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PODERÁ O PATRIMÓNIO SER EMANCIPATÓRIO?
JOANA VARAJÃO
[1]
"I woke with this marble head in my hands; it exhausts my elbow and I don't know where to put it down"
George Seferis [2]
Prelúdio
Importa clarificar, perante o potencial leitor, que à questão que se coloca não corresponderá uma resposta inequívoca. Pretendemos, sim, a partir dela, convocar um conjunto de tensões, reflexão crítica onde as pedras, imóveis e aparentemente impenetráveis, possam ser desconstruídas e lidas a partir da sua mineralidade, nem que seja apenas para que, como Sísifo, as vejamos rolar de seguida, para o lugar de origem. “Importa imaginar Sísifo feliz" [3].
Convocamos assim, como ponto de partida estruturante, e na senda de Jacques Le Goff, as três visões temporais expressas, em profundidade, por Santo Agostinho: “o presente das coisas passadas, o presente das coisas presentes e o presente das coisas futuras” [4]. Esta aproximação ao passado e ao futuro, enraizada nas circunstâncias do presente, remete-nos para um agora multidimensional, através do qual procuramos questionar, de forma breve e sucinta, as condições que participam na construção do que entendemos por património. Por esta via procuramos revelar “um estado da sociedade e das questões que nela existem” [5], que aqui convocamos na defesa de uma necessária – e desejável – transformação, por via da emancipação.
O presente das coisas passadas
“Ocupado com o terror do Caos e a fabricação da Ordem, afigurara-se ao homem na sua genial tarefa que o ponto de partida já estava vivido. Aprendeu então o homem à sua custa que a nenhuma unidade se pode privá-la do princípio, pois jamais se saberá onde e como começa” [6].
Na raiz etimológica da palavra património (do lat. patrimonĭu), se revela a relação entre o radical patr-, evocador de uma ideia de origem e de pertença, comum a palavras como pátria e pai (pater-), e herança (monĭu), enquanto ação, concretizada no ato de receber. Somos assim convocados, enquanto fiéis depositários de um bem que nos liga, de forma telúrica, a um (ante)passado. A condição de fiéis depositários, aparentemente imutável, geradora de uma separação aparentemente intransponível entre o que foi e o que é, assemelha-se, de alguma forma, à relação entre o humano e o sagrado. O gesto profanador que colocamos em causa, emancipatório porque revolucionário, procura restituir ao uso dos homens o que lhes foi interdito. Falamos de um gesto profanador possível, que desvirtue as premissas do património enquanto discurso autorizado [7], legitimado pelo poder historicamente instituído e que ponha em causa o relevo da materialidade na sua manifestação. Falamos de um gesto que nos permita questionar (e contrariar) a relação inviolável [8] entre património e nacionalismo, distorcer os limites da produção de conhecimento científico que o legitimam, e multiplicar os agentes com autoridade para falar (e agir) sobre este.
Descobrir - e revelar - patrimónios alter-nativos [9], permite-nos imaginar novas conceções de origem e de fim, que possam concretizar o papel ativo - e coletivo -, que o património pode ter, pela via da alteridade, no encontro com o Outro. Importa, nesta medida, concretizar novas origens patrimoniais, por via de uma nova (alter)natividade, e distanciar-mo-nos do ato em si de receber, contrapondo-lhe a construção de novos espaços-tempo, onde as relações de pertença e memória se constroem, multiplicam e legitimam, entre o global e o local.
O presente das coisas presentes
“E era preciso voltar ao princípio. Outra vez ao princípio. O eterno retorno” [10].
Restituir ao uso dos homens o que lhes foi interdito implica considerar o património a partir da sua maleabilidade, negociação ativa, em permanência, da sua origem e do seu propósito. O processo de democratização da relação da sociedade com o seu passado reflete-se na forma como se multiplicaram, no final do século XX, os confrontos implicados na relação entre o passado e o futuro, demonstrando, por essa via, o papel central do património como instrumento de poder, nos processos de diálogo e resistência coletiva. Neste contexto, destaca-se, inegavelmente, a Europa como centro da produção teórica e da razão científica, e, consequentemente, a narrativa histórica ocidental, determinante na definição identitária dos indivíduos, coletivamente conceptualizados através da figura do estado-nação. Mas como escreve Finazzi-Agrò [11], “a memória é um lugar onde chove lá dentro”, reportando a um conjunto de permeabilidades da memória institucionalizada, reveladoras de um conjunto de complexidades e contradições que escolhe não revelar – “histórias que ladeiam ou transparecem” no progressivo declínio das muralhas que a contêm. Nas palavras de Chakrabarty, «[a]s European scholars and Europeanists have struggled to make sense of the changes happening in the continent and in their own spheres of studies, as they have engaged in discussions of European futures after globalization and addressed issues such as “Fortress Europe” versus “multicultural Europe,” new avenues of inquiry have opened up»[12]. Esta reflexão revela-se a várias escalas. À escala global, novas configurações geopolíticas põem em causa a centralidade histórica do ocidente, e exigem novas convergências na criação de estratégias futuras, onde a identidade cultural e simbólica do velho continente se transforma. Como nos diz Appadurai [13], as paisagens de identidade grupal desterritorializaram-se e a homogeneidade associada à construção dos estados-nação, é atualmente convocada para um conjunto de conflitos, marcados por novas permeabilidades, onde o papel da mobilidade – de objetos, pessoas, ideias e modelos – tem um papel central. Significado e identidade, considerados de forma estratégica e através da sua posição relativa [14] são continuamente negociados, participando na construção de um diálogo sobre aquilo que o património - e o coletivo - é, e poderá vir a ser.
O presente das coisas futuras
“Outra vez ao princípio é trabalho dobrado: desfazer Regras e voltar às Leis, sair do desfeito e entrar no que se torna a fazer. A isto mesmo se chama Revolução (do latim Re-volare: tornar a voar)” [15].
Os patrimónios alter-nativos que procuramos evocar exigem uma construção que é, simultaneamente, científica e política. Os mecanismos de controlo e dominação, de que Foulcault [16] nos dá conta – afetos ao poder disciplinar e jurídico – e que procuramos ver através da lente do património, encontram-se, atualmente, fragmentados e multiplicados, fora dos seus limites [17]. O domínio científico debate-se com a afirmação, e progressiva legitimação, de outros campos de saber, os quais colocam em causa fundações epistemológicas, e onde se afirmam, por exemplo, os saberes indígenas. Paralelamente, a produção, "de um quadro jurídico, administrativo e financeiro para a cooperação internacional na salvaguarda do património, [cria] poderosos instrumentos para a atribuição de responsabilidades legislativas e orientações políticas na gestão dos recursos culturais nacionais e internacionais” [18] a um nível supra-nacional. Este processo de complexificação crescente influencia os limites e mecanismos de ação sobre o património, e os atores que, legitimamente, participam desse processo. De forma semelhante, assistimos a uma dupla subordinação e simplificação de um passado complexo, pela sua adequação às lógicas classificativas internacionais e para uma inserção nos processos de mercantilização cultural, que se intensificaram no final do século XX. Descolando-se dos monumentos e objetos tidos como patrimonialmente relevantes, para as próprias cidades e paisagens históricas, o património deixa de ser algo que nos é externo, para nos passar a envolver, enquanto seres patrimonializados, classificados.
Poderá o património libertar? Intuímos que uma atuação crítica sobre o património, pela via emancipatória, assentará, necessariamente, na legitimação plural de narrativas alter-nativas, ampliada pela atual condição marginal de grupos, lugares e culturas que a constituam, numa narrativa histórica descentralizada, e verdadeiramente cosmopolita [19]. Nessa medida, e pela eficaz coexistência de visões e estratégias de ação distintas, se alcançará o necessário reconhecimento (e transformação) de um conjunto de situações fronteira (espaciais, administrativas, sociais ou simbólicas) que limitam a participação e agência de grupos minoritários [20] neste processo. Assim, entendemos que a emancipação por via do património depende em grande medida, da multiplicação dos lugares de origem do discurso, privilegiando uma leitura “de cima para baixo”, mas também “nas suas horizontalidades e lateralizações” [21], a partir da qual novas formas de governança e lugares de mediação se enunciam e afirmam, no presente das coisas futuras.
Joana Varajão
Arquiteta. Concluiu o Mestrado em Arquitetura pela Faculdade de Arquitetura da Universidade do Porto em 2013. Frequenta o Mestrado em Estudos Urbanos, parceria entre o Iscte e a NOVA-FCSH, desde 2020. Em 2019, coordenou o programa Building 101, Projeto Associado à Trienal de Arquitetura de Lisboa – A Poética da Razão. Entre 2017 e 2014, co-organizou os debates Battle of Ideas, em Lisboa e no Porto, em colaboração com o Institute of Ideas (Londres).
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Notas
[1] Parafraseamos Boaventura de Sousa Santos, que formulou uma pergunta semelhante em relação ao conceito de direito. Em: Boaventura de Sousa Santos, "Poderá o direito ser emancipatório?", Revista Crítica de Ciências Sociais n.º 65, Coimbra, maio 2003, pp. 3-76. A questão que o autor coloca “[p]arte (...) do princípio de que existe um conceito genérico de emancipação social, diferente e à parte daquilo que é a emancipação individual e de projectos emancipatórios particulares de grupos sociais diferentes, ocorridos em contextos históricos diferentes. Além disso, dá por adquirido que existem expectativas sociais que estão acima e para lá das actuais experiências sociais, e que o fosso entre as experiências e as expectativas pode e deve ser vencido” p.8.
[2] Edmund Keeley & Philip Sherrard, “Mythistorema”, in George Seferis: Collected Poems, (Rev.), Princeton University Press, 1995, pp. 1–28.
[3] Albert Camus, O Mito de Sífiso, Lisboa, Arcádia, 1982, p. 141.
[4] Santo Agostinho [Confessions, XI, 20-26] citado por Jacques Le Goff , História e Memória, Campinas, SP Editora da UNICAMP, 1990, p.548.
[5] Françoise Choay, Alegoria do Património, Lisboa, Edições 70, 2014, p. 11.
[6] José de Almada Negreiros, Ver, Lisboa, Arcádia, p. 231.
[7] Laurajane Smith, The Uses of Heritage, Londres, Routledge, 2006.
[8] Tim Winter, “Heritage and Nationalism: An Unbreachable Couple?”, in Emma Waterton & Steve Watson (ed.), The Palgrave Handbook of Contemporary Heritage Research, Londres, Palgrave Macmillan, pp. 331-345.
[9] Madalena Folgado, "Call for architects", in ARTECAPITAL, Jan. 2022.
[10] José de Almada Negreiros, op. cit., p. 231.
[11] Ettore Finazzi-Agrò, “Sylvae. Os (des)caminhos da memória e os lugares da invenção na Idade Média” in Pedro Cardim (coord.), A História: Entre Memória e Invenção, Lisboa, Publicações Europa-América, 1998, p.142.
[12] Dipesh Chakrabarty, Provincializing Europe – Postcolonial Thought and Historical Difference, Princeton University Press, 2008.
[13] Arjun Appadurai, Modernity At Large: Cultural Dimensions of Globalization, University of Minnesota Press, 1996.
[14] Stuart Hall, “Who needs identity?” in Paul du Gay, Jessica Evans & Peter Redman (eds.), Identity: a reader, Londres, Sage Publications, 2000, p. 17.
[15] José de Almada Negreiros, op. cit., p. 231.
[16] Michel Foucault, “Power/knowledge”, in Steven Seidman & Jefferey C. Alexander (eds.), The new social theory reader: contemporary debates, Nova Iorque, Routledge, 2001, pp. 69-76.
[17] Boaventura de Sousa Santos, op. cit., 2003.
[18] Manuela Reis, "Cidadania e património: Notas de uma pesquisa sociológica", Sociologia – Problemas e Práticas n.º 29, 1999, p. 85.
[19] Boaventura de Sousa Santos, op. cit., 2003.
[20] Arjun Appadurai, Fear of Small Numbers: An Essay on the Geography of Anger, Duke University Press, 2006.
[21] Carlos Fortuna, “Introdução” in Magda Pinheiro, Luís V. Baptista & Maria João Vaz, Cidades e Metrópoles: Centralidades e Marginalidades, Oeiras, Celta Editora, 2001, p. 134.