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ESTRATÉGIA PARA HABITAÇÃO EVOLUTIVA – ÍNDIA
FILIPE BALESTRA
Estava frio em Estocolmo. O orador era um senhor indiano, ícone incontornável do desenvolvimento do terceiro mundo. Jockin Arputham [www.tinyurl.com/y89u8mz] contou histórias sobre morar em Dharavi - o maior bairro de lata do planeta, situado no centro de Bombaim - e descreveu como é que se cresce num espaço onde é necessário dividir uma sanita com quatrocentas pessoas. No fim da palestra, apresentei-me a Arputham e desenhámos paralelos entre o Brasil e a Índia. Contei-lhe a história de Sambarquitectura, o meu projecto de fim de curso de arquitectura que consta de um processo participativo de arquitectura e construção de uma escola e centro social na Rocinha, uma das favelas do Rio de Janeiro. Arputham convidou-me a ir para a Índia ajudar a sua ONG, chamada SPARC [www.sparcindia.org], para desenvolver projectos de habitação.
Meses mais tarde, e com Sara Göransson, conheci Sheela Patel [www.tinyurl.com/yd7v58v], partner de Arputham, na conferência Informal Cities, que se realizou em Setembro de 2008. Foi Patel quem nos deu a luz verde para viajarmos até Bombaim para desenvolvermos uma estratégia para habitação evolutiva destinada aos bairros de lata no centro de cidades. A estratégia teria que ser implementável em diversas cidades para beneficiar o maior número de pessoas possível. Segundo Patel, a estratégia não teria qualquer valor se precisasse dos arquitectos para sobreviver; teria sim, de ser suficientemente simples para ser levada a cabo pelas comunidades, sem ajuda de arquitectos.
Eu já tinha passado pela experiência de desenhar e construir a tal escola na Rocinha, num processo participativo que envolvia membros da comunidade local. Sara Göransson trabalhara exaustivamente numa estratégia que controla e estrutura o crescimento de Estocolmo, unindo subúrbios segregados, fintando florestas, lagos e outras riquezas naturais. Göransson chamou a esse trabalho Lo-Glo, o qual é, neste momento, referência pelas autoridades locais, para o corrente Plano Director de Estocolmo.
Projectos anteriores de melhoramento de bairros de lata em todo o mundo envolveram a demolição de bairros inteiros, seguidos ou de uma construção de blocos de habitação social repetitivos e impessoais, ou do expulsar das comunidades do local onde sempre moraram para subúrbios distantes da sua zona de trabalho. Esta forma de extirpar comunidades que residiram no mesmo local durante décadas traz aos moradores, não só o desemprego, como também o fim de alguma segurança construída a longo prazo com a amizade entre vizinhos.
Quem vê de fora, tende a olhar os bairros de lata como uma parte infectada da cidade, um erro que deve ser apagado com medo de um contágio aparente. O antropólogo Rahul Srivastava e o urbanista Matias Enchanove explicam este fenómeno em “Mess is More” constatando que a psicologia humana rejeita o que não consegue compreender.
Só estando no terreno, a ouvir os moradores, conseguimos desenrolar, processar e compreender todas as camadas de informação justapostas e este contexto de hiper-densidade social. Este compromisso de humildade, amizade e confiança crescente são as raízes do processo de arquitectura participativa.
O projecto-piloto começou em Netaji Nagar, uma fatia de um grande bairro de lata chamado Yerawada, situado dentro da cidade de Pune, a 180 quilómetros de Bombaim. Netaji Nagar nasceu quando uma comunidade foi forçada a sair de um terreno onde se havia decidido que iria nascer um hospital. Netaji Nagar tem hoje 40 anos de idade.
Dentro destas aldeias urbanas, as casas podem ser ou Kacchas ou Puccas. As Kacchas são estruturas frágeis de carácter temporário, construídas com chapas metálicas, tijolos de baixa qualidade e outros materiais improvisados. Nelas há falta de iluminação e de ventilação natural. A atmosfera interior é brutalmente quente durante o dia, sistema que se inverte durante a noite devido à falta de isolamento térmico numa chapa metálica que faz simultaneamente de parede e telhado. Estas casas, com cerca de 12 metros quadrados de implantação, também não têm nem casa de banho, nem água. Mesmo assim, numa delas, podem morar várias pessoas, apertadas num só compartimento. As Puccas são casas de carácter permanente, bem construídas, com betão armado e tijolos de boa qualidade. Estas casas podem ter ocasionalmente casa de banho e cozinha. No Netaji Nagar, existem 106 Kacchas e 109 Puccas.
Famílias sem instalações sanitárias dentro de casa têm que usar “casas de banho comunitárias” - um edifício com sanitários de senhoras, homens, e um apartamento para o encarregado de limpeza e sua família. No Netaji Nagar, há pessoas que tomam duche todos os dias de manhã em plena rua, porque não existe nem espaço nem condições para o tomar em casa. A água é aquecida no fogo, que por sua vez é feito com ramos secos e lixo. As mulheres cozinham e lavam a roupa no chão em frente às suas casas, transformando meras ruelas em espaços intensamente sociais, nos quais múltiplas funções coexistem. Estas ruas são demasiado estreitas para passar um carro, mas suficientemente largas para passar um rickshaw, uma moto ou uma vaca. A maior parte das pessoas tem empregos temporários, sem contrato. Ganham para o dia, para a semana ou, mais raramente, para o mês. Aqui, não se sabe como vai ser o Futuro. Devido à falta de programas de integração e à densidade da população indiana, no contexto do êxodo rural, as famílias que migram do campo para a cidade acabam por repetir os padrões de comportamento que anteriormente tinham: trazem cabras, vacas e galinhas para morar naquelas ruas estreitas, adicionando assim mais uma camada de vida naquele espaço conturbado. Os animais famintos mastigam, engolem e digerem o lixo local, que é uma mistura de orgânicos e recicláveis. Vi uma galinha a fugir de um cão. Os animais passam fome. As pessoas também.
Dois meses depois de termos caminhado nas ruas de Bombaim e Pune, e de iniciarmos o processo, uma equipa internacional de arquitectos, urbanistas, um arquitecto paisagista e uma designer gráfica juntaram-se a nós para, voluntariamente, trabalhar para essas comunidades carentes, dedicando, tal como nós, uma fase das suas vidas para aqueles que não podem pagar o serviço de arquitectos. Ao Martinho Pitta, Carolina Cantante, Guilherme de Bivar, Rafael Balestra, Remi Turquin e Marta Pavão, agradecimentos eternos. Os moradores locais aceitaram a nossa presença, acreditaram no nosso trabalho e foram muitíssimo positivos durante todo o processo: convidavam-nos constantemente a entrar em suas casas para beber chai e conversar um pouco mais sobre o projecto, os seus problemas e soluções.
Após termos começado em simultâneo a pesquisa e a arquitectura participativa, o governo central da Índia lançou uma bolsa denominada Basic Services for the Urban Poor (BSUP) para apoiar a reabilitação in situ dos bairros de lata localizados dentro de cidades, em terrenos do estado. Esta bolsa nasceu parcialmente de negociações entre o governo central, Jockin e Sheela, com membros de Mahila Milan (Mulheres Unidas), uma rede social de grupos de poupança dirigida por mulheres, moradoras de bairros de lata. O foco de trabalho de Mahila Milan é também a habitação social e a infra-estrutura. Um subsídio de 4500€ seria dado a famílias que morassem em casas Kaccha, interessadas em melhorar as suas habitações. Os beneficiários elegíveis teriam que contribuir com 10% do valor da casa. O governo comprometeu-se a fornecer serviços básicos como água, esgoto, drenagem de água da chuva e electricidade, antes de começar a construção das casas propriamente ditas. Com esta atitude, o objectivo do governo é melhorar os bairros de lata de maneira a que estes possam ser aceites como bairros formais e permanentes, dentro da cidade. Numa primeira fase, na cidade de Pune, cerca de 4000 famílias beneficiarão desta bolsa.
Um processo sustentável como este, para o melhoramento de habitações existentes, só é possível com a participação dos moradores. Esta colaboração é mobilizada pelas mulheres líderes comunitárias do grupo Mahila Milan, que informam todas as famílias sobre a bolsa, fazem pesquisas, inquéritos, levantamentos, conduzem workshops de arquitectura em hindi e ensinam métodos de construção aos moradores.
“Na ausência de um grupo como Mahila Milan, os arquitectos estariam limitados a falar com homens, particularmente aqueles com poder local, que iriam optar por questões de interesse financeiro. Não seria possível para arquitectos organizar uma comunidade de uma forma que possibilita a sua própria participação profunda, os locais não teriam capacidades ou sistemas para completar mapas e inquéritos, receber contribuições dos beneficiários e administrar a construção. Quando o arquitecto saísse, no fim do projecto, o processo iria acabar em vez de aumentar de escala.” (Katia Savchuk)
A nossa proposta é o resultado de inúmeras reuniões e workshops com os moradores e políticos das comunidades, durante as quais ideias foram formuladas, desenvolvidas e aprovadas. Neste diálogo, usaram-se instrumentos tradicionais como desenhos em perspectiva e maquetas. O processo da equipa envolveu apresentações diárias a moradores, líderes comunitários, políticos, engenheiros e construtores. A estratégia desenvolvida abrange não só o interior das habitações e o respectivo exterior, mas também a aldeia urbana como um todo. Incluiu-se o ajuste das implantações de algumas casas para serem criados mais espaços abertos - para a descompressão e a união - ou para que ruas, demasiado estreitas, pudessem ser alargadas para desasfixiarem-se os fluxos pedonais de motos, de rickshaws, de bicicletas e de gado.
Observando as tipologias existentes em Yerawada, e com algumas memórias e aprendizados de meses a “ler” a arquitectura informal da favela da Rocinha, desenvolvemos três protótipos. Estes deviam, para além de ser apropriados à realidade local, oferecer estruturas que pudessem ser aumentadas legalmente no futuro e customizadas pelas necessidades específicas de cada família. De acordo com as regras da bolsa BSUP, a área mínima para cada casa teria que ter 25 metros quadrados.
A casa A é uma casa tradicional em dois pisos, cuja estrutura está preparada para receber três pisos. Esta casa permite, à família que lá mora, aumentar verticalmente um andar sem risco de colapso. A casa B é uma casa de três pisos, cujo rés-do-chão está propositadamente vazio. Este vazio pode ser usado para guardar animais, como garagem de rickshaw, como lavandaria, ou pode ainda ser fechado para dar lugar a uma loja ou mais um quarto. A casa C é também uma estrutura com três pisos; esta, porém, tem o vazio no segundo andar. Este vazio serve de varanda social, oficina ao ar livre ou espaço para secar roupa, até ao dia em que a família quiser construir quatro paredes para transformar o vazio em mais um compartimento.
Estes conceitos foram desenvolvidos numa “técnica de quatro pilares“ para estruturar cada casa. Assim, depois da demolição da casa Kaccha, inicia-se a construção da nova Pucca. Depois de construída a fundação, cada coluna é colocada num dos cantos da implantação, que tem quase sempre uma forma de trapézio irregular. Se existirem, lado a lado, mais de uma casa Kaccha, partilhar-se-ão a estrutura, as paredes e a infra-estrutura, reduzindo-se assim o custo de construção de cada casa. Os fundos poupados neste processo serão calculados de um modo transparente para melhorar as instalações do bairro de acordo com a vontade da comunidade.
Depois de serem construídas instalações sanitárias em todas as casas, os edifícios de casas de banho comunitárias poderão ser demolidos, por já não haver necessidade de uso. Consequentemente, propusemos a manutenção desses espaços, como novos pátios, tão necessários para a reunião de moradores, para as crianças jogarem cricket, para casamentos e outros eventos.
Porque existem famílias sem possibilidade de contribuir financeiramente com os 10% necessários para ganhar a bolsa BSUP, foram criadas alternativas para este pagamento. O envolvimento das famílias na demolição da Kaccha existente, no processo de construção, na escolha da cor da tinta e da pintura da casa, assim como a escolha da cerâmica do piso e sua colocação, são possibilidades de alternativas de pagamento. Particularmente na Índia, o poder escolher a cor é, para as famílias, algo de muito importante. Esperamos que este processo de construção participativa leve a arquitectura a ser personalizada - dentro dos restritivos parâmetros de espaço e budget que caracterizam o projecto - e que o carácter tradicional da arquitectura informal e criativa das aldeias urbanas se mantenha: que as casas sejam todas diferentes.
Para as pessoas que não podem contribuir com trabalho durante a obra ou com dinheiro, ser-lhes-á proporcionado um empréstimo bancário. Os beneficiários serão ensinados pelas Mahila Milan a monitorarem a construção: a contar o número de ferros em cada pilar de betão armado, a testar a qualidade do betão e dos tijolos, para terem a certeza de que os construtores fazem um trabalho correcto.
Durante este período, os moradores serão alojados em instalações temporárias. No caso do projecto-piloto em Netaji Nagar, já foi autorizado por Praveen Pardeshi, o uso de um armazém abandonado no bairro. Depois do projecto ter terminado, os beneficiários irão receber um certificado de ocupação pela Câmara Municipal de Pune. O projecto-piloto desta estratégia para habitação evolutiva está, neste momento, a ser implementado formalmente pela SPARC e Mahila Milan, com o suporte técnico do arquitecto local e director da Universidade de Arquitectura de Pune, Prasanna Desai.
Desde a universidade, em Edimburgo, eu e a Sara Göransson defendemos a vivência no terreno como a verdadeira fonte de ideias autênticas: para aprender neste contexto é essencial trabalhar fora do escritório. Se os pintores impressionistas tiveram a necessidade de inventar uma nova técnica por terem resolvido sair dos estúdios para pintar ao ar livre, talvez os arquitectos possam também descobrir novos horizontes fora do atelier…
A rua é o espelho da cidade.
Filipe Balestra
Arquitecto (Rio de Janeiro, 1981). Mestre pelo Royal Institute of Technology em Estocolmo, Bacharel pelo Edinburgh College of Art. Depois de ter tido experiência profissional em Sandellsandberg, Office for Metropolitan Architecture (OMA+AMO), Neutelings-Riedijk, NL architects e Regino Cruz Arquitectos, Filipe Balestra é co-fundador da empresa Urbanouveau [www.urbanouveau.com].