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DAYANA LUCASDIA-A-DIAGALERIA LEHMANN + SILVA R. do Duque da Terceira 179 4000-535 14 JUN - 07 SET 2024
Gonçalo M. Tavares
A exposição “Dia-a-dia” da artista Dayana Lucas, patente na Galeria Lehmann+Silva, entre 14 de junho e 7 de setembro de 2024, convoca para o espaço expositivo um conjunto de obras que assumem uma desfronteirização entre baixa e alta cultura, através da exaltação de processos manuais e artesanais, que nos impelem a pensar o mundo e o quotidiano para lá dos aspetos industrializados, promovendo o agregamento entre coletividade e individualidade. O quotidiano, tema recorrente na Arte Contemporânea, é percebido pela artista como algo onde a vida pulsa vibrante no 'agora’, que ata a bagagem do passado com o espanto do futuro. (E não é o tempo, conceção subjetiva, das mais doces e terríveis invenções da Humanidade?) É no dia a dia que as nossas histórias individuais se enlaçam com as dos outros, estabelecendo-se constelações de relações formadas por linhas imaginárias. A artista materializa, desta forma, filamentos da sua vida pessoal, social e profissional nas suas obras, fomentando, igualmente, um arreigado sentimento de comunidade e de responsabilidade do seu/nosso papel diário na construção de um mundo mais justo, empático e livre da exploração indiscriminada de recursos humanos e materiais. A exposição inicia-se a partir de um quadro de tela branca cujo centro, recortado numa forma oval, acolhe um minúsculo peixe dourado de traços simplificados, executado por um ourives de Caracas. A obra foi inspirada numa recordação de vida da artista que, em 2010, altura em que a mãe lhe quis oferecer uns brincos pelo Natal, se sentia fascinada por um episódio particular do livro “Cem Anos de Solidão”, de Gabriel García Márquez, no qual a personagem do Coronel se dedicou a fazer peixinhos de ouro, não pelo dinheiro, mas pela satisfação do trabalho e do processo implícito. Assemelhando-se a estrutura central do quadro a um olho, tal instiga a interpretar a respetiva obra como janela aberta para as memórias e o mundo interior da artista, mas também para as possibilidades infindáveis da arte, uma vez que não tendo Dayana Lucas optado por transformar os peixinhos em brincos, atende igualmente à singularidade de cada espetador na criação das suas próprias histórias e revisitação de memórias. Esta articulação entre histórias do individual e do coletivo é perpetuada, na exposição, através de composições de linhas bordadas, sinuosas e elegantes, em tecidos delicados, que desprovidos de suporte e cruamente cravados na parede, se tornam uma espécie de pele furada para ser exposta. A artista devido ao seu vínculo familiar à Ilha da Madeira, desde cedo se familiarizou com o bordado típico da região. Numa investigação mais aprofundada percebeu que as bordadeiras cujas mãos se desgastam nesta dança hábil do bordar, os olhos ardem de cansaço e as costas curvadas se ressentem pelas longas horas de trabalho minucioso, vivem uma injustiça laboral assente na falta de consideração artística, no desgaste físico e na precariedade financeira. Perante as dificuldades que a vida acarreta, ocorre à artista o termo senso-comum, na medida em que este sintetiza dois aspetos fundamentais: a sensibilidade e a comunidade. Pensamento que se alinha ao de Michael Sheringham que, em “Configuring the everyday”, nos indica que se o entorno onde nos encontramos imersos pressupõe outras pessoas, quotidienneté implica, portanto, comunidade. [1] Num mundo vergado ao capitalismo, importa pensar e agir de forma sensível, e com o devido cuidado profilático para com o ‘outro’, seja humano ou não-humano. E nesse sentido permitirmo-nos elaborar um abstrato ‘exercício de pele’ que implique o sentir pulsante da vida, mesmo nos aspetos mais aleatórios: no rio que corre para o mar, no vento que esvoaça a roupa lavada, nas sementes que brotam da terra, na mão que limpa uma lágrima, na linha que a agulha carrega, ou no gato que se enrosca no nosso colo. Para a artista, o dia a dia pressupõe o “sentido quotidiano de estar-vivo-no-tempo" que acarreta essa “pulsão” e o poder da “metamorfose” [2], para lá dos clichés que assoberbam a definição de quotidiano: o despercebido, o trivial e a repetição. Desta forma, abre-se espaço para as dualidades do comum e do especial, do exótico e do endótico, da previsibilidade e da serendipidade, da evidência e do enigma. E num dia qualquer, tanto cabe a filosofia do infraordinário de Paul Virilio e Georges Perec, “O que fazemos quando não fazemos nada, o que ouvimos quando não ouvimos nada, o que acontece quando nada acontece” [3] como, avassaladoramente, “a vida muda num instante. Um instante normal” [4], como vaticina Joan Didion no seu livro “O Ano do Pensamento Mágico”. A existência dos opostos, a sua paradoxa ligação, e a forma como fluidamente são substância da vida, e do dia a dia, é transportada para a arte de Dayana Lucas através da relação que estabelece entre o alto e o baixo, o interno e o externo, e o que se vê e o que não se vê. Os seis trabalhos em bordado Madeira que a artista apresenta na exposição, com colaboração da Sr.ª Maria, sendo cinco em tecido branco pérola e um em tecido preto, são tela para as linhas de diferentes cores e tons de amarelo, verde, cinza e cru, que se mostram sinuosas, orgânicas, em desenhos delicados e que, não estando acompanhadas por qualquer tabela, avivam a interpretação e imaginação individuais do espetador. A artista que faz curvas como forma de alento perante o “excesso geral da vida”, expurga, através delas, “a dor e a beleza” [5] sustentando a afirmação de Gaston Bachelard que “só o sonhador que percorre caminhos arredondados para contemplar, conhece essas joias simples do repouso desenhado” [6]. A curva pode ser uma geometria habitada, como canto, onde a poeira se adensa e a aranha tece habilmente a sua teia. E como metáfora de um espaço abstrato onde nos recolhemos, regeneramos e partimos para o mundo sanados pelas possibilidades múltiplas da elasticidade e flexibilidade da dobra que apazigua a rigidez da forma reta. Esta que, na verdade, não está completamente ausente dos bordados que Dayana Lucas apresenta. Em três das obras expostas, uma linha reta horizontal cruza-se com linhas verticais mais curvilíneas, transmitindo a ideia de divisão. Como exercício livre, imaginemos que nestes bordados está a representação ultra simplificada de uma planta. A linha reta surge como a epítome da potencialidade narrativa, ao indicar-nos, por um lado, o que é interno, o que está em baixo, o que não se vê, como as raízes, e por outro, o que se ergue no alto, o que se vê e é exterior, como os caules, as folhas, as flores e os frutos. Como indica a artista, pretende-se “dar a ver não só o fruto, mas a união escondida que deu origem ao fruto, ‘as above, so below’” [7]. Nas outras três obras encontramos a silhueta de três árvores, tecido cosido em tecido, curvas e contracurvas como o curso de um rio. Quanto não terão dançado as mãos de Dayana Lucas para compor, construir e energizar estas linhas, em formas livres de pensar o mundo? Pois o gesto corresponde à expressão do pensamento e a linha desembaraçada da forma, é matéria de possibilidades. Mas, também, quantas vezes não poderá ter sido doloroso física e psicologicamente, este exercício de (a)bordar curvas? A partir da inspiração na obra de arte aberta, nas possibilidades (in)definidas do dia a dia, e nos caminhos infindáveis a que podem levar as linhas do tecido esfiapado das obras da artista, proponho um último exercício baseado nas instruções e interrogações de Georges Perec face ao que parece tão natural, que esquecemos as suas origens: “descreva a sua rua”, “faça um inventário dos seus bolsos”, “questione as suas colheres de chá”, “o que há debaixo do papel de parede?”. [8] Adiciono: Conte as linhas que tem nas mãos.
Sandra Silva
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Notas [1] Sheringham, M. (2007). Configuring the everyday. In S. Johnstone (Ed.), The Everyday (Documents of Contemporary Art). Whitechapel, p.141
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