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ENTREVISTA


Chus Martínez. Fotografia: Alberto Gamazo










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CHUS MARTÍNEZ


“Os artistas não são um luxo, são uma necessidade”. Quem o afirma é Chus Martínez, numa conversa com E. J. Rodríguez*. Ela é a nova responsável pela direção artística do Museo de Barrio de Nova Iorque e uma das figuras mais relevantes da arte a nível mundial, como demonstra o facto de ter sido nomeada pela revista Art Review como uma das cem pessoas mais influentes do mundo da arte. Nascida na Corunha, Chus Martínez acumula um considerável curriculum profissional e já desempenhou importantes funções em instituições como o MACBA de Barcelona, a Sala Rekalde de Bilbao, o Frankfurter Kunstverein, a Documenta de Kassel, as Bienais de Veneza e São Paulo, etc. A viver agora em Manhattan, foi na sua breve passagem por Barcelona que conversou sobre temas muito diversos: a função da arte frente à crise económica e a angústia do espanhol perante a situação que está a viver, como mudou Nova Iorque depois do 11 de setembro, o papel do museu como ferramenta para modificar a forma de pensar a cidadania, a atitude dos políticos em relação à arte...


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P: Antes de mais, para quem não esteja familiarizado, o que é o Museo de Barrio de Nova Iorque?

R: O Museo de Barrio é uma instituição um pouco singular. Foi fundado há quarenta anos, fundamentalmente, como o seu nome indica, para ser um museu de bairro. Foi criado pela comunidade porto-riquenha, a mais importante do Harlem hispânico, com a intenção de não serem apenas imigrantes, com uma identidade unicamente ligada ao trabalho. Quiseram associar a sua identidade também à cultura. No início, o museu tinha uma missão para com a comunidade, a de desenvolver os valores artísticos e culturais de Porto Rico. Aos poucos evolui para um museu dedicado ao continente latino-americano e à cultura mexicana nos Estados Unidos, ou seja, dirigia-se a todos aqueles que são de origem hispânica. E quando me chamam já o fazem com a intenção de renovar o museu. No ano passado, o espaço foi modificado: o prédio é o mesmo, mas as galerias foram completamente renovadas. O edifício é peculiar, está situado na rua 106 com a 5ª Avenida, e é um lugar encantador. Quando se entra no museu, veem-se as galerias à nossa esquerda, a loja e a cafetaria à direita, e à frente encontramos um teatro maravilhoso de 1920 que pode acomodar 400 pessoas. Em cima, no terceiro andar, há dois auditórios para performing arts, para dança e outros espetáculos. À porta, encontramos sempre muitos autocarros escolares e muitas crianças a entrar, porque no primeiro e segundo pisos existe uma escola, um antigo orfanato que foi reabilitado.


P: Que função é que vai desempenhar?

R: Direção artística. Por um lado redefinir as metas, o que eles chamam a missão do museu, que é basicamente dar expressão aos valores culturais da comunidade hispânica. Por outro, ampliar essa missão, conferindo-lhe um sentido mais internacional. E também um sentido mais contemporâneo, não tanto revisitar a herança ou fazer exposições históricas mas desenvolver um programa que tenha em conta a arte tal como ela é agora na América Latina e nos Estados Unidos, nas comunidades hispânicas. E colocar as formas de pensar dessas pessoas em contacto com as formas de pensar de outras comunidades que nada têm a ver com a hispânica, para retirar o museu desse nicho.


P: Estudaste em Nova Iorque. A cidade que encontraste agora é muito diferente da que conheceste naquele momento?

R: Sim, sim. Nota-se muito.


P: O que é que mudou?

P: Mudou muito. É muito difícil de definir. Primeiro mudou depois do 11 de setembro: não é um cliché, é algo que aconteceu à cidade, algo que as pessoas viveram no interior de Manhattan. Todos eles, sejam ou não sejam de ali… Lá ninguém te pergunta de onde és: quando vives em Nova Iorque estás lá e vibras com a cidade. Manhattan é uma unidade em si mesma e Nova Iorque também o é. Tem um sentido muito unitário: pela geografia, porque é uma ilha… há uma forma de trânsito na cidade que a torna única. Pelo que, quando algo acontece, a cidade muda. Ao princípio era uma espécie de stresse pós-traumático. E agora tenho a sensação que é uma cidade muito mais consciente do que ocorre fora dela. Antes, por vezes, parecia imbuída e metida consigo própria. Agora dá a sensação de que os seus habitantes têm uma perspectiva mais complexa do que sucede em lugares que não são Nova Iorque e que a influenciaram: a Europa, é claro, mas também a Ásia e a América Latina. Há dez ou quinze anos, falar em castelhano em Manhattan não era normal. Não entravas nas bibliotecas ou nos restaurantes e comunicavas em castelhano. Agora começa a ser normal. Não falo da normalidade linguística, que não tem nenhuma importância para mim, o facto de as pessoas falarem em castelhano ou inglês. Digo que há muito mais maleabilidade, é como algo osmótico, as comunidades circulam de uma forma mais fluida, enquanto que antes a separação era mais evidente. Ver como Harlem mudou, como se transformou, é ótimo.


P: Seria algo assim como se tivessem tomado consciência de que são todos nova-iorquinos e por isso se identificam mais uns com os outros, seja qual for a sua origem?

R: Sim, talvez seja isso, e também pelo sentimento de que Nova Iorque é um lugar relativamente pequeno e tem uma grande influência sobre o que acontece lá fora, mas onde o progresso precisa de ser influenciado por outras culturas. Nesse sentido estão mais atentos. Há outro sentido da atenção que antes não havia. E têm talvez um sentido mais nítido da vanguarda do que no final dos anos noventa, quando lá estive.


P: Falando de questões linguísticas: Espanha é um país europeu, mas obviamente tem laços pela língua e pela história com a América Latina e dir-se-ia que às vezes funciona como interface. Isto também acontece no âmbito artístico?

R: Não vejo isso assim, não sei se o somos. Talvez gostássemos de o ser, mas tenho dúvidas. Em primeiro lugar, quando estou nos Estados Unidos são os latino-americanos que me ensinam, são eles que tem autoridade e não sei se precisam de nós para alguma coisa. Eu acho que devemos começar a aprender muitas das táticas e formas de fazer da América Latina.


P: Quais são as características que distinguem essa arte latino-americana de outras, como a anglo-saxónica, por exemplo?

R: Têm muitas. O continente latino-americano, para mim, é basicamente experimentação. No Brasil tens as vanguardas, definidas a partir de 29 e de 30, os manifestos de Antropofagia e toda essa gente. O Brasil tem uma das vanguardas mais importantes, mas também encontras algo similar na Venezuela, no México, na Colômbia. Cada um deles tem formas e características diferentes. Não se pode generalizar, o que se pode dizer é que a ânsia de experimentar na América Latina foi historicamente muito importante. Porque são identidades híbridas, porque há uma concepção de desenvolvimento cultural para lá da influência colonial. Por outro lado, há um desenvolvimento político e social que tem muito a ver com as esquerdas, com toda uma consciência política: desligar-se do autoritarismo, etc. A forma intelectual da América Latina tem uma grande influência na forma visual da América Latina. É eminentemente conceptual, mas é um conceptualismo que se sustenta num sentir, é uma forma muito complexa e muito interessante de experiência. Para mim vai além de muitas das formas anglo-saxónicas, que são mais linguísticas: a forma latino-americana é muito mais vivencial. Por outro lado, há um sentido do risco muito mais agudo, porque na América Latina é necessário arriscar. E muitos artistas arriscavam até a própria vida. Há um sentir do que a cultura deve ser para com a política, que se fundamenta na defesa de valores, não simplesmente na defesa de um gosto.


P: Dirias que é uma arte mais “revolucionária” num sentido político?

R: Uma arte mais revolucionada. Com uma grande imaginação política, independentemente de ser arte política ou não. Mesmo aquela arte que parece mais abstracta tem uma energia e uma imaginação política muito cativantes. E acho que a geração mais jovem está a herdar isso.


P: Já agora, como é que uma espanhola chega a ser considerada numa lista das cem pessoas mais poderosas e influentes do mundo da arte pela revista Art Review?

R: Não sei. Trabalhando. Mas essas coisas também são aleatórias. No ano passado não estava nessa lista, no ano que vem espero estar, mas… trabalho, circunstâncias.


P: Deves ter feito algo destacável, evidentemente.
[fica a pensar, N. do R.]
…sei que é sempre difícil alguém atirar flores a si mesmo.

R: Sim, não sei… não sei. (Pensa) Às vezes é difícil desenvolver o trabalho de uma forma um pouco diferente. Imaginar as coisas segundo formatos que talvez não sejam os convencionais, estar atento a pessoas que não são convencionais. Bom, não tenho medo, e assim arrisco quando trabalho. Acho que sou generosa, que dou muito, que quando vejo que outros também dão sou capaz de criar situações que são muito produtivas para muita gente. Creio que é isso o que se valoriza, que quando trabalhas em algo toda a gente tenha a sensação de estar a ganhar alguma coisa. Não sei, gosto de pensar que os projetos tem um carácter de entusiasmo crítico: é necessário ser-se político mas não ser ortodoxo. Temos que tentar entender as formas do político a partir de formas não ortodoxas, não ideológicas. Isso é muito difícil. Sobretudo está nas mãos dos homens. É muito masculino pensar segundo formas e formatos ideológicos. Creio que eu e outras mulheres estamos a contribuir para funcionar com maior liberdade − mas com rigor − e apoiar outras formas do político, do social, do estético. Introduzindo elementos que são mais generosos, que não criam cânones de uma forma imediata. Acho que ao longo dos anos isso foi sendo valorizado, mas bom… não sou apenas eu. São sempre conjunções, podem escolher a tua cara mas isto só foi feito graças aos artistas que trabalham contigo, não é? Sem eles não se pode fazer nada.


P: Achas que o mundo da arte é um mundo masculino?

R: Sim. Acho que o mundo da arte é masculino e que todos os mundos o são. Eu não me intitularia feminista… É um conceito que é necessário redefinir ou procurar outro vocábulo; não sei se define o que eu faço. Mas é claro que é um mundo de homens.


P: Nesse sentido, ele está a mudar ao ritmo a que muda a sociedade ou…?

R: Não sei. Às vezes até é mais lento. Depende de cada país. É difícil. Por exemplo, agora vês que em tempos de crise parece difícil confiar numa mulher para liderar, para ter o comando. Parece que quando as coisas ficam feias, são eles que nos vão tirar de apuros. E isso vê-se nas posições de poder que ocupam: os diretores de museus costumam ser homens e não mulheres. Contudo, as equipes de comissários e as pessoas que trabalham nos museus costumam ser mulheres. Qual é a diferença? Os salários. O facto de eles se considerarem gerentes e elas considerarem-se executivas. Há uma grande diferença. Diferenças que são sociais e económicas, e também de poder. O mesmo acontece nos programas públicos. Se avalias os programas públicos, as conferências: quais são os considerados intelectuais e os que não o são? É difícil encontrar conferencistas mulheres. Agora vemos como deram o Prémio Príncipe de Astúrias a Martha Nussbaum, mas é uma exceção. A maioria das vezes são dados a homens, são os homens os que ocupam os palcos dos teatros e os auditórios para falar sobre a crise intelectual do ocidente, ou outras crises semelhantes. Esse tipo de vocabulário, de formas de sentir, é muito masculino.


P: Dirias então que existe sexismo no mundo da arte?

R: Não, não falo de sexismo. São estruturas herdadas, não têm que ser conscientes. Mas estão aí. Temos que entendê-las e tentar modificá-las de algum modo. Aqueles que fazem o que descrevo não o fazem de má fé, mas é algo que existe.


P: Falando de reconhecimento, sentes-te mais valorizada no exterior do que em Espanha?

R: (Pensa) Não sei, foi mais fácil no exterior que em Espanha… coisa que eu não esperava. Sim, suponho que sim.


P: No mundo da arte tem-se muito em conta as fronteiras?

R: Há gente que sim, há gente que não. Eu não, mas há quem as tenha em conta, claro. Depende de que instituição, depende da latitude de onde estás a falar. As fronteiras mudaram muito também, porque neste momento… África, Ásia. É muito difícil pensar as coisas a partir das perguntas que as próprias coisas nos colocam, e é muito mais fácil pensar em termos geopolíticos. É mais simples: “arte africana”. Mas, isso é o quê? É mais fácil, mas há gente que coloca mais imaginação na análise. A mim não me interessa pensar em termos geopolíticos.


P: Mas tendo tu trabalhado em diversos países, tens a sensação de que em diferentes culturas se tem uma percepção diferente do mundo da arte?

R: Sim, é claro. O mundo da arte existe de formas muito diferentes em cada lugar. Tem funções sociais, estéticas e políticas muito diferentes. Por exemplo, no Vietname houve uma reforma após a Segunda Guerra Mundial; no Vietname, Laos e toda aquela parte da Ásia, organizam-se uma série de congressos para decidir se as técnicas de lacado são técnicas contemporâneas ou tradicionais. Diante disso, o tempo de secagem, os tempos de produção, irão determinar o resultado: se é arte tradicional ou arte contemporânea. Esse é um exemplo muito interessante, mas existem milhares de exemplos assim. Se fores ao Afeganistão… estivemos a trabalhar em Cabul e não há arte contemporânea. Ali não faz muito sentido falar de arte contemporânea. Há arte tradicional, a arte da miniatura. E depois há uma arte que parte de uma reforma moderna nos anos trinta e quarenta, mas não existe a sensação de fazer arte contemporânea. No entanto, há um mundo de arte contemporânea que eles não chamam “contemporâneo”. Outro exemplo: se te aproximas da Ásia Central, não poderíamos reconhecer a sua arte visual como contemporânea, porque tem formas muito tradicionais. No entanto, nos têxteis e na música são muito experimentais, mas eles não lhes dão esse nome. Para nós são absolutamente inovadores em muitos aspectos. Não se pode generalizar e certamente não há um universal. O “mundo da arte”, tal como falamos dele, refere-se ao mundo da arte ocidental, definida basicamente entre a Europa, os EUA e a América Latina numa extensão do cânone, e é isso, não mais.


P: Passando a outro aspecto, como é que a crise financeira afectou o mundo da arte?

R: Não sei. Poderia dizer que “muito”, mas não sei exatamente. Sei que há cortes nos orçamentos das instituições em muitos países, este entre eles. Mas para dar uma resposta correta teria que conhecer com precisão os valores de mercado, e não os conheço. Suponho que afecta, mas a arte é muito boa a “desafectar-se”. Afecta muito as instituições, toda a vida pública está afectada pelos cortes e a arte, também.


P: Há uma coisa da qual não se fala muito…

R: (Interrompe-me) Sexo.


P: (Risos) Se queres, falamos de sexo, não me custaria mudar o guião da entrevista neste momento.

R: Sexo nos museus.


P: Parece o nome de uma série: “sexo nos museus”. Bom, estava a dizer: com todos estes cortes em Espanha, pode-se chegar a um ponto em que no estrangeiro pensem que não somos capazes de conservar o nosso enorme património histórico-artístico?

R: Eu acho que eles não se importam nada, mesmo a esse nível. O que fazemos é connosco, é a nossa vida. Lá fora não temos importância.


P: Nem sequer o nosso património artístico?

R: Creio que seria um problema para eles se removêssemos as praias e as gambas (risos). Não sei, creio que quem se deve preocupar somos nós.


P: Pode acontecer que se deixe esse património sem cuidados?

R: Lamentavelmente, suponho que isso já deve estar a acontecer. Penso que se falarmos com um arqueólogo ou com um conservador irá dizer-nos que o dinheiro que se necessita para ter tudo em bom estado já deve estar … espero que não, mas suponho que sim. Tudo isso deve ser muito caro. Não está tão desleixado como noutros lugares, mas pode chegar a ocorrer? Sim, pode acontecer.


P: E já a um nível geral do país, como vês o desenvolvimento da crise em Espanha?

R: Tremendo. Vejo um estado de ânimo… é impressionante. É como uma espécie de fim do mundo, a nível psicológico. Forte, muito forte. Muito diferente das outras crises e de outros países. Há pouco tempo, o Durão Barroso, ex-presidente de Portugal, foi visitar a Documenta. Para além de ser um homem cultíssimo, dá gosto estar com ele, explicou-me que a situação de Portugal não é comparável. Este tenebrismo espanhol é brutal.


P: A que se deve?

R: Falta de articulação. É como se nos faltasse ir mais soltos. Há um nervosismo muito particular, uma ânsia muito particular. Bloqueamos muito facilmente. Estamos rígidos. Como um colectivo psicológico. Herança do franquismo? Não sei… é apenas para dizer algo. Não sei o que se estará a passar, mas não estamos muito soltos. Nós pensávamos que éramos muito loucos ... e não somos. Um pouco de loucura e sentido de humor: deixámos de lado o sentido de humor. Como ferramenta fundamental do moderno, reivindico-o desde Cervantes. Um sentido da vida um pouco mais relaxado, aberto, flexível. A esse nível, foi tudo para o inferno.


P: Achas que a mentalidade do país está a mudar ou está a renascer uma característica que já tínhamos dentro?

R: Eu não sei, mas falta renovação. Falta mudança e falta quem diga as coisas de uma forma diferente. Que as pessoas as queiram sentir de forma diferente também. Como se toda a gente tivesse que mudar de hábitos. Mas não tanto de formas de fazer − na maneira como vivemos o dia a dia somos um país maravilhoso − mas nas formas de pensar. A angústia que existe aqui não tem precedentes. As pessoas estão muito angustiadas, não creio que haja muitas mais formas de o descrever. E isso angustia, é tremendo. A única coisa que a classe política conseguiu foi angustiar as pessoas.


P: Achas que na raiz destes sentimentos pode estar a gerar-se um novo movimento artístico ou cultural, algo distintivo…?

R: Não sei, porque é muito complexo e leva muitos anos. Necessitas de professores muito bons. E esses bons professores precisam de ser pessoas muito, muito generosas. E não vejo isso. Necessitas de professores grandiosos, humanistas. Trans-humanistas, se quiseres. Sei que soa retro, mas isso faz realmente falta. E não o vejo. Não é assim?


P: De momento, não.

R: Há muita “institutriz”, mas poucos professores.


P: É uma boa forma de o dizer. De todo o modo, achas que a arte pode cumprir uma função de catarse, ou que tipo de papel pode cumprir?

R: Para mim, a arte é fundamentalmente pensamento, mais que experiência no sentido estrito da palavra. Ou mais que forma, figura e experiência. É pensamento. Pelo que acredito que os artistas desempenham um papel fundamental. Para mim, eles são, ou deveriam ser, uma classe intelectual que se deve ouvir e considerar. Porquê? Porque as formas que eles têm de entender o que está a acontecer na realidade são ainda mais elásticas, mais até do que nas ciências humanas, como a sociologia, a história ou o pensamento crítico ou político. Neste sentido, a arte e os artistas representam uma possibilidade da mudança de uma lógica, de uma maneira de pensar e de sentir. Mas … um: esse processo não é nada rápido. Dois: é necessário preparar uma sociedade para confiar. O problema desta sociedade é que não confia muito. Primeiro não quer arriscar e segundo não confia. Não está muito treinada nisso, arriscámos pouco. Para que isso possa ocorrer, para ter uma classe intelectual poderosa, necessitamos de ter um altíssimo sentido de risco. E aqui não o há. Ou eu não penso assim.


P: Uma vez falaste de um museu ou de um centro de arte como um “espaço político”, a que te referias exatamente?

R: Era o que te dizia antes, um museu é um lugar capaz de mudar os hábitos de pensamento: para mim, isso é o político. Não se trata tanto de concordar ideologicamente, de concordar com algumas formas de entendimento da ação, mas de sentir de uma maneira diferente. Algo que é capaz de transformar a lógica, de entrares no museu e dizer “há um par de meses atrás não teria pensado assim, mas agora sou capaz”, isso é que é o político. E isso é o que a arte faz: ser político porque transforma a lógica, muda a rota das ideias, a conectividade entre as “obviedades”. E sai-se do absurdo. A arte tem algo fundamental: não é cliché. Agora, além da crise, estamos a viver no reinado do cliché. As pessoas estão habituadas a pensar por clichés. Leio clichés a toda a hora. Desde a imprensa às conversas. Acabar com esse hábito não é fácil.


P: Definitivamente, a ideia da arte como catalisador de mudança.

R: Há algumas belas imagens de Salvador Dali − sou muito fã dele − filmes dele em Cadaqués, vestido de leopardo ... uma coisa absolutamente estranha. É um domingo e ele está ali acompanhado pelos seus amigos de toda a vida, observando as pessoas a dançar sardanas. Primeiro vai à missa, logo senta-se, põe uma tortilha na cabeça… mas está ali, com as pessoas. Uns dançam sardanas e ele está com as suas coisas. E há uma espécie de coexistência entre os dois mundos que é maravilhosa. Vês essas imagens e pensas: “caramba, é genial, mais disto, por favor!”


P: Por que é que isso já não acontece?

R: Porque é necessário dar-se liberdade. Ele era um tipo brilhante e tinha um sentido de risco alucinante. Nessas imagens vês claramente como ele admirava e gostava de todos os que estavam com ele, não era um cínico. Era um tipo que realmente tinha uma relação com o homem que vendia peixe, com o que o ajudava com isto e com aquilo… e não vivia como eles, mas como eles sentiam que ele gostava deles, desenvolviam um sentido de tolerância para com a diferença. E essa diferença é sincrónica: ele sincroniza porque está no mesmo lugar que eles. E ao mesmo tempo é assincrónica porque ele está num sentido da vanguarda e num momento da história que é diferente daquele em que estão os que dançam as sardanas. E isso é genial. Neste país há muita boa gente, há pessoas muito boas, mas há que deixá-los soltos. O que nos custa é deixá-los soltos. Fazemos sempre esses pequenos compromissos: “sim, sim, claro, gosto muito, mas e se fizesses um pouco mais assim…?”. Até que começas a modificar… E assim porque é que não resulta? Não resulta por isso mesmo.


P: Mas o que pretendemos ao não dar asas às pessoas que poderiam fazer grandes coisas?

R: Não pretendemos nada, é que não as podemos dar. Não somos capazes de dizer “faz o que te parece, já voltarei para ver”. Custa muito dar autonomia e liberdade aos projetos. Há realmente muita vontade de dizer as coisas com o livro na mão e toda a gente tem o livro na mão. Os livros começam a dizer quase todos a mesma coisa, há muita prescrição por toda a parte. É coercitivo. A forma com estruturámos o nosso pensamento é muito coercitiva.


P: Achas que existe uma barreira invisível entre o mundo da arte e o público geral, o cidadão comum?

R: Não. A mesma que existe entre o cidadão comum e muitas outras disciplinas como a arquitetura, a moda… Pelo contrário: o cidadão comum, em determinadas circunstâncias, quer. Com a crise muita gente tem mais vontade de saber por onde ir e encontram inspiração nas instituições culturais que têm também a função de relaxar uma certa ansiedade social. Quando vais ao museu e tens uma experiência produtiva, ouves umas conferências… essa é uma forma de relaxar a tensão social, de tentar pensar sobre algo do que se está a passar e que não sabes muito bem o que é: sabes que é opressivo, sabes que as coisas estão a correr mal, tens uma sensação de perda de controlo. A arte pode contribuir para o entendimento do que é exatamente essa sensação de perda de controle e se existe a possibilidade, ou não, de contribuir para solucionar o que se está a passar. Não, as pessoas não têm nenhum problema com a arte. Acho que as pessoas em geral não têm qualquer problema com a cultura, quem tem o problema é a política que não sabe bem o que é a cultura. E quando não há dinheiro simplesmente a trata como se fosse um plus.


P: Um luxo.

R: Sim. E essa é a lógica que tem de mudar. Se os artistas são intelectuais, não são desde logo um luxo. São uma necessidade. E, mais do que nunca, necessitamos de outras vozes. O que estamos a ouvir são repetições cansativas de coisas que já conhecemos. O que necessitamos é inspiração a partir das ideias; uma energia que seja diferente. Que seja capaz de ser rigorosa, que dê confiança, que digas “OK, talvez não consiga entender o que está a acontecer mas tenho um sentimento de confiança”, e não um sentimento de cinismo, de andar à volta de tudo.


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Nota *: Parte de uma entrevista de E. J. Rodríguez publicada originalmente em Jot Down – Contemporary culture mag. As fotografias são de Alberto Gamazo.