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ARQUITECTAS: ENSAIO PARA UM MANUAL REVOLUCIONÁRIO
PATRÍCIA SANTOS PEDROSA
I
A diversidade de aproximações possíveis ao binómio mulheres/arquitectura torna as decisões sobre a reflexão do mesmo mais entusiasmante e, de igual modo, carregadas de uma maior responsabilidade. Depois de esboçarmos outras abordagens — históricas principalmente —, parece-nos o momento para um acercamento que lance pistas para acções futuras. À construção de uma ideia sobre o tema, que os dados e a reflexão — mesmo se deficitários — alimentam, é necessário somar acções. Só se compreende a relevância do que se trabalhou, no sentido de perceber e conhecer, se for para agir.
Como afirma Pierre Bourdieu (2002, pp.22-23), a ordem social funciona como uma imensa máquina simbólica que ratifica a dominação masculina sobre a qual se funda e da qual resulta, entre outras coisas, a divisão sexual do trabalho. Também refere que a diferença biológica dos corpos, feminino e masculino, aparece como justificação socialmente construída entre os géneros e em particular na divisão sexual do trabalho. Uma das premissas base com que trabalhamos é a existência, como defende este autor, de uma visão androcêntrica que se impõe como neutra e que pratica uma violência simbólica invisível para as suas vítimas, as mulheres.
Não serão aprofundados conceitos que, ainda que essenciais, nos ocupariam mais do que o aceitável no quadro desta reflexão mas que são incontornáveis em trabalhos futuros. A título de exemplo, a categoria “mulher” e respectivas contribuições — entre outras as de Judith Butler (1990) — necessitam ser parte de um cruzamento efectivo e crítico com o que aqui se esboça.
O objectivo principal deste ensaio é fazer um percurso, partindo dos escassos conhecimentos históricos e da actualidade das arquitectas portuguesas, cuja invisibilidade é claramente demonstrativa da falta de poder das mesmas, e perceber os possíveis modos de agir sobre a sua condição no sentido de se concretizar a óbvia revolução necessária.
II
A situação actual das arquitectas em Portugal, assim como a sua história, são quadros para os quais existem algumas informações mas existe principalmente uma séria necessidade de investigar, fixar dados e esclarecer sobre os diferentes tempos — passado e presente — para se perceber com maior solidez o que fazer com esta realidade percebida. [1] A informação existente pode sustentar algumas ideias sobre as arquitectas em Portugal. Relativamente à história esta é iniciada na já tardia década de 1940, com Maria José Estanco, formada em Lisboa em 1942, e Maria José Marques da Silva, formada no Porto no ano seguinte (Pedrosa, 2014, pp.107-110). O que se pode designar de paradigma fundacional, definido pela entrada formal destas duas mulheres no mundo da arquitectura, fixa o momento histórico em si mesmo mas confere igualmente uma base repetível para a condição futura das arquitectas.
Ou seja, por um lado, Maria José Estanco, apesar de ter visto o seu percurso académico reconhecido, não conseguiu encontrar um atelier que a recebesse e, deste modo, viu-lhe negado o direito à vida profissional como arquitecta. Por outro lado, Maria José Marques da Silva, filha do arquitecto Marques da Silva, teve atelier com o David Moreira da Silva, seu marido, mas, por diversas vezes, se verifica uma truncagem autoral da mesma. (Pedrosa, 2014, pp.107-109)
Assim, o que encontramos como as condições profissionais destas duas arquitectas pioneiras são dois modos de silenciamento distintos que se repetirão década sobre década. Uma, mais radical, é a negação pura e simples à própria profissão, implicando o abandono da mesma. Outra é a efectiva existência e acção no interior da profissão, com responsabilidades autorais, que não a defende, no entanto, do silenciamento que decorre do reconhecimento do trabalho efectuado, obliterando metade da parceria.
Avançando 70 anos até à actualidade muitas coisas mudaram mas demasiadas outras permanecem. A feminização crescente da esfera profissional da arquitectura é evidente. Ainda que o fosso formação/profissão ainda esteja por avaliar [2] os números das arquitectas membros da Ordem dos Arquitectos (OA) são significativos. Em 2012 as arquitectas inscritas na OA eram 40,1% do total de membros, em resultado de uma paulatina subida desde 2000, com 32,1%, e representando um salto significativo desde o início dos anos 1970, com 4,7%. (Pedrosa, Março de 2013, p.22)
Neste início do séc.XXI, os novos processos de trabalho no interior da profissão a que se assiste, com os colectivos mais ou menos alargados, são um desafio à tradicional mono-autoria e à sua variante mais recente, da bi-autoria. Absorvem parte da necessidade de actualização do paradigma fundacional referido. Para lá das invisibilidades impostas ainda às arquitectas verifica-se, com o surgimento da autoria colectiva, sob designações que, muitas vezes, nem deixam adivinhar a constituição das equipas, [3] uma contribuição para uma aparente destruição de um certo autor arquitectocentrismo, supostamente a favor de outros valores e dinâmicas na prática da arquitectura.
Mais do que retirar conclusões, com a escassez de dados disponível, interessa-nos sublinhar a pluralidade crescente dos modelos a que assistimos mas, de modo algum, deixar de ter presente que lado a lado com estes supostos novos formatos de trabalho, as velhas práticas continuam presentes.
III
Percebendo, entre empirismo e dados, que a feminização já referida não implica necessariamente uma mudança radical no modo de estar na arquitectura, interessa-nos esboçar um primeiro mapa de como reagir, de como actuar contra o que não faz sentido. Apontam-se três registos diferentes de acções necessárias, possíveis e em falta mas não se esgotam as acções seguramente no que referimos ou nas formas que referimos. Por um lado, a urgência de as instituições considerarem a importância de se conhecer aprofundadamente a questão das arquitectas portuguesas (história, números, etc.). Por outro, a necessidade de profissional, académica e socialmente as arquitectas portuguesas se organizarem e se constituírem em redes de trabalho. Finalmente, a concretização da presença crescente nas instituições estabelecidas.
Considerando a já referida falta de dados e reflexões sobre a situação das arquitectas em Portugal reclamar o estudo sistemático, sério e alargado das mesmas é essencial para se perceber melhor o que tem acontecido, o que se passa na actualidade e o que se intui que pode acontecer, assim como desenhar estratégias de reacção. O conhecimento contraria a invisibilidade e, de modo efectivo, a invisibilidade alimenta a inexistência. [4] A percepção genérica que os poucos dados corroboram é a de que as arquitectas em Portugal ainda estão longe de encontrar uma situação igualitária face aos seus colegas. Ainda é uma menoridade de direitos, de estatuto, de possibilidades e de poder que lhes enquadra o quotidiano. É vital que as instituições responsáveis — da OA ao Governo, passando pelas universidades e pelo Ministério da Educação e Ciência — destinarem meios humanos e materiais para que este vazio de conhecimento seja rapidamente suprimido.
Criado em 2013, o arcVision Prize — Women and Architecture é um prémio internacional que se assume como descriminação positiva, a favor da prática das arquitectas mundiais. Na sua primeira edição o prémio foi concedido à arquitecta brasileira Carla Juaçaba e na edição seguinte, no corrente ano, a arquitecta portuguesa Inês Lobo foi a ganhadora (arcVision, 2014). O sentido claro deste prémio coloca-o nas acções que são efectuadas na esfera da especificidade, as arquitectas, e que visam um óbvio empoderamento das mesmas. A visibilidade que o prémio procura, através da alargada divulgação, [5] amplia a visibilidade das próprias ganhadoras e, por consequência, das arquitectas em geral. No início de 2013, Martha Thorne, membro do júri arcVision e directora executiva do Prémio Pritzker, afirma sobre o primeiro ter os objectivos de “reconoce[r] y apoya[r] la capacidade, creatividad y la grande contribuición de las arquitectas”. Pela parte dos patrocinadores do prémio é referida inclusivamente a questão do empoderamento feminino social e corporativo, em que o grupo económico em causa estaria, segundo é dito, muito interessado (Interempresas, 2013).
Este exemplo, que pela sua afirmação inequívoca é relevante, pode ser um dos muitos necessários ver acontecer. A construção de redes diversificadas, por um lado, e a visibilidade do que fazem, pensam e propõem as arquitectas, por outro, são parte essencial de um processo de intra empoderamento com capacidade de se constituir como um caminho de exteriorização do mesmo. É imprescindível a organização de redes que alimentem o conhecimento, o reconhecimento, a divulgação e a visibilidade das práticas das arquitectas.
Susan Sontag refere a importância da participação das mulheres nas estruturas tradicionais. Na questão por ela enunciada da obtenção de poder igual, considera essencialmente a participação nas estruturas existentes. Sobre os encontros e actividades dedicadas à produção das mulheres, o que chama de construção de uma cultura separada, defende não serem acções que visem a obtenção do poder, por oposição ao que defende e que será essencial para ganhar a revolução não ganha ainda. Apesar do que afirma, refere igualmente que nunca recusou apresentar os seus filmes em festivais dedicados só a mulheres autoras. (Cott & Sontag, 2013, p.72)
Nesta esfera da presença das mulheres nas instituições, no que à arquitectura diz respeito, é de apontar, no caso português a existência de alguns casos interessantes. Apesar de nada indicar uma situação mais conseguida face a outras realidades europeias, não deixa de ser importante referir as duas presidentes que já estiveram à frente da Ordem dos Arquitectos (Pedrosa, 2013, p.244), ou as diversas directoras que alguns departamentos de arquitectura tiveram ou têm na actualidade. [6]
Numa resposta à questão de como agir surgem várias possibilidades, nem sempre consideradas de utilização simultânea. Decidirmo-nos pela construção de redes que reforcem o que se encontra em comum, discutindo-o, e permitir desse modo o empoderamento em meio controlado? Ou então perseguir a participação persistente nas estruturas institucionais vigentes, procurando nelas a tomada de poder? Parece-nos óbvio que a resposta não está em escolher um caminho em detrimento de outro. Antes usar todos os disponíveis, intensificando o seu uso mas também, se possível, inventar e arriscar novos.
IV
Como já referimos, Sontag fala da revolução por ganhar. Já em finais do séc.XVIII, Pierre Choderlos de Laclos (2002 [1783], pp.36-37) afirma a necessidade de as mulheres fazerem uma “grande revolução”, único modo de as mesmas conseguirem “escapa[r] à escravatura. Refere também que, por oposição à educação, a escravidão abafa as faculdades. Verifica-se que ainda que na educação formal a presença feminina suplante, neste momento, a presença masculina, no que chamamos a educação informal, de transmissão silenciosa e implícita, tal força não se reflecte.
Ao contrário do que é afirmado por Marx e Engels (1975 [1890], p.60), a época da burguesia não simplifica os antagonismos de classe. Se a luta das mulheres pelo igual lugar de visibilidade, de reflexão e de acção, ou seja, no poder é uma óbvia luta de classes, em nada a contemporaneidade é simplificada. É possível, inclusivamente, ser-se parte da classe oprimida, numa esfera social, e da classe que oprime numa outra. A hostilidade classista apresenta muitas dimensões e modos de acontecer. E se dúvidas existem sobre esta multitude de universos, demonstra a história que os revolucionários de ontem podem ser a classe dominante de hoje (Marx & Engels, 1975 [1890], pp.62-67), alimentando, com as suas acções asfixiantes quem fará a revolução de amanhã. Nas sociedades complexas o que antes se percebe acontecer numa linha do tempo, passa a colocar-se numa multiplicidade de acções e actores sincrónicos. Esta condição é parte do desafio e alimentará seguramente a reacção exigida.
Não parece relevante a ideia de que a arquitectura das mulheres será diferente — melhor ou não — do que a dos arquitectos homens. Cada indivíduo, enquanto arquitecto ou arquitecta terá a sua génese, corpo e cosmovisão particular. Antes se deve ter presente que o que se reclama é que a visibilidade, o poder e o acesso a todo e qualquer lugar profissional devem ser suportados unicamente pelo mérito do trabalho e das capacidades. Jamais por uma estrutura genética A ou B.
Por oposição ao trabalho invisível, exigente e muitas vezes desesperante que a arquitectura implica, surge-nos, enquanto público, a imagem de glamour e poder do fazer da mesma. Poder, criatividade e charme são atirados para cima da mesa, aplicando-se a quem a pratica este mesmo imaginário. A mistificação do arquitecto, ser de génio e capaz de sintetizar o belo necessário, esconde uma profissão com enormes responsabilidades sociais. Esta condição praticada do ser-se arquitecto/a valoriza a arquitectura e a cidade enquanto produto de consumo contra a condição essencial em ambas: constituírem-se como espaço de felicidade de quem as vive.
Não existe possibilidade de conquistar mudanças radicais a não ser com a convicção que os direitos e os poderes se exigem. Não considerar que o direito a uma existência efectiva das arquitectas portuguesas enquanto tal é uma luta (de classes!) longe de estar encerrada, é tomar como certa a mentalidade ficcionada pela visão androcêntrica, onde a dominação masculina é ratificada pela ordem social e desse modo tornada invisível.
A arquitectura é suficientemente importante para não se poder satisfazer com as estruturas sociais redutoras e segregadoras em que existimos. Redutoras de parte dos actores — as arquitectas — mas também de quem se vê implicado pelas práticas decisórias tanto arquitectónicas como urbanas — as cidadãs. As mudanças radicais implicam acções radicais. A revolução é a exigência, a imposição agida e exigida da mudança.
Arquitectas (portuguesas e) de todos os países, uni-vos!
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Patrícia Santos Pedrosa
(Lisboa, 1971) Arquitecta (1997, FAUTL), Mestre em História da Arte (2008, FCSH-UNL) e Doutora em Projectos Arquitectónicos (2010, ETSAB-UPC). Professora auxiliar e coordenadora pedagógica do Departamento de Arquitectura da ULHT, Lisboa. Investigadora do Labart, ULHT. Colaboração anterior com os ateliers UTOPOS e CVDB Arquitectos. Áreas principais de investigação: arquitectura portuguesa (séc.XX), teoria e história do habitar, antropologia do espaço e arquitectura e género. Diversos artigos publicados e presença em congressos, conferências e seminários em Madrid, Lisboa, Barcelona, Veneza, Berlim, Istambul, Brighton, Pamplona, entre outros.
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NOTAS
[1] Se, por um lado, existem apontamentos de mudança, refira-se, a título de exemplo, a investigação que está a ser realizada, em contexto de tese de doutoramento por Paula Monteiro, na Universidade do Porto, e que esperamos vir a trazer novidades e a ser a primeira das muitas necessárias, por outro, no 2.º Congresso Internacional Arquitectura e Género: Matrizes que se realizará em Lisboa em Março de 2015, consideradas as propostas apresentadas com contexto português — 4 em 75 — resulta, numa leitura seguramente simplista, numa falta de interesse por estes temas. Provável reflexo da própria invisibilidade desta discussão no âmbito académico português.
[2] Será importante saber a percentagem de arquitectas e arquitectos recém-formadas/os que não chegam a entrar na profissão e/ou a inscreverem-se na OA. É mais um dos estudos urgentes necessários para que se conheça efectivamente a profissão em Portugal.
[3] A título de exemplo: Arquitectos Anónimos, Artéria, Ateliermob, Blaanc, Embaixada ou Moov.
[4] Não é só a profissão liberal que exige a atenção de investigadores e da OA. Os corpos docentes universitários dos cursos de arquitectura, o poder local e central e o sector privado são outros universos específicos que interessa estudar e conhecer em geral e neste enfoque das arquitectas em particular.
[5] Cf. Rassegna Stampa Italia 2013 e Rassegna Stampa estera 2013 (arcVision, 2014).
[6] Por exemplo, o Departamento de Arquitectura da Universidade de Évora que contou com Marta Sequeira como directora e que tem na actualidade Sofia Salema ou do Departamento de Arquitectura e Urbanismo do ISCTE que tem Sara Eloy também como directora.
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REFERÊNCIAS
ARCVISION (2014). arcVision Prize. Obtido em 25 de Nov. de 2014, de arcVision: http://www.arcvision.org/?cat=311
BOURDIEU, P. (2002). La Domination Masculine. Paris: Éditions du Seuil.
BUTLER, J. (1990). Gender Trouble. Feminism and the subversion of identity. Nova Iorque: Routledge.
COTT, J., & SONTAG, S. (2013). The Complete Rolling Stone Interview. New Haven; London: Yale.
INTEREMPRESAS (19 de Fev. de 2013). Italcementi Group presenta el Premio arcVision Mujeres y Arquitectura. Obtido em 26 de Nov. de 2014, de Interempresas: http://www.interempresas.net/Construccion/Articulos/106034-Italcementi-Group-presenta-el-Premio-arcVision-Mujeres-y-Arquitectura.html
LACLOS, P. C. (2002 [1783]). Da Educação das Mulheres. Lisboa: Antígona.
MARX, K., & ENGELS, F. (1975 [1890]). Manifesto do Partido Comunista. Lisboa: Editorial «Avante!».
PEDROSA, P. (2013). Architectes (Portugal). In B. Didier, F. Antoinette, & M. Calle-Gruber, Le Dictionnaire Universel des Créatrices (Vol.1, pp.244-245). Paris: des femmes.
PEDROSA, P. S. (Março de 2013). Arquitectura: profissão e emprego. Boletim Arquitectos, 230, 21-22.
PEDROSA, P. S. (2014). Women Architects in Portugal. A long and widing road. In N. Álvarez Lombardero, Women Architects. Redefining the Practice 1st International Symposium on Architecture and Gender (pp.99-112). Sevilha: ETSAS-Universidad de Sevilla.
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[a autora escreve de acordo com a antiga ortografia]