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O ESTADO DA ARTE


Alexandre Melo, “Arte e Artistas em Portugal”. Capa do livro.

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Foi muito pouco notada a edição portuguesa (Assírio & Alvim, trad. Armando Silva Carvalho) de um livro que é uma das mais assinaláveis obras de reflexão estética recentes, A Arte e a sua Sombra de Mario Perniola. Debruça-se designadamente o ensaísta sobre uma situação presente que é caracterizável como de dupla aporia, “A arte sem aura, a crítica sem teoria”. É certo que as considerações se baseiam numa delimitação relativamente precisa: “No mundo da crítica da arte jovem está difundida a opinião de que a arte de hoje pode prescindir da teoria: o papel do crítico de arte deveria limitar-se a uma espécie de crónica e de promoção publicitária dos artistas que lhe agradam, sem nunca intervir em questões, já não digo estéticas, mas poéticas ou até relacionadas com a história da arte” (pág. 75). Todavia, salta à evidência que há uma situação genérica em que este mesmo enunciado recobre um “mundo da crítica de arte”, prescindindo da particular qualificação “jovem”, que na argumentação de Perniola se reporta especificamente aos anos mais recentes. E tanto assim será reconhecível quanto o autor não deixa de fazer um enquadramento mais geral: “De resto, sob esta orientação anti-teórica, a crítica de arte alinha sem problemas, seguindo a crítica da música jovem, a crítica cinematográfica e a literária” (idem).

Que critica o crítico então? Basta atentar ao estado genérico da “crítica jornalística” (que assim nomeio sem qualquer depreciação, antes pelo contrário, continuando a pensar que deveria ser um dos meios fulcrais de mediação) para verificar que ela tem pelo menos a cadência semanal de produzir referências e nomeações, mais do que apresentar-se também como uma reflexão e abrir horizontes aos leitores. A capacidade de nomear e seleccionar é seguramente importante (embora de modos diversificados) na “crítica da música jovem [pop], a crítica cinematográfica e a literária” mas, não obstante, na crítica das “artes plásticas” continua também a existir o que se pode designar por prática de diferentes papéis: “Os críticos de arte são sem dúvida, entre os actores do mundo da arte, aqueles que têm mais oportunidades de fazer valer as suas competências em papéis diversificados, e fornecem os exemplos mais visíveis de acumulação e alternância de papéis” (Raymonde Moulin – L’artiste, l’institution et le marché, Flammarion 1992, pág. 206). Por regra, senão por norma, os críticos de arte escrevem em jornais e imprensa especializada, publicam textos em catálogo, são comissários ou curadores. Assim, para nos aproximarmos do modelo sociológico de Pierre Bourdieu, a figura do crítico de artes plásticas não intervém apenas no campo dos “bens simbólicos” mas também no das instituições e do mercado, de um modo particularmente diferente dos seus congéneres de outros campos. Esta “acumulação e alternância de papéis” é com frequência, dir-se-ia que por regra, senão por norma, exercida de um modo tal que, por analogia com as regras e instituições dos mercados financeiros, se pode mesmo falar de “La critique d’art: une instance de régulation non régulée” (Mathieu Bera em Sociologie de l’Art – La question de la critique, L´Harmattan, 2003).

A influência e papel das diferentes instâncias de nomeação e consagração podem ser analisadas segundo diversos modelos sociológicos, seja a análise dos “mundos da arte” (Howard Becker) e a sociologia das mediações, seja a do “campo artístico” (Bourdieu) e os seus modos de dominação, mas, como refere Nathalie Heinich (Le Triple jeu de l’art contemporain – sociologie des artes plastiques”, Minuit, 1998, págs. 283/4), tratam-se de modelos teóricos, que não sendo “objectos reais” mas “utensílios conceptuais” fornecem diferentes ângulos de abordagem, eventualmente combináveis na análise de casos concretos. Sendo estas questões genéricas de estética e de sociologia da arte (da arte e das mediações), a que propósito as estou concretamente a levantar?

Poderia (re)começar assim…
Foi notada a recente edição pelo Instituto Camões, instância pública de difusão internacional da cultura portuguesa, de (mais) uma publicação de Alexandre Melo, Arte e Artistas em Portugal. O autor é apresentado como licenciado em economia e doutorado em sociologia, crítico de arte, organizador de exposições, autor de diversos livros e também curador das colecções do Banco Privado (em depósito em Serralves) e Ellipse Foundation. Como é sumamente sabido, embora não referido na algo modesta apresentação de um autor que acumula tantos papéis, ele é também assessor cultural do Primeiro-Ministro José Sócrates. Dirá o autor (e de resto já o tem dito) que apesar da data recente da publicação, ocorrida durante a presidência portuguesa da União Europeia durante o segundo semestre do ano passado (facto aliás expressamente assinalado numa nota introdutória do Ministro dos Negócios Estrangeiros, Luís Amado), a encomenda data já de 2001, quando o director do Camões era Jorge Couto, e não quando Melo já exercia o seu actual assessorado.

Em rigor, pouco importa isso, pois se confirma a proximidade de Melo a uma zona de poder com conotações partidárias, PS no caso (de resto, sendo novamente governo o PS, como o era ao tempo da encomenda, também o responsável pela encomenda, Jorge Couto, está de novo num alto cargo cultural público, a direcção da Biblioteca Nacional), e que o autor do livro, para além das funções que presentemente exerce junto do primeiro-ministro, continua “apresentável”, como curador de colecções privadas, e a esse nível interveniente também em instâncias que são ao mesmo tempo de “consagração” e de “mercado”.

Como doutorado em sociologia, é suposto que o autor não desconheça o postulado da “neutralidade axiológica” definido por Max Weber. Enquanto absoluto é por certo desde logo discutível esse postulado, e é-o ainda mais certo nesta particular área, sendo necessário pensar também em Ce que l’art fait à la sociologie, para citar um outro título de Nathalie Heinich (Minuit, 1998). Ainda assim, há questões de metodologia e sobretudo de isenção que um doutorado em sociologia não deveria desconhecer. Mas seja qual for a perspectiva, artística, sociológica, política ou ética, torna-se patente que Alexandre Melo é um “case study” de acumulação de competências e papéis – que até eventualmente poderia no âmbito académico ser objecto de uma análise, não sem o risco de ainda vir a ter como arguente ou director do júri o mesmo Alexandre Melo, tais as promiscuidades instaladas.

E tanto assim é, que importa citar alguns exemplos concretos.

1) Como também é sumamente sabido, outro curador da Ellipse Foundation é Pedro Lapa, que se dá o caso de exercer essas funções a “tempo parcial”, do que se deduz ser também a “tempo parcial” que exerce as funções públicas de Director do Museu do Chiado. Ora, para além desta particular prática simultânea de um cargo público e de um cargo privado, sucedeu mesmo que obras compradas pela Ellipse Foundation, de James Coleman e William Kentridge, tivessem sido expostas naquele museu público, sendo mesmo que uma delas, “horocupus” de Coleman, foi objecto de dois textos críticos de Melo, no Expresso e na ArtForum. Devo recordar, a propósito, que em contraditório a algumas análises minhas a então ministra da Cultura, Isabel Pires de Lima, escreveu mesmo que “se casos houver de inequívoca promiscuidade na acumulação de cargos públicos - e a contribuição para o seu conhecimento, através da crítica construtiva, é decerto uma das mais nobres funções da imprensa em democracia - tais serão tratados em sede própria, conquanto provados” (Público, 21-12-05). Como se verifica, Pedro Lapa continua a exercer ambas as funções, sem tal “inequívoca promiscuidade” ter sido tratada “em sede própria”. Julgo saber que pelo menos a dado momento Isabel Pires de Lima terá de facto tido como preocupação algumas promiscuidades que se verificavam – e sucedeu mesmo, recordo, que Guta Moura Guedes abandonasse a administração do Centro Cultural de Belém depois de aí ter aberto uma exposição da Experimenta Design, de que é directora. Mas, na inconsistência da acção de Pires de Lima, como poderia o “caso Lapa” ter sido frontalmente abordado, quando em situação aproximável estava, e continua a estar, o assessor cultural do primeiro-ministro? Como se torna evidente esta situação de Alexandre Melo é de si mesma uma consagração das promiscuidades.

2) Como já tive ocasião de recordar, o primeiro-ministro José Sócrates incluiu num programa de uma visita oficial, a Angola, a inauguração em Luanda da exposição itinerante “Portugal Novo”, de que o comissário é o seu próprio assessor – e como agora a publicação de Arte e Artistas em Portugal vem confirmar, há um discurso oficioso sobre a arte contemporânea portuguesa assim elaborado pelo assessor cultural do primeiro-ministro.

3) Como também se recordará houve a dado momento ruptura das negociações entre o Ministério da Cultura e José Berardo, e quando este ameaçava levar a colecção para fora de Portugal a ministra foi desautorizada por uma intervenção directa do primeiro-ministro, que restabeleceu as pontes de negociação, gesto político em que por certo o papel do seu assessor foi de relevo. Mas, mais tarde, estabelecido os termos do protocolo, que tanta polémica suscitaram por se considerar não ter sido devidamente acautelado o interesse público, ainda assim o assessor cultural do primeiro-ministro declarou publicamente que não excluía a hipótese de vir no futuro a integrar a Administração da Fundação entretanto criada: “dado que já colaborei com ele [Berardo], qualquer hipótese terá de ser ponderada” (Sábado, 20-04-06). Num caso como este não se pode deixar de falar de “informação privilegiada”, e há mesmo uma designação, insider trading, que configura um delito de mercado – e de uma instituição em relação com valores de mercado (nem que fosse apenas pela bolsa de cargos) se trata também.

É uma tal abordagem da arte a altos níveis do Estado, com competências sobrepostas e na institucionalização das promiscuidades, um caso crítico, ético e político que cristaliza um entendimento do “Estado da Arte” – sem qualquer regulação de instâncias de regulação. É uma intervenção nos “mundos da arte” que configura uma “dominação” e uma legitimação directa a partir de instâncias centrais do poder político, em violação das normas abertas no espaço público. E que por inteiro, creio, justifica que obstinadamente se continue a chamar a atenção para um sistema gravosamente enquinado…


Augusto M. Seabra