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O CONSUMIDOR EMANCIPADO
ANTÓNIO COXITO
Se é provável que no final do milénio passado o design tenha apartado a função da forma, servindo-se desta última para conferir exclusividade e distinção a um objeto trivial, o atual paradigma tende a regressar ao básico pois o homem ideal quer-se agora um homem comum.
Vários sinais terão levado os designers a este reposicionamento. A inevitável crise questionou o significado social dos objetos que nos são próximos. Quando antes era hype ter um espremedor que não funcionava, agora é correto ter realmente uma laranjeira. Hoje, para além de os objetos tenderem a exprimir a sua essencial funcionalidade, adaptam-se à especificidade individual de cada utilizador através do estÃmulo à sua apropriação. O espremedor, entretanto, subiu (ou desceu) para o patamar da escultura.
No entanto, a exclusividade não se perdeu. Pelo contrário, foi potenciada ao mais alto nÃvel, propondo peças tão singulares como o seu utilizador, indiferentes à taxonomia arquitetura/design/arte, e reformulando as questões da produção de autor. Hoje, cada um, artista ou não, pretende construir o seu espaço, que se torna no seu objeto de desejo/design/arte, qual Pedro Cabrita Reis com cozinha e casa de banho.
Esta exclusividade, em lugar de partir dos autores ou das marcas, é colocada nas mãos do seu destinatário. Agora posso ter uma bicicleta, um sofá ou uma torradeira absolutamente únicos, sem perder de vista um elevado standard de design. Chamo-lhe autonomia.
No seu texto O Espectador Emancipado, Jacques Rancière, referindo-se ao teatro, descreve uma sequência que começa no drama platónico, passa pela abertura do teatro de Brecht e considera que com Artaud o espectador se emancipa, podendo invadir o palco. Tal não configura um ato de negação, mas é antes um processo de filtragem. Resulta da redundância de conhecimentos, infraestruturas e artefactos que nos rodeiam.
Sem porem em causa a cultura e a história do design, alguns destes criativos do novo milénio abdicaram da linguagem ora hermética ora inalienável dos seus predecessores e injetaram-lhe o despretensiosismo que permite a sua identificação por cada um, até mesmo por aqueles não aculturalizados com as andanças do design.
A sua inteligibilidade não tem como essência o passar um atestado de menoridade ao seu utilizador mas, pelo contrário, a de fornecer possibilidades de independência criativa e maturidade.
Legalmente, apoiam-se nas novas gerações de direitos de autor como a Creative Commons, nascida dentro da revolução digital e da existência em rede. Aqui, o direito de autor é propriedade da humanidade, para onde cooperamos e não competimos. Walter Benjamin, quando escreveu “A obra de arte na época da sua possibilidade de reprodução técnicaâ€, onde se referiu à perda da aura do original quando reproduzido mecanicamente, não concebeu a era digital onde o original não se distingue das suas cópias.
Perante revoluções tão inesperadas como esta, nem a lei nem a ética poderiam ficar impassÃveis. Estes novos objetos de design não possuem copyright, podendo ser usados e alterados por todos, indo beber ao conceito open source, cuja sigla é OS.
Open Structures
Mas OS também significa Open Structures (e Operating System). Openstructures.net é uma plataforma que só poderia funcionar sobre a internet e que persegue o conceito OS. O seu criador foi Thomas Lommée mas o seu corpo é multicéfalo e é-o em crescendo. O seu ponto de partida foi a luta contra a produção massificada, pela produção personalizada (os tempos da Bauhaus foram outros).
Funciona como uma base de dados alimentada por quem deseje cooperar, tal como na Wikipedia. Os seus ativos são desenhos de peças com as quais poderemos construir desde máquinas de café a partes de automóveis.
Explora a possibilidade de um modelo de construção modular onde todos desenham para todos. Propõe uma espécie de Meccano ou de Lego colaborativo para o qual qualquer um de nós pode contribuir com partes, componentes e estruturas.
É fornecida uma grelha geométrica de 4 cm de lado sobre a qual todas as peças devem ser submetidas. Pessoalmente, considero esta métrica obsessiva, mas aceita-se para que exista um standard inicial. Os elementos 3D são disponibilizados em formatoSketchUp, o intuitivo e gratuito programa de modelação 3D da Google.
Intra Structures
Paralelamente à Open Structures cresce a Intrastructures.net numa verdadeira simbiose, onde cada uma alimenta a outra. A Intra Structures age como um think tank e um spin off para autores e ideias.
Reflete sobre um design pragmático e utópico que gere modelos, ferramentas e produtos para a reconstrução social e ambiental.
Traduzem as oportunidades emergentes em respostas e serviços com aplicabilidade prática, ecológica e equitativa. A observação, a análise e a sÃntese guiam o seu processo mas é através da colaboração, da criação de protótipos e das publicações que constroem, testam e optimizam as suas ideias.
Open Source
Numa época em que, apesar de um discurso recente e contextuado, já não se pode falar em emigração (Amsterdão-Porto em duas horas por menos de 50 euros), não é num local mas num fluxo Holanda-Portugal-Turquia-Itália que nos cruzamos com estas novas propostas. Nesta nuvem não podemos sequer falar em locais fÃsicos pois, mesmo sendo o resultado eminentemente prático, a ferramenta é virtual.
A abordagem Open Source, apesar de ter nascido a propósito do software de código aberto, rapidamente foi traduzida pela sociedade como fonte de soluções. Na electrónica em geral, do conteúdo digital à robótica, na saúde e na ciência, da farmacêutica aos componentes para painéis solares, foram adoptadas estas formas de partilha de conhecimento. As ciências sociais e toda a investigação teórica fazem-no através dos blogues. Mas também a arte quando recorre à apropriação.
Podemos mesmo dizer que toda uma comunidade se está a organizar em torno deste conceito. Num mundo onde o individualismo é datado, perante desafios como o expectável aumento da exploração de recursos para produção de objetos de consumo, se não colocarmos as tarefas possÃveis nas mãos de todas as pessoas de boa vontade, o design perderá definitivamente a sua função.
António Coxito
(n. Lourenço Marques, 1965) Arquiteto pela UAL. Encontra-se a desenvolver doutoramento na Universidade de Évora nos moldes research by design, através da construção efetiva de uma utopia em Vila Velha de Ródão. Foi editor de publicações nas áreas do design (Page, 1997-1999), portugalidade (NAU, 2005), divulgação cientÃfica (deFrente Ciência, 2005-2008) e divulgação estratégica (deFrente Estratégia, 2007-2008). Comissariou exposições de new media na ZDB e no Forum Lisboa para o festival VideoLisboa entre 2001 e 2005.