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ERRARE HUMANUM EST…
MÁRIO J ALVES
Errare humanum est…
A deriva como acto estético e o desenho urbano
“Acreditei que a rua era capaz de provocar pontos de viragem na minha vida, a rua, com a sua inquietude e troca de olhares, era o meu verdadeiro elemento: lá, como em nenhum outro lugar, eu recebi os ventos da eventualidade.”
Andre Breton, Les pas perdus.
passos perdidos
A errância, a deriva, o flanar, o jogo, fizeram sempre parte do património sociológico e estético do ser humano e da cidade. Estas formas de procurar o encontro fortuito com o “outro” são os fundamentos da cidade democrática. Ao reduzirmos as deslocações sobre o território a um fenómeno meramente utilitário de ligação entre actividades, estamos a perder algo subtil, mas que nos define como sociedade [1].
Da mesma forma que dificilmente encontraremos um cardume de peixes a pensar sobre água e o acto de nadar, não é surpreendente que, apesar da impressionante catedral de conhecimento produzido nas últimas centenas de anos, seja pelo mundo académico, seja pelo científico, pouco ou nada saibamos sobre espaço público e o andar a pé. Apesar de nas últimas décadas se ter escrito muito sobre a importância do espaço público, pouco sabemos sobre as características que lhe conferem as qualidades que dele se desejam. Andar na vertical e a pé, é uma qualidade única de quem inventou as cidades — aliás, em tibetano “humano” é “o animal que anda”. O acto de nos movimentarmos pelos nossos próprios meios, apesar do sedentarismo e do exacerbar do uso das tecnologias em substituição da deslocação física, continua a estar de tal forma entrosado no nosso dia-a-dia, que pouco pensamos no assunto — a não ser quando somos, lentamente ou brutalmente, privados de o fazer.
os jardineiros na poética do espaço
São muitas as disciplinas que quotidianamente modificam, maltratam ou ignoram o espaço público. No ensino da arquitectura, a atenção tem sido dirigida ao objecto que, de melhor ou pior forma, encontra espaços vagos para ser colocado — o que sobra, o espaço entre os edifícios, é o que vai aparecendo depois de termos esgotado todo o nosso cuidado na forma e função do objecto arquitectónico. A engenharia projecta para a eficiência, fluidez e velocidade — ignorando que os espaços entre edifícios são muito mais que canais de circulação. Entre edifícios, passeamos, conversamos, comemos, morremos, fazemos revoluções ou procissões religiosas.
Estes dois conceitos, pela sua enormidade “invisível”, podem e têm a potencialidade de ser as disciplinas de um futuro em que as fronteiras serão cada vez mais frágeis e impossíveis de detectar. É através da fluidez e deriva do andar a pé, na sua pureza a-tecnológica e liberdade irreverente, que se materializa o espaço público — sem caminhantes, ele desaparece. É talvez este carácter insubmisso que confere ao espaço público e ao andar a pé um cunho eminentemente político, em contraponto com a arquitectura e todo o esquema viário que não passam de tentativas de fomentar a ordem, e que aparecem como formas de domesticar o espaço urbano [2]. A sectorização do espaço público — “cada macaco no seu galho”, cada modo de deslocação em espaço próprio, cada função em zona regulamentar — pode ter sido o mais agressivo assalto do racionalismo tecnocrático ao funcionamento da cidade democrática. Da mesma forma que se começou por sectorizar as cabeças e as especialidades, a prática teorizada na Carta de Atenas [3], foi e tem sido até agora um mero espelho da autocracia da academia, das instituições e do estado. Precisamos de repensar a cidade aberta e democrática.
lar doce lar
Não será por acaso que foi durante os anos 50, quando se assistiu à massificação do uso do automóvel e à consequente apropriação tecnocrática do espaço público, que Guy Debord lançou um convite à deriva. No seu célebre ensaio situacionista, Debord usa a deriva como uma forma de o caminhante revisitar a forma como olha os seus espaços habituais — psicogeografia. Convida a libertar-nos dos nossos percursos rotineiros e a olharmos a cidade de uma forma nova, radical e surpreendente. Com propostas muito práticas de chegar à deriva, Debord apresenta-a como um acto de insubordinação em relação à forma como as nossas cidades começavam a ser desenhadas [4].
O andar a pé e no espaço público poderão conter resposta codificada, mas evidente, ser o líquido amniótico de onde nascerá um novo paradigma. Se, até agora, as disciplinas da arquitectura e engenharia exacerbaram a atenção ao automóvel e ao edificado, podemos começar a delinear a forma como a natureza intrinsecamente fluida do espaço público e do andar a pé pode apontar para uma inversão de valores. Como única forma possível de nos aproximarmos destes novos valores temos naturalmente o jogo da interdisciplinaridade e a participação de todos. Mas ao colocarmos a “vida” em primeiro lugar e infectarmos o nosso trabalho com a participação de cada um, é natural que se estejam a dar os primeiros passos uma metadisciplinaridade, deixando para trás hábitos e formas de aprender que tanto mal fizeram à cidade. Esta metadisciplinaridade implica visões partilhadas de futuro, baseadas em conceitos construídos entre políticos, técnicos e cidadãos.
No entanto, estas duas manifestações culturais, espaço público e andar a pé, foram progressivamente postas em perigo pelo uso exacerbado da máquina — o automóvel. É uma tendência muito recente na história das cidades. Se pensarmos bem, até à popularização do automóvel, era raro ou praticamente impossível um peão estar exposto a impactos acima dos 30 km/h. Este limiar na capacidade de absorção da energia de impacto deixa o ser humano sujeito a uma morte quase certa para velocidades superiores. Durante milhões de anos, o ser humano cruzou o espaço sem receio de perder a vida por impactos desta natureza. Desde a massificação do automóvel nas cidades que, durante a infância, somos, subliminarmente ou não, avisados do perigo iminente em cada esquina. É natural que, anos depois, quando actores adultos dos espaços da cidade, evitemos a rua e recolhamos à segurança doméstica.
Este é, aliás, um fenómeno muito observado e investigado ao longo do século XX: com o aumento da presença e velocidade dos automóveis, diminui a presença e circulação dos peões. Dito de outra forma, com a invasão do automóvel, as ruas deixam de ser aquilo para o qual serviram durante séculos — pontos de encontro. Transformadas em “esgotos de tráfego” as ruas transformam-se em patologias. A velocidade dos automóveis (o perigo, e em menor grau o ruído), é o elemento que mais contribui para esterilizar as ruas, transformando-as em meros corredores de passagem [5].
entre o olhar e o ver
Nos últimos anos, primeiro nas províncias do norte da Holanda e depois no resto da Europa, começaram a experimentar-se sistemas curiosos de desenho urbano, de coexistência entre os carros, peões e bicicletas. No fundo não são mais que um retorno às origens: quanto menos ordenamento e sectorização funcional do tráfego, mais seguro e humano é o espaço público. Optando por uma estratégia de partilha do espaço público, os primeiros projectos da autoria de Hans Monderman rejeitaram a separação entre modos e toda a panóplia de sinalética e regulamentação viária que ainda hoje é normal em projectos com a presença de automóveis e peões. Através do uso de materiais que desconstroem a tradicional separação entre a via, passeios e ciclovias cria-se uma flexibilidade e fluidez em que todos os participantes interagem de olhos nos olhos. A ausência de conflitos é conseguida através de uma negociação baseada no princípio de que a prioridade é sempre do mais vulnerável.
Ao retirar toda e qualquer marcação no pavimento e sinalização de trânsito, Monderman conseguiu que os motoristas começassem a sentir-se como actores sociais da praça ou cruzamento, e a comportar-se como peões. Retirando-se passadeiras e dando-do prioridade aos peões, o espaço torna-se num ballet de interacção com o corpo e o olhar, onde todos os modos convivem e as funções de estadia, deslocação e jogo se misturam. Desenhando o espaço com prioridade para as pessoas e não para os carros, podemos desburocratizá-lo e reduzir a velocidade para níveis onde é novamente possível a deriva e a socialização [6]. Podemos celebrar finalmente a importância da atenção e da descoberta de Guy Debord — ou como disse um dos projectistas, quanto mais perigoso for um espaço, mais seguro ele é. È o desenho para a incerteza e o intrigante que nos predispõe a retomar a conversa com quem cruzamos. A troca de olhares de que falava Breton.
a arte de engendrar o aleatório e imaginar cidade
É neste imperativo de voltarmos a comunicar com o “outro” como um elemento fundamental para o funcionamento democrático da cidade. Por diversas razões as últimas décadas erodiram progressivamente a relação entre desconhecidos no espaço público. A consequência é o afastamento, consciente ou não, das disciplinas que interevêm na rua de conceitos morais, politicos e referencia ao bem-estar colectivo.
Através de um renovado convite à deriva como acto estético e à apropriação assertiva do espaço, que surge agora uma arte pública sem pedestal, mas combinada com o desenho urbano, o edificado, a paisagem e as pessoas. Recusando a tradicional separação entre o observador e o objecto — a arte pública mais interessante que se pratica hoje é efémera, participativa e espontânea. Segundo Exupery, para construir um navio teremos que primeiro instalar na cabeça dos homens o desejo pelo mar infinito. Para voltarmos a ter ruas onde apeteça conversar, teremos que descobrir “estórias” que nos levem a desejar cidades [7].
Um dos temas da arte de rua já é, e terá que ser cada vez mais, como desconstruir e subverter os espaços sociais que, ao longo dos anos, foram tomados de assalto pela fúria normativa e regulamentar de quem quer mandar ou tem medo do descontrolo. A transgreção de fronteiras e obstaculos do parkour, o fazer cenas e desaparecer na cidade, a apropriação criativa de um espaço de parquímetro, a cartografia das emoções de quem atravessa uma rua, o desenhar a deriva na paisagem com um gps no bolso, são apenas alguns exemplos de como a arte poderá contribuir para a psicogeografia colectiva ou de cada um.
E mais uma vez poderão ser a arte e a filosofia a ajudar-nos a descobrir um novo caminho.
Mário Alves
mariojalves@gmail.com
Engenheiro, Mestrado em Transportes e Mobilidade pelo Imperial College de Londres.
[1] Sobre a beleza espiritual do andar, Henry D. Thoreau, Walking, Boston: Applewood Books, 1987.
[2] Introdução de Manuel Delgado ao livro de Hélène Fretigné, Uma Praça Adiada: Estudo de Fluxos Pedonais na Praça do Duque de Saldanha, Assírio & Alvim Editores, 2006.
[3] Ler por exemplo o ensaio seminal do Christopher Alexander A City is not a Tree, Architectural Forum, Vol 122, No 1, April 1965, Vol 122, No 2, May 1965
http://www.patternlanguage.com/archives/alexander1.htm
[4] Guy-Ernest Debord, Theory of the Dérive, Les Lèvres Nues, 9, 1956.
http://library.nothingness.org/articles/all/all/display/314
[5] Appleyard, D. Livable Streets: Protected Neighborhoods, Berkeley,. CA: University of California Press, 1981.
[6] Engwicht, D. Mental Speed Bumps, Envirobook, 2005.
[7] Daniel Sauter Freedom to Walk – Walk to Freedom: Reflections on Walking, Democracy and the Redistribution of Time and Public Space Comunicação apresentada em 2003, na conferencia Walk21 em Portland, Oregon.