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DA HOLANDA PARA O ALENTEJO: A COLEÇÃO DOS DISCRETOS DE BRUIN

2016-09-08




A família de colecionadores e mecenas de arte da Holanda tem ligações a Portugal há 40 anos. Agora inauguram um centro de arte.

"A minha mãe foi mãe muito nova, tinha 21 anos quando a minha irmã mais velha nasceu. E devia ter uns 24, 25 anos, quando vieram para Portugal pela primeira vez. A ditadura acabara de terminar aqui. Só havia cavalos, os carros eram uma raridade; nós éramos uma raridade, todos muito louros, as pessoas tocavam-nos e beliscavam-nos as bochechas." Aveline de Bruin está sentada no restaurante da Quinta do Quetzal, em Vila de Frades, Vidigueira, Alentejo, que pertence à sua família. Em Portugal, têm sido caracterizados assim: holandeses, milionários, e colecionadores de arte. Não é mentira.

Aveline dirige agora a coleção que os seus pais começaram há cerca de 40 anos. É ela agora a responsável pelas obras emprestadas ao MoMA, em Nova Iorque, à Tate, em Londres, ao Reina Sofia, em Madrid, ao Hermitage de São Petersburgo, ou à Fundação de Serralves, como aconteceu em 2009 com obras de Raoul De Keyser.

No piso de baixo está o Centro de Arte que hoje inaugura nesta quinta que até aqui apenas produzia vinhos. Por agora, Aveline conta a história de um rapaz de 30 anos e de uma rapariga de 24 ou 25 que compraram uma casa em Silves, no Algarve, "para juntarem a família" que formaram com três filhas e um filho benjamin: Cees e Inge de Bruin-Heijn, os seus pais.

"Portugal tornou-se no lugar onde nós, enquanto família, nos reuníamos. Cada verão, outono, primavera, férias da Páscoa... Mesmo quando as minhas irmãs começaram a ir para o colégio interno em Inglaterra, este era o lugar onde nos juntávamos", conta. Foi quando a irmã mais velha se casou - "há 23 anos" - que os seus pais se lembraram de lhe comprar "uma pequena vinha". A adega abriu há 10 anos." Essa, onde são feitos vinhos como o Quetzal ou o Guadalupe, pode ser visitada pelo público. Vemo-la de uma das varandas do edifício em xisto - projetado por Filipe Nogueira Alves, Margarida Direitinho, e Nuno Ramos -, onde estão o restaurante e o centro de arte, que abriram portas em junho, embora a inauguração oficial só hoje aconteça.

Para a primeira exposição, escolheram mostrar Pat O Neill, Trisha Baga e Robert Heinecken. Esta deverá ficar patente até fevereiro ou março. Depois virá outra. "A nossa coleção e os contactos que temos no mundo da arte serão a base de tudo o que faremos aqui. Queria fazer uma exposição que fosse muito interessante para as pessoas do mundo da arte, mas também fosse capaz de levar pela mão alguém que viesse aqui e não soubesse nada de arte. Mesmo que não saiba nada sobre o Pat O"Neill, os filmes dele vão mexer com a pessoa. É o que espero." A quinta que deverá servir a futuras residências artísticas já está em construção, embora ainda não haja data de conclusão.

Inge e Cees, colecionadores e mecenas do mundo da arte, são discretos. Muito dificilmente encontrará uma fotografia de um ou de outro na internet. Não falam do valor da sua coleção de arte, pouco o fazem acerca dos artistas de que é composta. Se a conhecemos, é sobretudo através dos empréstimos a museus do mundo inteiro.

Colecionadores sem tradição

"Começaram a coleção aos poucos. Não vêm de famílias com muito dinheiro. Os pais do meu pai eram professores, e a minha mãe vem de uma família em que a arte era amada, mas não colecionavam, de todo. Quando eles começaram, não tinham dinheiro para colecionar. Depois o meu pai teve muito sucesso na empresa de investimento que fundou, então tornou-se possível que se tornassem colecionadores", conta. Hoje, têm uma "coleção de arte contemporânea, muito vasta, com mais de 500 artistas. Colecionam quase tudo, de pintura tradicional e escultura, e muitos desenhos, a vídeos, a instalações. São cerca de cinco mil obras. É como um pequeno museu", explica a filha.

Em 2010, a Art News apresentou-os como um dos 200 maiores colecionadores do mundo. Compram aquilo de que gostam, e "só venderam uma peça, quando eram muito novos". Quiseram conhecer a arte e os artistas do seu tempo, mesmo os que antes não estavam na moda. "É preciso coragem para fazer uma coleção assim", elogia a filha. A primeira obra terá sido um desenho do alemão Ernst Kirchner.

Os dois conheceram-se numas férias na neve, a esquiar, e Cees "estava certo que tinha conhecido o amor da sua vida". Então avançou. "Acho que eles disseram: "Vamos a isso, casar e ter filhos?" Hoje os dois vivem em Wassenaar, cidade próxima da Haia. Inge tem 65 anos, o marido tem 70. Pedimos-lhe uma fotografia. Ela percorre a galeria do seu telemóvel e lança: "Bom, talvez o pai a nadar não seja a melhor coisa!" Quando os dois começaram, a coleção estava, toda ela, dentro de casa. "Debaixo de cada cama havia pilhas de obras! Fui muito privilegiada, porque cresci com arte, e com artistas que vinham a nossa casa", ri-se a filha, ao recordar. Foi a única a estudar arte na família e a trabalhar com a coleção.

Os seus pais foram autodidatas. A mãe, que trabalhou como enfermeira num hospital e como assistente de um médico, chegou em idade madura a administrador do MoMA, função que já não exerce, e chegou a ser júri do prémio da Art Basel, uma das maiores feiras de arte do mundo: o Baloise Art Prize. O pai, Cees, continua a ser administrador do museu Stedelijk, em Amesterdão, e há anos que apoia a formação e produção de artistas na Rijksakademie, também em Amesterdão. Foi lá que conheceram o trabalho do inglês Ryan Gender, por exemplo, que não mais deixaram de acompanhar, e comprar. Esse é um dos nomes a que Aveline faz referência, quando lhe perguntamos pela coleção privada.

Outro é o de Marlene Dumas, a sul-africana radicada na Holanda que desde cedo os de Bruin foram acompanhando, seguindo o seu trabalho em galerias no estrangeiro. Outra é a pintora austríaca Maria Lassing. "É fabulosa. Tornou-se mais conhecida em idade mais avançada, a minha mãe tem uma coisa com senhoras de idade da arte. Sente uma ligação", diz a filha numa gargalhada. "Lentamente está a ter o seu reconhecimento. Temos emprestado ao MoMA, Tate, Bienal de Veneza..."

Quase no fim da conversa, Aveline, que diz ter-se tornado "cliente frequente da TAP", conta: "A minha mãe uma vez disse: "Para mim, escolher arte é como apanhar flores no campo." Eu respondi-lhe: "Bem, se tu colecionas as flores, o meu trabalho é organizá-las e contar uma história interessante.""


Fonte: Diário de Notícias