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Num contexto pop, e pense-se no debate gerado desde o início pelos Kraftwerk, a discussão em torno da música eletrónica passou muito pela definição dos limites do humano e do maquinal. Mas nos domínios eruditos essa definição nunca deixou de existir de forma muito clara. Tristram Cary, um dos pioneiros da eletrónica em Inglaterra, distinto membro do Radiophonic Workshop e enquanto tal visionário criador de uma paisagem sonora para os Daleks, formulou desde cedo uma distinção clara para as suas práticas laboratoriais escrevendo que a música concreta lhe oferecia a possibilidade de “realizar música como uma gravação em vez de como uma performance”.
O Radiophonic Workshop operou num cenário muito específico – a BBC – aplicando os ensinamentos da música concreta em bandas sonoras para teatro radiofónico, primeiro, e para televisão, depois, influenciando o subconsciente de várias gerações. Mas a primeira exposição do público britânico às novas realidades musicais eletrónicas aconteceu com a transmissão de Symphonie Pour Un Homme Seul de Pierre Schaeffer.
Schaeffer fundou o Groupe de Recherche de Musique Concrète (GRMC) em 1951, uma das primeiras células criativas criadas para investigar as possibilidades encerradas por uma tecnologia desenvolvida pela Alemanha Nazi: a fita magnética. Schaeffer abandonou o GRMC em 1953 e reformou o coletivo cinco anos mais tarde como Groupe de Recherche Musicale, o famoso GRM. Luc Ferrari, Iannis Xenakis, Bernard Parmegiani ou François-Bernard Mache são alguns dos compositores com quem Schaeffer trabalhou em profundas investigações conceptuais em torno de sonoridades concretas, eletrónicas e eletrocústicas tornando muito mais claras as divisões entre o que era do domínio da criação laboratorial e o que pertencia à mais física dimensão da performance.
A Editions Mego de Peter Rehberg inaugurou já em 2012 o selo Recollection GRM dedicado a reeditar obras do vasto arquivo da GRM. Os dois primeiros lançamentos foram Le Trièdre Fertile (1975-76) de Pierre Schaeffer e Granulations-Sillages / Franges du Signe (1974-76) de Guy Reibel. Seguiram-se L’Oeil écoute / Dedans-Dehors (1970 – 77) de Bernard Parmegiani e a compilação de obras de vários compositores Traces One (que abarca um período entre 1960 e 1970). Sempre em vinil: “A ideia já gravitava na minha cabeça há algum tempo”, explicou Peter Rehberg à Fact, “mas começámos a discuti-la no fim de 2011. Limitei-me a perguntar porque não estavam estas obras disponíveis em vinil”.
Na estratégia de diversificação da Editions Mego, esta abertura de um selo dedicado à memória da GRM faz todo o sentido, sobretudo tendo em conta a criação igualmente recente (2011) da Spectrum Spools, outra etiqueta apostada na investigação da música eletrónica, mas de um ângulo mais contemporâneo – o catálogo da Spectrum Spools que já leva duas dezenas de lançamentos é curado por John Elliot dos Emeralds e apesar de incluir sobretudo obras contemporâneas de nomes como Bee Mask ou Motion Sickness of Time Travel, também já alargou o raio de ação de forma a integrar algumas reedições, casos de discos assinados por Robert Turman ou Franco Falsini.
Investigação em torno de três pilares da medição acústica – frequência, duração, intensidade – que Schaeffer contornou durante boa parte da sua obra –, Le Trièdre Fertile é uma obra que se distingue no conjunto das criações deste compositor por ser o seu único trabalho puramente eletrónico, realizado com o apoio técnico de Bernard Dürr (e lançado originalmente como um título da notável coleção Prospective 21 Siècle da Philips). Com um som incrivelmente vibrante (as transferências digitais e os cortes de acetato foram realizados com extremo cuidado e envolvem o estúdio de referência Dubplates & Mastering, de Berlim), este trabalho tardio de Pierre Schaeffer tem a particularidade de soar tão cerebral como emotivo, com o mestre a ceder a um “arrependimento tardio” ao apoiar esta peça nas tais medições fundamentais do som.
O álbum de Guy Reibel segue num outro sentido, mais cerebral e matemático, e trata de investigar os limites, nomeadamente os da perceção humana. Reibel era um quarto de século mais novo do que Schaeffer e este foi o seu primeiro trabalho de monta, lançado originalmente como parte da Collection INA-GRM. Adotando os princípios da acusmática, mediante os quais a origem dos sons é invisível e só o som puro importa – esta é música composta a pensar em execução através de colunas, e não em performance, e assim regressamos ao princípio enunciado por Tristram Cary –, Guy Reibel realizou aqui um trabalho intrigante que parece sugerir a banda sonora para uma viagem pelo interior dos chips na memória de um computador.
A terceira entrada no catálogo da Recollection GRM foi reservada para L’Oeil écoute / Deadans-Dehors de Bernard Parmegiani, um trabalho onde a definição de Tristram Cary da música como “som organizado” encontra perfeito eco. A imersão no universo deste compositor que iniciou carreira como técnico de som da televisão francesa é completa e L’Oeilécoutesoa exatamente como um filme sem imagens, com comboios, insetos e o que soam como disparos de raios laser a combinarem-se num universo tão estranho quanto exótico. Dedans-Dehors soa ainda mais incrível, impressionante exercício de edição, em que a fita magnética se torna ao mesmo tempo espaço de performance e partitura de imaginação.
Finalmente, a mais recente edição da Recollection GRM da Editions Mego é uma compilação de título Traces One que reúne material que se estende entre 1960 e 1970 e que tem a assinatura de compositores como Beatriz Ferreyra, Philippe Carson, Edgardo Canton, Francis Régnier e Mireille Chamass-Kyrou, nomes menos celebrados da escola concreta, mas que, atentando aos trabalhos aqui incluídos, merecem igualmente atenção e certamente justificam mais este lançamento: dronmes acusmáticos, colagens abstratas, ritmos erguidos pela repetição de foundsounds, mergulhos no caos aparente do ruído de onde emergem sempre nítidas paisagens acústicas.
No próximo mês de dezembro serão editados os quinto e sexto volumes nesta série de reedições com selo Recollection GRM: Presque Rien de Luc Ferrari e Triola ou Symphonie por moi-même de Ivo Malec. Tendo em conta a agitação profunda em torno da eletrónica mais experimental nos últimos anos – agitação essa ecoada nas edições da Spectrum Spools, mas muito mais ampla – reedições como a deste material dos arquivos da GRM são importantes pois oferecem contexto histórico a um diálogo – o dos homens e o das máquinas – que não dá sinais de esmorecer e que continua a gerar alguma da mais desafiante música do presente.
http://editionsmego.com/releases/recollection-grm/