|
A MINHA VISITA GUIADA À EXPOSIÇÃO...OU COISAS DO CORAÇÃO![]() ANA CRISTINA LEITE2016-11-08![]() Esta forma de devoção e dedicação à pintura e ao meu trabalho são em si a minha própria essência! De certeza que não foi por ter lido Hemingway, Por Quem os Sinos Dobram ou coisa parecida, que toquei à campainha destas casas. O elo é tal, que aflora até o sobrenatural! Tenho a história da minha vida em vários pedaços desalinhados, para evitar ficar sem rumo. De facto, no auge da minha felicidade, ainda nova e catita, do tipo famosa por um minuto e alguns segundos, deram-me um bónus para trabalhar numa espécie de baguette malcozida, por assim dizer. Convencida de que os homens não preferem as loiras, resolvi fazer a minha prova de amor, repintando o cabelo para um preto corvo mais escuro ainda. Limpei a cera dos ouvidos e ouvi impávida e serena uma série de Flash Gordas, tentando ficar igual ao estilo das mulheres spaghetti (o que foi um erro na minha carreira). O trabalho saltava à vista nessa altura, o único problema era conseguir suportar o desfasamento entre o Open e o End do meu trabalho. Passado uns anos, percebi através de uma inoubliable photo, que andava a desperdiçar tempo entre pincéis e meias-tintas. Resolvi então passar a andar de óculos escuros e como não via nada, seguiram-se várias batalhas caseiras, onde uma batedeira de ovos Phillips de 1934 ficou partida sem dó nem piedade ao enfrentar um vaivém de carvão e tintas. Ora, sendo a minha batedeira favorita, o caso das baguettes ficou irremediavelmente perdido, dando origem a meia dúzia de auto-retratos com as mãos na respectiva massa. Passei assim para o inicio do que foi a narrativa desta exposição: comecei pelo verde-claro e verde-escuro e,no meio da confusão, lembrei-me de que tive um dia duas iguanas. Uma chamava-se Gertrudes e a outra Lacoste. Eram seres adoravelmente silenciosos. O silêncio era tanto que mais parecia gelo derretido. Certodia, pensei que o frio estava bom era para as cobras e acabei por despachar em correio privado as duas criaturas! Vá que não vá, custa o que custa. Lembrei-me um dia, enquanto pintava, de tentar imitar o sorriso do Burt Lancaster, depois de ter visto The Night of the Iguana, com a Ava Gardner. Dia após dia, serpenteando entre o atelier e o roseiral, treinei o sorriso com desdém, fazendo subir vagarosamente o lábio superior bem acima dos dentes. Após alguns dias de prática, acabei por provocar estranhas reacções a quem me olhava. Tinha-me esquecido que ficava com uma cara horrível, tremia do olho esquerdo e da mão direita, o que se tornava um martírio para trabalhos meticulosos. Como não queria assustar ninguém nem desfazer o meu trabalho, a partir daí deixei de fazer esgares. Ainda não perdi a esperança de pintar um Drive In (sessão dupla) Bad Day at Black Rock. De regresso aos mares que os portugueses sempre tiveram fama de sem medo cruzar, implorei a mim mesma esquecer este passado tão tormentoso e chegar finalmente a bom porto. Nos mais pesados dias e nas noites mais sombrias, ouvia lá no fundo umas vozes que se cruzavam, de tão opostas. Aquilo até era uma boa companhia. Claro que a certas horas, tudo se confunde na extrema escuridão das noites passadas a pintar. A bem dizer, todas as minhas pinturas são como um passado respirado no presente. São como fantasmas visíveis, em que os homens representados estão sempre à procura de fugir de alguma situação. As mulheres, tal como as minhas iguanas, têm a cabeça fria e o olhar razoavelmente distante embora acutilante, pois até parecem olhar para mim enquanto eu, atrapalhada, vou tentando dar vida às suas formas. As minhas personagens, tal como as iguanas, são seres absolutamente deliciosos. As florestas são as minhas Murder Ballads: têm ritmo, são pesadas, arrepiantes e soturnas. As casas abandonadas e destruídas representam algo imaginado num mundo real, tipo ficção. Há sempre uma presença humana invisível mas amplificada pela luz, como no caso do celeiro ou do quarto abandonado. Têm um certo ar peculiar de solidão. Há sempre pontos fortes de luz dando lugar a sombras, tal como num film noir. As personagens são como cada um de nós a seguir muitos sinais que regressam do passado através de sensações e memórias misturadas e esbatidas, com emoçõessubconscientes que formam entre si fragmentos da narrativa. O homem a espreitar debaixo do armário é o homem que procura aquilo que nunca vai encontrar. Os títulos completam a narração, remetendo para vários pontos de fuga e até para várias abstracções mentais. Mesmo que as personagens olhem para a direita ou para a esquerda, sem preço nem apreço, ficam envoltas em atmosfera dramática, tal como um saco negro onde possam enfiar lá todos os sentimentos! O verniz é um ponto final brilhante, uma faísca ou uma chama que salta de dentro para fora da pintura. Cenas de um aguçado voyeurismo, com algumas referências literárias. Talvez eu tenha narrado a minha própria história sem noção disso! Voltando ao quadro do homem que procura na noite escura de lanterna em punho, este vem passo a passo, como se os seus sentimentos calcassem cada pedaço de terra, em busca de vestígios: talvez uma navalha caída no chão, uma bússola dourada avariada, ou uma carta roubada... Lapso de tempo, passei de um trabalho para outro. Até que o imprevisto aconteceu. O que é que se pode dizer na hora de um drama? Estarreci, o meu coração parou e senti uma perda indiscritível, como se metade de mim deixasse de existir, o que de facto aconteceu. Estava habituada a ter um coração V8, como um motor de um Dodge de 1969. Ora, esse motor parou, ou por palavras mais atenuantes, passou para outro mundo desconhecido, mais livre e plano, onde se pode viajar de um ponto para outro, não em diagonais mas em espirais. Crois-moi, c´est dur et pénible! Depois de muitas hesitações, lá consegui manipular o indicador, dedo que, com o médio, é dos mais utilizados, tendo pintado 20 mil quilómetros de distância entre aquilo que fui e o que passei a ser.
Ana Cristina Leite
:::
Ana Cristina Leite tem patente de 10 a 30 de Novembro na Cooperativa Árvore, Porto, a exposição My heart is a V8.
|