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CATARINA BRAGAPOST-WORLDPLATAFORMAS ONLINE 21 JUN - 21 JUN 2020
A exposição “post-world” de Catarina Braga (Guimarães, 1994) é uma instalação digital de .jpgs, .pngs, emojis, símbolos e texto, de dimensões variáveis e, além disso, articuláveis. Com os elementos que nos são dados pela artista podemos organizar ou compor um desenho da exposição, disponível para visualização e interacção aqui. Caso fossem ilimitadas as opções, ilimitadas seriam também as possibilidades de apresentação destas obras. Isso não acontece porque o espaço plano da internet replica, ou representa, um espaço expositivo que “existe”. Assim, este espaço expositivo chamado CONTER é apresentado como “a virtualização de um espaço expositivo”. A Dentro, um espaço expositivo fundado e gerido pelo artista e fotógrafo Carlos Campos, funciona dentro do seu atelier, dividido com as também artistas Maria João Ferreira e Beatriz Bizarro. Este espaço, lemos na apresentação breve do projecto, “trata-se de uma sala onde foi construído um white cube com o objectivo de criar uma ligação entre o espaço expositivo e o espaço de criação de Arte Contemporânea.”. Uma tentativa de promover o diálogo, mais íntimo e próximo, entre quem faz e quem vê, e porventura quem promove este encontro. Uma dinâmica a que o Porto - onde fica situado a Dentro (Rua do Almada, 254, 1º andar, sala 14) -, mais do que outros lugares, sempre nos habituou.
A partir de 1 de Abril, e como resposta à necessidade de adaptação dos contextos expositivos (no caso de a vontade de manter o formato clássico não aguentar a voracidade da exposição), o espaço Dentro auto-simulou-se no espaço virtual, dando origem a CONTER. Não será inocente dizer-se que CONTER pertence a Dentro, nem que a virtualidade do espaço de exposição nos fale no seu anúncio, o seu nome, de uma inclusão mas também de uma repressão. Um nome de acção dúbia, ou melhor, um nome esclarecido quanto ao que a virtualidade pode. Sobretudo em relação com o nome do projecto de origem, Dentro, que nos diz, na sua condição secundária de existência enquanto advérbio, que também condiciona, os verbos, mas que aloca, sobretudo. O espaço físico de Dentro foi replicado ou representado em CONTER, de forma a manter-se presente a memória do espaço físico original no imaginário das próprias propostas. O espaço tem vindo a ser utilizado livremente, considerado e desconsiderado consoante as sensibilidades dos artistas, face às características físicas que replica em imagem. Diz-nos a apresentação de CONTER que “Cada artista foi convidado a intervir sobre fotografias e vídeos do espaço expositivo da Dentro, nas quais este se encontrava vazio. Cada convidado teve a oportunidade de desenvolver a sua própria exposição a partir de uma simulação, de interpretação livre, que parte do espaço da Dentro mas que simultaneamente o reestrutura.”. Tem vindo a ser apresentada nas redes sociais Instagram e Facebook a partir de publicações e exposições regulares. Já contou, desde o seu início, com participações como as de Ana Pérez-Quiroga, Marta Arcanjo, Gaspar Cohen, entre outros.
Passíveis de serem lidas de maneiras multiplicadas, há coisas que me inquietam nesta proposta de um pós-mundo em Dentro. Uma delas é a relação já exposta entre o verbo conter e o advérbio dentro. Outra delas, a apresentação da ficha técnica virtual (instalação digital de .jpgs, .pngs, emojis, símbolos e texto, de dimensões variáveis) e o carácter de exposição “faça você mesmo”. Intrigaram-me. De facto, esta ficha técnica não será nem mais nem menos óbvia do que afirmar que uma pintura é uma pintura, nas folhas disponibilizadas para o efeito em exposições não-virtuais. Parece, no entanto, um movimento de lembrar códigos e gestos que não pertencem à liberdade aparente do espaço virtual, e mais a uma institucionalidade burocrática de definir, de dizer o que é, uma exigência absoluta de apresentação pela qual se pautam as instituições e a que é problemático quando se furtam. Esta ficha técnica, antes até de ver, experimentar e construir a exposição, é uma das expressões mais curiosas quanto a si própria, e posso dizer que anuncia o que Catarina nos diz quanto à sua prática. No seu site, que é também o espaço onde podemos elaborar a nossa formulação expositiva com as suas obras, podemos ler que o seu trabalho é caracterizado pela multiplicidade e cruzamento de variados meios, como a instalação, o vídeo, fotografia, texto, publicações ou cerâmica. Meios com os quais Catarina procura contribuir e alargar a discussão sobre os nossos sistemas de crença e relação que temos com o mundo. Elementos recorrentes na sua prática - ou gatilhos para o questionamento da ideia de verdade universal ou absoluta - são as plantas de plástico, fotografias de paisagem retiradas do Google Earth, entradas na Wikipédia ou imagens encontradas online. As instalações que constrói, diz-nos, tentam produzir o mesmo ambiente “open-source” vivido na internet. À luz desta afirmação, que aqui trago ao português de forma livre, podemos ver a inversão deste processo a acontecer: pequenos resquícios de burocracia são espalhados na liberdade virtual. Considerando as séries de crime, que me assolam a memória da quarentena, penso na possibilidade de uma transferência a ocorrer aqui. Diz-nos o texto de apresentação deste pós-mundo - lugar ou momento depois do mundo - que “Num mundo onde não teremos corpos físicos, a única forma de comunicação que iremos ter entre nós será através de algoritmos, imagens encontradas na internet, ficheiros de sound wave e vídeos exportados para mp4. Seremos fotografias flutuantes, PDFs guardados, palavras perdidas numa thread do subreddit; seremos todos linhas de código escritas num mar de 0s e 1s. Não haverá qualquer necessidade de sairmos para o mundo exterior, podemos simplesmente ficar pela internet. “. Talvez os últimos tempos (na minha versão esperançosa) nos tenham esclarecido do contrário: já não podemos simplesmente ficar pela internet. Por todas as razões.
Outra das coisas que me inquieta - e a inquietação é sempre fruto de algo ainda não assimilado, e em teoria, bom e mau - é a utilização da imagem do espaço físico original, Dentro, apenas como plano de fundo. Quando uso plano, refiro-me não só ao carácter da imagem mas sobretudo à desconsideração da representação de espaço. Podemos montar a nossa versão de “post-world” com a presença do espaço documentado mas desconsiderando-o. Ele existe, mas nós não estamos lá, parece afirmar. E não estamos mesmo: fazemos scroll (ou seja, o espaço é que se mexe, e não nós nem o nosso olhar perante ele, como seria esperado em relação com um espaço-espaço) e vão-nos aparecendo elementos, nem todos móveis, da exposição. Curioso como todos os emojis são estáticos, as novas rotundas de circum-navegação. Podem-se sobrepor às fotografias (elementos móveis da exposição) grelhas deformadas e entre as fotografias são passíveis de acontecer também as sobreposições. Mas não como bem queremos. Há imagens determinadas para o plano principal, independentemente da nossa vontade.
Esta exposição, no domínio do que poderia ser toda-a-liberdade, tem regras e leituras particulares, e temos de nos disponibilizar para elas. O pedido-exigência de atenção é uma das outras coisas que me inquieta nesta proposta de Catarina, e novamente um resquício da transferência da não-virtualidade. Apesar de fazermos scroll e de lidarmos com um ecrã, estas imagens ainda exigem atenção para poderem ser vistas, fugindo às regras não-escritas do fluxo de imagens virtual. Será porventura essa a sua resistência artística, e isso inquieta-me também.
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