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VISÕES DO FUTURO - AS NOVAS CIDADES ASIÁTICAS
SÉRGIO SPENCER
Promovida pelos média e pelas múltiplas publicações de arquitectura, a nova paisagem das cidades asiáticas tem motivado o interesse do público em geral por essa região do mundo. Aqui materializa-se a ficção, a visão da cidade do futuro – uma megacidade superpovoada, o espaço da congestão e da condição urbana claustrofóbica – com a estética própria da densidade.
Nestas representações da cidade, exacerbadas pelo olhar Ocidental, o aparente exotismo das paisagens e populações participa na promoção da “diferença”. Sobre uma estrutura urbana moderna e homogeneizada, apresenta-se uma identidade cultural “estranha e diferente” num ambiente pleno de dualidade, onde a existência local participa do espaço global.
Esta visão de uma cidade complexa e dual, faz parte do processo de globalização de “outras” culturas, o hipotético espaço do futuro. Explorando a condição dos aglomerados urbanos ultra-compactos, a imagem destas cidades tem servido de inspiração para a cenografia de múltiplos filmes de ficção (1). Aqui, populações e costumes locais reinventados dão corpo a uma cidade onde se multiplicam as altas tecnologias. De forma questionável, toda a cultura asiática é representada como se de uma única identidade fosse composta, numa amálgama de sítios, gentes e culturas, reduzidos até à escala de uma cidade.
Estas representações deturpadas e redutoras da cidade asiática, constituem uma forma de justificação da presença continuada do Ocidente no Oriente, uma nova forma de orientalismo (2). Os impérios coloniais tradicionais, convertidos nos novos parceiros económicos, estabeleceram-se de uma forma invisível num território sem fronteiras, dissipando a sua presença física e os seus valores morais. Este foi um processo favorecido pelos mecanismos de modernização introduzidos nos séculos XIX e XX, criando comunidades orientadas para uma cultura de consumo, ao serviço de uma nova ordem mundial baseada mais nos interesses económicos globais do que nas políticas locais.
Rem Koolhaas, no seu estudo “Project on the City” (3), recorre a estas representações das cidades asiáticas para efectuara uma crítica às ideologias estabelecidas sobre a cidade tradicional e opor-se aos valores “burgueses” da continuidade histórica. Também aqui as cidades asiáticas, em particular as novas urbanizações na China, servem para ilustrar uma visão da cidade do futuro, onde os centros comerciais, os centros de fast-food e os interfaces de transportes se vão multiplicar. Nestas cidades, o espaço público tradicional será substituído pelas infra-estruturas viárias, os hotéis substituem os espaços residenciais e os espaços comerciais substituem os espaços culturais.
Questionamos se a nova estrutura territorial do “espaço dos fluxos” e o processo de globalização conduzirão ao desaparecimento das identidades locais. Na realidade, estas visões urbanas exercem um enorme fascínio sobre as novas gerações de arquitectos, que passam a ver as suas cidades numa nova perspectiva. Até onde é que o poder destas imagens nos direcciona no sentido do hiper-real, o espaço da ficção?
A questão da identidade
A expansão de uma cultura global tem sido frequentemente apontada como uma das causas para a crescente homogeneização urbana. No entanto, algumas cidades perduram como artefactos urbanos e culturais únicos, diferindo pela forma como adaptam, modificam e rejeitam a cultura globalizada (4). Este é um modo de definir a sua capacidade para atrair, ou rejeitar, os fluxos de investimentos estratégicos da nova geografia mundial.
Na relação complexa entre local e global, o espaço “encurta”, o “tempo” tem uma possibilidade infinita de uso e a noção de identidade regional evolui de um espaço tradicionalmente confinado para um espaço global.
Em territórios onde a tradição reeditada ocupa o espaço da identidade legítima, é assim difícil encontrar pontos de referência para o estabelecimento de uma cultura urbana genuína pois “ à medida que cada vez mais o passado dos povos se torna parte dos museus, exposições e colecções, parte do espectáculo nacional e internacional, a cultura torna-se cada vez menos (...) um hábito e mais uma arena para escolhas conscientes, justificações e representações, frequentemente dirigidas para audiências geograficamente deslocadas” (5).
A transformação dos ambientes urbanos ao nível da sua substância original, reduz o espaço do real substituindo-o por um urbanismo hiper-real, onde a ideia de identidade local se torna frequentemente uma caricatura do seu passado. A imagem da cidade participa de forma cúmplice no jogo de atracção de investimentos financeiros. A promoção intencional de elementos particulares de passados históricos consideravelmente complexos, sobrepõe-se à verdade das culturas originais. Isto é o que se pode chamar “ a culinária e ornamentalismo paisagístico através do qual o turista – o novo espectador – se deslumbra, celebrando o consumo do espaço e da arquitectura ” (6).
A arquitectura é muitas vezes refém deste processo, despida do seu uso original e transformada num produto mais comercial, ao gosto de um mercado unificado. A “sociedade do espectáculo” domina e passamos a viver num enorme parque temático, asséptico e seleccionado, onde o desejo e “imagem” têm mais sex appeal do que a própria realidade.
Embora a cultura regional possa ser local, a sua associação a um “sítio” não corresponde mais a um espaço confinado. A Cultura integra um mercado globalizado onde a identidade não é mais uma condição ligada à geografia, mas um espaço de conflitos e um espaço de diálogos. Encontramo-nos assim perante um universo de identidades miscigenadas, oposto ás sociedades bem definidas do passado recente.
A noção de identidade regional como uma condição natural de um território, apenas mutável pela acção do tempo e da história, terminou. Qualquer esforço para promover uma cultura local tem que ter em conta a rede do “espaço dos fluxos”, procurando a autenticidade não num sistema de valores tradicionalmente estabelecido, mas na leitura cuidadosa dos novos significados introduzidos pelo fenómeno do intercâmbio cultural.
Notas finais:
(1) Ver o filme Blade Runner (1982) de Ridley Scott, ou o The Fifth Element (1998) de Luc Besson.
(2) Edward W. Said, Orientalismo. Versão espanhola, Ed. Libertarias, 1990.
(3) Rem Koolhaas, Project on the city. Ed. Taschen, 2001.
(4) Podemos referir aqui o exemplo da cidade de Macau.
(5) Arjun Appadurai, “Disjuncture and difference in the Global Cultural Economy” in Colonial discourse and post-colonial theory. Ed. P. Williams and L. Chrisman.
(6) Christine Boyer, “Cities for sale” in Variations on a theme Park: the New American City and the end of Public Space. Ed. Michael Sorkin.
Sérgio Spencer, arquitecto
Mestre pela UPC/ETSAB - Barcelona, 1999
Doutorando pela Universidade de Valladolid