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EXPOSIÇÕES ATUAIS


Vista da exposição. © Vasco Vilhena


Vista da exposição. © Vasco Vilhena


Vista da exposição. © Vera Marmelo


Vista da exposição. © Vasco Vilhena


Vista da exposição. © Vasco Vilhena


Vista da exposição. © Vasco Vilhena


Vista da exposição. © Vera Marmelo


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ARQUIVO:


ALEXANDRE ESTRELA

A NATUREZA ABORRECE O MONSTRO




CULTURGEST
Edifício Sede da Caixa Geral de Depósitos, Rua Arco do Cego
1000-300 Lisboa

12 OUT - 02 FEV 2025


 

 

“A calma antes da tempestade” é a expressão que não me sai da cabeça, desde que fui capaz de abandonar a exposição de Alexandre Estrela, na Culturgest de Lisboa, intitulada “A Natureza Aborrece o Monstro” [1]. Antes sequer de entrarmos na sala, qualquer que seja o caminho que ousemos tomar, somos surpreendidos: vozes estranhas proferem palavras surdas, sons indistinguíveis remetem-nos para uma floresta exótica, luzes baixas antecipam qualquer coisa. Encontramo-nos num limbo entre a vontade de entrar e perceber o que nos aguarda e o medo daquilo que ainda desconhecemos, a aflição e o desassossego de nos depararmos com um tal monstro.

O peso aumenta no peito, o movimento frenético das imagens que se sobrepõem umas às outras assalta-nos a visão, os focos de luz que rasgam o espaço cegam-nos, interrompendo qualquer sensação de paz e tranquilidade com que pudéssemos ter começado o percurso. O crescendo, não apenas sonoro, mas da confluência de todos estes fatores culmina no corpo nervoso do espectador. Ninguém está seguro. Há uma constante sensação de desequilíbrio e fascínio simultâneos, para quem se deixa verdadeiramente absorver pela experiência. Quem se atrever a entrar nesta exposição, com certeza não sairá de lá mais sereno.

O universo peculiar e enigmático de Alexandre Estrela propõe experiências, que são tanto cativantes, quanto aterradoras e arrepiantes. O monstro, criatura bizarra do imaginário popular, que tanto se concretiza pela fusão de dois corpos distintos, qual um bicho híbrido entre o coelho e o pato [2]; como pelo potencial sinestésico que a própria palavra suscita. Dicotomia esta que apresenta no lado oposto a ideia de natureza, não só pela idealização de um Jardim das Delícias no qual reina a harmonia e a vida em liberdade, como também pela sua representação enquanto Gaia [3], a Mãe-Terra, que promete devorar tudo o que lhe causar mágoa e sofrimento. Como propõe José Gil, “Provavelmente, o homem só produz monstros por uma única razão: poder pensar a sua própria humanidade.” [4]

“Um silêncio aterrador”, como diz o próprio artista, assola-nos – a inquietação que advém tende a aumentar na segunda volta à exposição. O compasso de espera adquiriu uma gravidade maior na experiência e revelou-a dolorosa. A temperatura da sala arrefeceu e o batimento cardíaco aumentou. Assim como nos planos estratégicos das tropas portuguesas durante as passagens pelos matos de Angola, reproduzidos e reportados intensamente no filme Africa Addio [5], o silêncio camuflado atravessa o espaço-tempo da exposição. Embora o impacto real do som, juntamente com o alvoroço das imagens em movimento, não tivesse sido tão potente como havia sido da primeira vez quando fui sobressaltada pelas diversas explosões sonoras (destoantes das imagens idílicas, porém misteriosas que servem de cenário), o fator surpresa tinha agora sido substituído pelo medo e a antecipação da sensação de desconforto e angústia provocadas pela própria experiência da exposição.

No centro da imagem de uma praia, somos confrontados com um olho hipnotizante, um buraco negro [6]. O olhar é seduzido a fixar esse círculo fundo e inextinguível, logo depois para ser sobressaltado com o movimento vertiginoso de uma outra projeção de vídeo, que atravessa a sala e se vê refletido através de um jogo de espelhos. O nosso estado de alerta é ativado e, de repente, sentimo-nos sob pressão. O som ensurdecedor de um helicóptero traz com ele uma sensação de perigo e medo. Sentimo-nos em guerra, mas com quem? Voltamos à antiga e insaciável demanda do homem versus a máquina; o monstro versus a natureza.

Por oposição, pequenos ecrãs de cores vibrantes e tons quentes presenteiam-nos com paisagens [7], ou partes delas, que parecem pairar no espaço, pelo desvanecimento dos seus limites no fundo, causado pela iluminação quase nula da sala. São pequenos momentos de tranquilidade, que contrastam com a ansiedade provocada pelo ruído intermitente e assustador que nos rodeia.

Em contrapartida, existe um magnetismo inerente a toda a exposição, atingindo a sua potência máxima no corredor que vincula os dois hemisférios. Atraída pelo som hipnotizante que cobria toda aquela sala e, de forma mais ou menos consciente, senti o meu corpo aproximar-se de um ecrã metalizado, cuja superfície de alumínio refletia o brilho embriagante e as cores deslumbrantes de uma “caverna subaquática” [8]. De repente, um tubo fino de metal bate furiosamente sobre o ecrã, ecoando o som estridente de um sino ou badalo. À distância, avisto uma escultura com reentrâncias, uma circular e outra quadrada [9], que, por sua vez, faz ressoar a vibração de um gongo quando tocado, da qual superfície cintilante se revela. Após observar repetidamente o processo, percebi que essa placa de alumínio não tinha sido golpeada pela suposta baqueta e, consequentemente, não teria nunca oscilado, como até então eu jurava ter visto.

Pela altura do fim da minha visita, começava a conformar-me com a ideia de que as projeções de vídeo teriam, de facto, uma função primordial no corpo de trabalho apresentado. A ambiguidade e o mistério provocados pelas obras de Alexandre Estrela, como refere o curador Bruno Marchand, constroem “propostas sinestésicas que tanto revelam quanto destabilizam a nossa perceção, questionando a sua mecânica, os seus limites e a sua fiabilidade.” É, portanto, inevitável pensar nesta questão da falsidade das imagens. Aquilo que eu via, ou pensava que via, não era afinal de contas totalmente verdadeiro [10].

Ora, na primeira vez que olhei para o amplificador de som, onde estava projetado um vídeo que mostrava uma rede debaixo de água coberta de musgo [11], reparei numas manchas escuras e estranhas que me pareciam ser dois peixes colados à lente da câmara que capturou a imagem. Porém, após observar mais atentamente o que estava mesmo “diante do meu nariz”, concluí que aqueles pequenos peixes eram, na verdade, cortes na película que revestia a coluna de som. A superfície tinha-se rasgado pelo impacto fortíssimo das vibrações sísmicas reproduzidas pelo aparelho sempre que algum terramoto ocorria, em qualquer parte do globo. Ri-me com a rasteira que os meus olhos me acabavam de pregar. Por isso é que penso que o espectador desconhece a total realidade das coisas; é por demais tentador perder-se na ilusão das aparências e no deslumbramento daquilo que poderia ser. No entanto, tal como Jacques Rancière propõe, talvez seja este o momento apropriado para se concretizar o estatuto do “espectador emancipado" [12] então, ao invés de ser seduzido pelas imagens e mergulhar no fascínio do “espetáculo”, o observador tornar-se-á um participante ativo em vez de um voyeur passivo.

 

 

 

Leonor Guerreiro Queiroz
(Porto, 1999) é artista plástica e integra, atualmente, o Mestrado em Artes Plásticas, na ESAD.CR. Formada em música clássica (fagote) pelo Conservatório de Música do Porto e licenciada em Artes Plásticas (Pintura) pela FBAUP, expõe regularmente desde 2015 na companhia de artistas estabelecidos. Organizou projetos e mesas redondas com personalidades do meio artístico internacional, tendo desenvolvido publicações em revistas de arte e teatro. Trabalha como professora convidada na DTK - Fine Arts School in Bærum (Noruega), desde 2023 e com a artista Paulina Olowska, desde 2020 na Academia de Belas Artes de Praga. Na área da escrita curatorial colabora, desde 2024, com outros artistas e curadores, escrevendo textos de apoio a exposições e reflexões sobre as mesmas.

 

 


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Notas

[1] “A Natureza Aborrece o Monstro”, exposição individual de Alexandre Estrela, com curadoria de Bruno Marchand, patente na Culturgest (Lisboa), entre outubro de 2024 e fevereiro de 2025.
[2] Rabbid Tuck, 2016, Alexandre Estrela (folha de sala).
[3] Gaia – segundo a mitologia grega, é a Deusa da Terra, Mãe geradora de todos os deuses e criadora do planeta. Tal como referiu o Professor José Marmeleira numa aula (no âmbito do meu Mestrado em Artes Plásticas, na ESAD.CR), Dirk Michael Hennrich propõe, no seu ensaio Sobre a História Natural do Antropoceno, a figura alegórica de “Gaia”, de uma força incontrolável, enquanto representante da Natureza. Indissociável do ambiente, andam de mãos dadas, pois depende dele. Logo, ela só se manifesta, agressiva e cruel, quase destrutiva, quando o ambiente se mostra ameaçador. Neste ensaio, Gaia aparece em relação à questão do “Antropoceno” - o Homem quis tornar-se superior à própria natureza e agora sofre as consequências.
[4] Gil, J. (1994). Monstros (p. 56). Quetzal Editores, Lisboa.
[5] Africa Addio - Alexandre Estrela usa este filme-documentário, do género “shockumentary”, como referência de estudo para o seu trabalho em torno do silêncio; Jacopetti, G., & Prosperi, F. (Directors). (1966). Africa Addio.
[6] Pockets of Silence, 2015, Alexandre Estrela (folha de sala).
[7] Águas de Março, 2019, Alexandre Estrela (folha de sala).
[8] Entrada/Saída, 2024, Alexandre Estrela (folha de sala).

[9] Square and Circular Sounds, 2020, Alexandre Estrela (folha de sala).
[10] A propósito da desconfiança das imagens, Didi-Huberman levanta a questão da verdade versus a mentira. O autor apresenta a imagem como modo de resistência perante a ordem dominante. Esta não se assume como imagem absoluta, capaz de ditar toda a verdade, mas apresenta-se fulgente e em potência, abrindo feixes de luz no meio da escuridão e do horror; Georges Didi-Huberman. (2020). Imagens apesar de tudo (V. Brito & J. P. Cachopo, Trans.). Editora 34, São Paulo.
[11] Redskyfalls, 2019, Alexandre Estrela (folha de sala).
[12] Rancière, J., & Benedetti, I. C. (2012). O Espectador Emancipado (p. 8). WMF Martins Fontes Ltda., São Paulo.



LEONOR GUERREIRO QUEIROZ