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ESPAÇOS DE FILMAR
LUÍS MARIA RODRIGUES BAPTISTA
ESPAÇOS DE FILMAR
(eu sou um filmador / eu filmo / eu filme)
Há já alguns anos que a minha prática de desenho passa pelo uso diário do dispositivo de imagem que transporto comigo: uma câmara de filmar, que se tornou para mim num verdadeiro “lápis electrónico”. Filmo com o pretexto de aumento da espessura percepcional do meu próprio corpo, de criação de memória e de arquivo daquilo que perscruto mais intensamente. Filmo com o pretexto de capturar toda a multiplicidade de pontos de vista daquilo que se apresenta diante de mim, num curto espaço de tempo. Filmo com o pretexto de posteriormente converter as imagens em movimento, em pequenos espaços-vídeo, ou simplesmente decompô-los em fotografias, onde descubro tudo aquilo que não vi na altura da captura. Desenho enquanto filmo, quando aponto a câmara para aquilo que me desperta a atenção, que sou capaz de pressentir ou esperar que aconteça. Nesse instante fico a assistir ao aparecimento do desenho-imagem que me predispus deixar aparecer, sentir e imaginar. Crio em tempo real um acontecimento pelo qual não sou responsável a não ser pelo seu ponto de vista. Monto em tempo real a vida, através da máquina de desenhar ligada. O resultado são esquissos vivos com tempo e duração própria, com tempo dentro de si próprios. Registo o espaço e a vida que nele acontece através de um dispositivo mecânico de produção de imagens, que agarro convictamente com a minha mão e com o meu olhar previdente.
(a minituarização dos espaços de filmar)
Porém nem sempre foi assim. No início as máquinas de produção de imagens eram espaços capazes de abrigar e albergar o corpo humano.
Progressivamente expulsaram-no e ficamos do lado de fora à medida que se aperfeiçoaram, tornaram cada vez mais pequenas e se infiltram no interior do nosso corpo.
(da invenção da câmara escura aos adornos tecnológicos do homem filmador-projector)
A relação espaço, corpo, dispositivo de fabricação de imagens sofreu alterações profundas do ponto de vista do controlo da experiência percepcional e consequentemente do olho e do espaço, desde a criação do primeiro dispositivo técnico de produção de imagens, liberto da acção da mão: a câmara escura, até aos dispositivos de imagem contemporâneos de imersão total como a realidade virtual. Ainda exterior ao nosso corpo e à nossa pele, mas a caminho do seu interior através de todos os adornos e próteses tecnológicas de imagem substitutos dos adornos humanos primitivos, prestes a invadir a nossa carne. Existentes todos, senão na realidade pelo menos na imaginação do homem sob a forma de jóias-pen, tatuagens digitais, piercings-chip e máquinas de comunicação, arquivo e conversão da memória, dos sonhos, dos pensamentos e da fala em imagens. Autênticas máquinas criadoras de filmar e projectar as imagens do cinema interior de cada um. Talvez ainda a tecnologia nos permita um dia acrescentar ao nosso corpo filmador a par do aparelho fonador com que a natureza nos dotou, um aparelho projector externo capaz de projectar em tempo real as nossas imagens mais internas.
(os primeiros espaços de filmar e projectar: a câmara escura e a lanterna mágica)
Antes de continuar, importa distinguir e identificar dois tipos de espaço de criação de imagens: os espaços dispositivos de captura, nos quais se insere a câmara escura e os espaços dispositivos de projecção como a lanterna mágica, que é a consequência natural e a inversão técnica dos princípios da câmara escura. Ao contrário dela que traz para o seu interior uma presença exterior do mundo, a lanterna mágica acrescenta-lhe algo que não está nele.
A câmara escura era um espaço estanque à luz, capaz de conter o corpo humano, onde entrávamos com o único propósito, de simulação de uma experiência, que através da luz exterior trazia para dentro da câmara a partir de um pequeno orifício aquilo que estava do lado de fora e que queríamos ver repetido. Criava um desdobramento da realidade: uma imagem invertida, que não víamos nítida e que percepcionávamos como um estremecimento, uma espécie de fantasma.
Ao contrário, a lanterna mágica era uma caixa óptica iluminada interiormente que utilizava a luz de uma vela ou de uma lâmpada a petróleo para transportar uma imagem, desenhada sobre uma placa de vidro, do espaço interior do dispositivo, para o espaço exterior do mundo, através do uso de espelhos. Continha em si a possibilidade de projecção de mundos inexistentes. As presenças exteriores, as imagens – desdobramentos da realidade – que criava brotavam do interior do próprio dispositivo de projecção, que para produzir o seu efeito de presença no espaço do mundo tinha necessidade de proceder ao escurecimento prévio do espaço onde aparecia e de um plano branco para poder surgir, atrás do qual se ocultava.
A vocação científica da câmara escura naturalmente foi alterada programaticamente para se transformar num teatro óptico, numa tecnologia produtora de espectáculos de fantasmagoria, capaz de controlar todo o espaço da experiência perceptiva humana.
(a fotografia e o cinema são dipositivos de mediação e simulação da experiência sensível)
O aparecimento destes dispositivos ópticos de produção, fabricação e projecção de imagens, que desde a sua origem tentam simular e reproduzir as actividades sensíveis, espirituais e neurológicas da visão humana, não são mais que dispositivos ópticos de nós mesmos, da nossa própria consciência. Qualquer dispositivo de produção de imagens é equivalente ao olho humano. O aparelhamento do corpo humano com dispositivos de simulação das funções dos sentidos visou, desde muito cedo, o controlo da totalidade da experiência. Por produzirem emanações fantasmáticas do nosso próprio corpo não são dispositivos vocacionados para a representação do mundo, são antes dispositivos, de constituição, produção e simulação de experiências sensíveis do homem. Para Walter Benjamin, não interessa perceber se a fotografia e o cinema são formas de arte, se são formas de representação do mundo, mas sim pensá-los em relação à nossa percepção enquanto dispositivos de mediação da experiência sensível de cada um.
(a arquitectura é o 1º dispositivo de mediação da percepção)
É inevitável pensar que a arquitectura, enquanto interface entre a arte e a vida, suporte globalizador de qualquer acção humana, imagética ou não, é o primeiro dispositivo de mediação e de constituição da experiência humana que conhecemos e percepcionamos através da possibilidade de habitar que nos oferece. Aquilo que está na sua essência é o controlo da experiência, à qual todos outros media que conhecemos contemporaneamente foram buscar ensinamentos.
(arquitectura, câmara escura )
Deste modo não é de estranhar, que a câmara escura seja um espaço simulador repleto de todo um conjunto de relações e de acções próprias da arquitectura, relações de luz, de interior / exterior e de acções como entrar, sair, permanecer, enquadrar, capturar, espreitar e ver o mundo que nos rodeia.
(arquitectura, lanterna mágica )
A lanterna mágica permitiu consciencializar a função primordial da arquitectura, a de abrigo do sonho. A lanterna mágica é o dispositivo onírico do corpo humano, invertido e apontado para o exterior que permitiu ao homem sair de si mesmo. No espaço exterior escurecido assistimos à nossa própria projecção. Vimos o nosso corpo interior. Vimos os nossos fantasmas, sonhos e desejos mais secretos fora de nós, com o mesmo espanto com que vimos e consciencializamos a partir da lua, a forma do planeta terra que habitamos.
Actualmente assistimos ao mergulho que as tecnologias de aumento e de criação de memória fazem no espaço interior do corpo humano. Mediados por dispositivos de produção de imagem, saímos de nós próprios e do planeta que habitamos para tomar balanço para o mergulho/imersão final que falta na conquista do espaço: o corpo humano da era da simulação e da transmedialidade técnica.
(da câmara escura à fotografia)
A entrada ou não do corpo no espaço físico de cada um dos espaços-dispositivos de imagem passou a depender dos modelos que entretanto se foram construindo, aperfeiçoando, vulgarizando e tornando portáteis, como acontece actualmente com qualquer tecnologia.
Inúmeros modelos de câmaras escuras apareceram, desde a primeira ilustração arquitectónica publicada em 1545. Existiram em forma de liteira, tenda, mesa, livro ou caixa portátil até ao aparecimento da primeira câmara de daguerretopia em 1839, cuja inovação principal consitiu na colocação no interior da câmara escura, de placas de cobre, cobertas com prata, sensibilizadas com vapor de iodo. Estava assim iniciada a descoberta do processo químico que permitiria a fixação de imagens e a invenção da fotografia, que prontamente passou a estar ao serviço da investigação em áreas relacionadas com o corpo humano com a sua relação com o espaço.
(da fotografia ao cinema através da 1ªarma produtora de imagens)
O fotógrafo, Eadweard Muybridge e o médico, Étienne-Jules Marey foram contemporâneos e percursores daquilo que viria a ser posteriormente o cinema. Realizaram estudos sobre o movimento, utilizando sistemas que permitiram posteriormente o desenvolvimento das câmaras de filmar. Muybridge mais interessado na análise / decomposição do movimento. Marey mais interessado na reconstrução / síntese do movimento.
Marey, na área da fisiologia propõe o primeiro aparelho scanner para o corpo interior. Cria a primeira arma fotográfica: o fusil fotográfico. Converte um tambor de revólver, num dispositivo de 12 disparos fotográficos. Alia entretenimento e guerra. O carácter visionário desta invenção cronofotográfica faz a transição entre a máquina de fotografar e a máquina de filmar: responsáveis pelo desenvolvimento de formas de olhar, o corpo do homem e o espaço envolvente.
A fotografia olha para o exterior do homem e para espaço geográfico em seu redor.
O cinema permite olhar para o interior do homem e para o seu espaço subjectivo.
Investiga-se simultaneamente, o corpo do homem através da fotografia e o mundo e a produção de novos mundos através do cinema.
(espaços de ilusão e imersão)
Como consequência natural, destes desenvolvimentos técnicos, na continuação dos espaços de ilusão e de imersão, de controlo da visão e da experiência perceptiva que a pintura há muito tinha iniciado, naquela que poderemos denominar de “primeira sala de realidade virtual” que conhecemos, em Pompeia, na Villa dei Misteri, de 60 a.C., surgiram a partir do séc.XIX, muitos espaços de visionamento de imagens e de criação em nós de estados mágicos nunca antes pressentidos, que se podem subdividir conforme a natureza da sua recepção em espaços produtores de ambientes imersivos colectivos e individuais.
Entre os espaços de imersão colectiva destaco: 1) o panorama, de origem militar e política que rapidamente se misturou com a arquitectura, associado à ideia de paisagem, permitiu o aumento do campo de visão para 360º e o envolvimento total do corpo, pelas qualidades de escala real que o caracterizava, antes de entrar no domínio dos pequenos peepshows privados à escala do olho; 2) o cinematógrafo, descendente directo da lanterna mágica, que controlou o olho e o espaço, simultaneamente imobilizou o espectador e reduziu o campo de visão para 180º, compensando a experiência sensível com o som; e 3) o cinerama que fez a mistura do cinema com o panorama.
Outras variações de espaços colectivos de recepção de imagens como o vitarama ou o cinemascope, apareceram à medida que a tela de projecção aumentava, capaz de a atingir 1000 m2, em sistemas actuais como o 3D IMAX.
Entre os espaços de imersão individual destaco: 1) os peepshows privados, reflexo da natureza escopófila do homem, que exteriorizavam os desejos humanos mais secretos, organizaram-se em grandes espaços de encontro público que davam pelo nome de arcadas e 2) o sensorama simulator, sob a influência directa da televisão-vídeo, era uma máquina de controlo do corpo e do espaço, criador de um ambiente multimédia onde só cabia um usuário de cada vez, que simulava funções da visão estereoscópica, da audição, do olfacto e do tacto.
As evoluções tecnológicas electrónicas, foram e continuam a ser as principais responsáveis pela perda de referenciais espaciais exteriores ao corpo na deslocação da experiência percepcional de imersão para espaços cada vez mais pequenos, através do processo de minituarização e interiorização que iniciaram nos anos 60 com os primeiros capacetes de realidade virtual (HMDs), cujo efeito principal foi o aparecimento das artes virtuais que não me cabe aqui tratar.
Destes espaços ilusórios imersivos interessa-me apenas realçar o seu estatuto de contentores-abrigo do corpo humano (panoramas, estereópticos, cinerama, planetários, OminMax, IMAX, C.A.V.E.s) e o seu estatuto de aparatos que mostram directamente os sonhos dentro dos nossos próprios olhos (peepshows, estereoscópios, TV, sensorama e HMDs).
Stereokinos, iodoramas, cicloramas, pleoramas, delloramas, são variantes dos muitos espaços-aparatos que se desenvolveram, sempre como aperfeiçoamentos-consequência dos anteriores.
(arquitectura moderna enquanto espaço de filmar)
Le Corbusier, pai da arquitectura do movimento moderno, conhecedor-praticante rodeado de todos estes dispositivos de imagem foi o primeiro a chamar a atenção, através da sua prática projectual para a relação que a arquitectura de cada época desenvolve com as tecnologias de imagem que lhe são contemporâneas, do ponto de vista da representação e da simulação. Ao contrário daquilo que muitos afirmam, Le Corbusier, foi um utilizador intenso dos dispositivos de imagem do seu tempo, quer da máquina fotográfica quer da máquina de filmar. Tal facto pode ser constatado no gigantesco espólio de fotografias e de filmes existentes na Fundação Le Corbusier em Paris. Le Corbusier desenhava a partir de fotografias que tirava. Manipulava-lhes muitas vezes o conteúdo, quando retratavam obras suas que punham em causa muitos dos princípios que divulgava.
A relação de Le Corbusier com os mass media do seu tempo é bem visível na estruturação de projectos como o apartamento Beistegui, a villa Savoye ou villa Stein.
Para Le Corbusier, como refere Beatriz Colomina, no seu livro “Privacy and Publicity: Modern Architecture as Mass Media”, ver é a actividade primordial da casa. A casa é um dispositivo para ver o mundo. É um mecanismo da visão que produz o sujeito. Precede e enquadra aquele que a ocupa. Habitar significa ver. Habitar significa habitar uma imagem. O habitante está envolvido e protegido por imagens. A janela é pensada como um olho e percebida como uma lente fotográfica. A casa é um sistema de captura de imagens, que podem ser tomadas à medida que nos deslocamos nela, uma vez que o espaço que a constitui é produzido por planos de imagens em movimento. A casa é um sistema de enquadramento e de classificação da paisagem. A casa não é mais que uma série de vistas coreografadas para o visitante pelo arquitecto, de modo equivalente ao processo de montagem de um filme.
A janela em comprimento, ou em rolo como Beatriz Colomina lhe chama, pela associação formal com a película fotográfica é o melhor exemplo-síntese da importância e da influência que as tecnologias do tempo, do espaço, do corpo, da luz e do movimento como a fotografia e o cinema desempenharam no pensamento, na construção moderna do espaço e no controlo da experiência percepcional humana.
A arquitectura enquanto espaço de filmar, e por isso arte do tempo, não é mais que a colocação em movimento através do nosso corpo e da nossa imaginação, de imagens, aparentemente em repouso, deixadas em potência por quem a pensa, nos enquadramentos construídos tridimensionalmente.
Le Corbusier definia a Arquitectura como jogo sábio, correcto e magnífico dos volumes dispostos sob a luz. Atrevo-me a dizer o mesmo da fotografia e do cinema.
Luis Maria Rodrigues Baptista, Arquitecto.
Docente de Projecto da Universidade Lusíada.
Mestrando do Curso de Ciências da Comunicação, na área de Cultura Contemporânea e Novas Tecnologias, da Universidade Nova de Lisboa, com a Tese: Imagem, Movimento e Amor no Espaço Arquitectónico – os três últimos materiais de construção do espaço por vir: o espaço (trans)lúcido.
Ambientes Bibliográficos:
"Sobre Arte, Técnica, Linguagem e Política", Walter Benjamin, Relógio D`Água.
"Privacy and Publicity: Modern Architecture as Mass Media", Beatriz Colomina, MIT, Press,1994.
"A Pele da Cultura" Derrick de Kerchove, Relógio D`Água.
" Techniques of the Observer : On Vision and Modernity in the 19 th
Century", Jonhatan Crary, MIT Press,1990.
" Suspensions of Perception : Attention, Spectacle and Modern
Culture", Jonhatan Crary, October Books.
"La Machine de Vision : essai sur les nouvelles techniques de
représentation", Paul Virilio éd. Galilée, 1988.
"Virtual Art - From Illusion to Immersion", Oliver Grau, MIT Press, 2003.
" A Poética do Espaço ", Gaston Bachelard , Martins Fontes.
" Câmara Escura"
http://www.cotianet.com.br/photo/hist/camesc.htm
"Adventures in Cybersound - Panorama"
http://www.acmi.net.au/AIC/PANORAMA.html
"The Panorama Effect: Spectacle for the Masses"
http://newman.baruch.cuny.edu/digital/2003/panorama/new_001.htm
Muybridge main page
http://www.figuredrawings.com/Animation.html
George R. Lawrence
http://www.bigshotz.co.nz/george_lawrence.html
"Arte transgênica via Internet"
http://www.fabiofon.com/webartenobrasil/texto_genesis.html