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JAMES NEWITTHAVEN![]() GALERIA BOAVISTA Rua da Boavista, 50 1200 Lisboa 22 JUN - 17 SET 2023 ![]() E Mare Libertas – Do Mar, a Liberdade![]()
Uma pequena plataforma abandonada ao largo da costa britânica, construída pelo governo com funções militares de defesa anti-aérea no tempo da II Grande Guerra e, na altura, situada em águas internacionais, é ocupada por um casal na década de sessenta que reivindica a sua independência do Reino Unido denominando-a de Principado de Sealand. Criam bandeira, hino, constituição própria, cunham moeda e emitem selos e passaportes, repelem invasões e fazem alianças para a constituição de uma empresa com intenção de vir a ser um “refúgio” (Haven) de informação digital não regulada [1] pela jurisdição britânica - a HavenCo - e que existiu durante um curto período (2000-2004). Estes são factos reais e o ponto de partida da investigação de James Newitt que, ao longo de três espaços na galeria, conjuga uma narrativa ambígua entre a realidade e a ficção apresentando uma proposta crítica em que a utopia e a distopia se tocam, numa reflexão também sobre a natureza humana, o poder, e o controlo da informação. O início da investigação para o projecto Haven surgiu há mais de dez anos quanto o artista, no contexto de um outro trabalho na Austrália [2], fez uma pesquisa sobre micro-nações tendo lido o livro de Erwin Strauss How to Start Your Own Country. Nessa edição Strauss afirma que Sealand é o caso de maior sucesso de implementação de um país nos tempos modernos (Strauss, 1979/1999: 10, 25,132), apresentando na capa do livro justamente duas fotografias da plataforma Sealand (conhecida anteriormente por HM Fort Roughs ou Roughs Towers). Na sala de entrada na exposição são dados a ver aos visitantes alguns elementos que identificam o tema de investigação de Haven, nomeadamente o livro de Erwin Strauss, e outra documentação variada incluída em duas vitrines (livros, fotografias, desenhos, esboços, textos, selos emitidos pelo principado e uma cópia da constituição de Sealand) (Imagens 1 a 4). Essas vitrines incluem também um conjunto de emails enviados pelo artista a Ryan Lackey (um dos co-fundadores da HavenCo) que, funcionando como documentação do processo de investigação, interpelam o visitante e promovem o seu envolvimento na procura não só da identidade de Ryan, mas também de respostas às perguntas formuladas pelo artista, respostas essas que nunca foram recebidas. O desconhecimento deste facto pelos visitantes (que ficam também na dúvida se essas missivas foram ou não criadas de uma maneira fictícia pelo artista) estabelece, logo à partida, um pano de fundo de uma narrativa que, de uma maneira antecipada se percebe, vai desenvolver-se entre a realidade e a ficção. Esta situação encontra outro ponto de ancoragem nas imagens expostas nesta primeira sala através da intervenção do artista sobre as fotografias por ele apropriadas da família Bates [3], deixando em aberto a identidade dos retratados pela ocultação da sua face (Imagem 5). Do primeiro espaço passa-se para um segundo através de uma estrutura que, ao simular um bastidor para albergar os servidores do data center do Sealand, faz também a transição de uma investigação tradicional baseadas em documentos para um contexto mais abstracto e mais aberto em que o artista procura, através de meios informáticos, possíveis pistas de desenvolvimento do seu trabalho (Imagem 8). Surge assim o vídeo Lapse, uma peça em loop constituída por imagens que passam em rápida sequência, resultado das sugestões e do diálogo de Newitt com motores de busca e algoritmos que trabalharam sobre bases de dados na internet (a partir de um conjunto de imagens que estavam na posse do artista) e que se articulam nesta peça numa exploração artística que se pode associar a um brainstorm digital. Entre imagens que, reconhecidamente, têm a ver com o projecto e outras que só vagamente lhe podem ser associadas, é proposta uma viagem alucinante pelo mundo da informação que o visitante tenta, em vão, organizar num todo coerente (Imagem 9). Esta “ante-câmara” do último espaço da exposição, é uma abordagem brusca e uma antevisão de um dos temas de Haven - a memória e a informação. De facto, o que o vídeo Lapse sugere não são mais do que fragmentos, lapsos, missing links, memórias vagas (de imagens vistas na primeira sala), pistas sem respostas, notas de rodapé que são levadas a texto principal, lógicas com coerências de difícil entendimento, que deixam o visitante expectante. Na sequência da exposição, o andar superior alberga a instalação vídeo de três canais Haven, que dá o nome à exposição, e que conjuga imagens documentais, com diálogos ficcionados, animação 3D, narrativa em voz-off e factos reais (Imagens 11 e 12). Este vídeo, com cerca de meia-hora de duração, faz não só a ligação com o material visto nas duas salas anteriores, mas também problematiza a natureza da informação e do seu arquivo, abordando as questões do poder, do controlo, e da regulação da informação, especulando ainda sobre as tecnologias mais recentes e ao uso dos oceanos como repositório de informação. O vídeo começa com uma luta de Kendo entre dois personagens, um deles é Sean Hastings, um dos co-fundadores da HavenCo, o outro é um segurança da plataforma [4], não sendo inocente esta primeira cena de disputa que, mais do que um exercício de uma arte marcial, é uma metáfora para o desenvolvimento subsequente do vídeo ao abordar duas visões distintas e dois temas sempre presentes em conflito – poder e utopia – já que a pequena plataforma de Sealand foi, não só palco de lutas pela soberania, mas também da disputa de diferentes utopias tendo por um lado o principado de Sealand, um país feito à medida pelo casal Bates e, por outro, a HavenCo, com o seu “paraiso” de informação livre de regulação, desenhado por Sean Hastings e Ryan Lackey. Esta contenda, através de um discurso veiculado pelos detentores da Sealand e por parte da HavenCo., sucede-se ao longo do vídeo com narrativas ocasionais em voz-off de Joan Bates (esposa de Roy Bates) e a articulação fictícia de Ryan Lackey da HavenCo. Estes diálogos têm paralelos quando se menciona a actividade económica, à margem da lei, da rádio-pirata de Roy Bates nos anos sessenta (a Radio Essex, que Bates mantinha numa outra plataforma ao largo da costa antes de ocupar a Roughs Towers) e a “internet-pirata” da HavenCo., ou as questões da “memória” no processo da eliminação gradual da informação dos servidores da HavenCo (uma salvaguarda de segurança) e a doença de Alzheimer que vitimou Roy Bates em 2012. Neste particular é notável a sequência de propostas imagéticas e sonoras de James Newitt, com a sugestão da degradação da informação num discurso de Roy, que se torna cada vez menos inteligível, terminando com um espaço de silêncio sem imagem. No seguimento desta pausa o vídeo finaliza com uma reflexão sobre o futuro do mar como repositório de informação, numa referência ao programa Natick da Microsoft [5]. Ainda no domínio das utopias e projectos visionários no mar, o relativamente recente Seastanding Institute [6] (2008) e a ideia de seavilization (Quirk e Friedman, 2017), aponta para a ideia alternativa da criação de comunidades flutuantes em águas internacionais politicamente autónomas (com preocupações sociais e ambientais), um projecto que, de algum modo, tem uma vaga inspiração no Principado de Sealand e fez parte da investigação do artista que o documentou numa das vitrines da primeira sala. E Mare Libertas – Do Mar, a Liberdade – continua a ser o lema do principado de Sealand, mantendo a ideia utópica de independência e autonomia muito enraizada no espírito das comunidades dos anos sessenta, mas que rapidamente foi confrontada e abalada por valores de uma sociedade em que o poder, o controlo, a economia e a vigilância não se compadeciam com “ilhas” utópicas que exorbitavam da sua esfera de domínio, fazendo da informação um dos seus mais valiosos activos e razão de disputa no início do século XXI. Reconhecemos neste projecto um modus operandi recorrente na obra de James Newitt, em particular nos últimos trabalhos, nomeadamente com a utilização de documentação de factos reais como ponto de partida para a especulação, e a apresentação da obra sob a forma de instalação (documentos, objectos, vídeo). É disso exemplo, Delay (2018), ao incluir o vídeo I Go Further Under (2017-2018) [7], em que também questões relacionadas com poder, independência e utopia estão presentes no cenário de uma pequena ilha. Porém, em Haven o artista expande as temáticas ao abordar questões fundamentais do nosso tempo numa visão reflexiva sobre o lugar da utopia, a informação e a sua regulação, a memória, a soberania, o poder económico e a política, o ambiente e a tecnologia, usando uma linguagem artística que se desdobra em diferentes níveis fazendo uso de mediações distintas, numa narrativa a todos os títulos exemplar, didáctica e estimulante.
José Oliveira
[1] Pode fazer-se um paralelo com os paraísos fiscais no domínio financeiro.
QUIRK, Joe, e FRIEDMAN, Patri (2017), Seasteading: How Floating Nations Will Restore the Environment, Enrich the Poor, Cure the Sick, and Liberate Humanity from Politicians, Nova Iorque: Free Press STRAUSS, Erwin (1979/1999). How to Start Your Own Country, Boulder, Colorado: Paladin Press ![]()
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