do mostruário que ordena o tempo. O artista prossegue neste movimento inverso, deslocando a câmara de vídeo-vigilância (o aparelho utilizado para a captação das imagens) do seu habitual lugar exterior para o interior deste instrumento de medição e ordenação pública, que – em certas situações, tal como a própria câmara de vigilância – determina e regula a vivência dos que estão submetidos à sua presença. A transmissão em tempo real de T.D. coloca-o numa imobilização no tempo do presente, na medida em que se trata da inscrição de uma temporalidade que – tal como sugere o curador da exposição, João Pinharanda – não retorna, nem avança sobre si mesma. Desta forma, o passado e o futuro manifestam-se apenas como memória ou projecção subjectiva das realidades concretas do presente, exprimindo um tempo que tende a não ser, a não existir: “De que modo existem aqueles dois tempos – o passado e o futuro –, se o passado já não existe e o futuro ainda não veio? Quanto ao presente, se fosse sempre presente, e não passasse para o pretérito, já não seria tempo mas eternidade. Mas se o presente, para ser tempo, tem necessariamente de passar para o pretérito, como podemos afirmar que ele existe, se a causa da sua existência é a mesma pela qual deixará de existir?” [1]. Neste sentido, o tempo da obra apresenta-se idêntico ao tempo medido pelos relógios humanos, caracterizados por Heidegger como uma “sequência de agoras”, detendo analogamente a mesma duração transitória da exposição. Num outro sentido, a transmissão em tempo real de T.D. subverte o uso habitual que Penalva faz das tecnologias de filmagem, nomeadamente na sua exploração do filme, onde a utilização de um dispositivo de gravação impõe uma mediação temporal entre a imagem captada e a imagem posteriormente vista e editada. Desta forma, embora não haja uma edição posterior das suas imagens – o que, também, determinaria uma outra duração para elas –, T.D. convoca elementos que pertencem à montagem, tal como a projecção sequencial de imagens. Toda imagem fílmica é indissociável de um antes e de um depois que lhe são inerentes, oscilando “num passado e num futuro de que o presente já não é senão um limite extremo, nunca dado.” [2] Neste sentido, há uma transitoriedade intrínseca à imagem do filme, que se presentifica passando a ser imediatamente passado, pois trata-se de uma imagem fugaz, infixável – porventura, como o próprio carácter esquivo do tempo. A transmissão a partir do relógio da torre da Câmara do Porto é a quarta versão de um conjunto de apresentações desta obra que João Penalva realizou em diferentes locais e instituições: um palácio alemão do século XIX (Wasserschloss, Goss Leuthen, Brandenburgo, Alemanha); um hospital militar oitocentista (Irish Museum of Modern Art, Dublin, Irlanda); e, uma igreja do século XVI (Galeria Solar - Galeria de Arte Cinemática, Vila do Conde, Portugal). Portanto, numa contemporaneidade cingida ao funcionalismo dos relógios mecânicos, T.D. convoca uma tecnologia em desuso em locais de ascendência dominadora, invocando assim uma reflexão acerca das dimensões ideológicas e abstractas do tempo.
Sara Castelo Branco
<b>NOTAS</b> [1] SANTO AGOSTINHO. Confissões. Porto: Livraria Apostolado da Imprensa, 1981, p. 304]
[a autora escreve de acordo com a antiga ortografia]
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