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TIAGO MADALENONOVO BANCO REVELAÇÃO 2017MUSEU DE SERRALVES - MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA Rua D. João de Castro, 210 4150-417 Porto 17 OUT - 07 JAN 2018 Cabeça, torso, pernas, passos, sobre a exposição Clepsidra de Tiago Madaleno
Contaram-nos que não podíamos morrer – que não seríamos capazes de morrer - que havia qualquer coisa em nós que permanecia. Especiais. Mas o mundo desfez-se, e desfaz-se depois de se ter desfeito; revolveu-se. Maturámos na mesma medida em que morremos. Talvez tenha sido nesta compreensão que assimilámos o potencial das narrativas. Contaram-nos que não podíamos morrer e nós contámos que para morrer era preciso abandonar a nostalgia. Os nostálgicos nunca morrem. Mas as grandes narrativas faliram e, morrendo ou não, o rumo já não tinha um modelo. A universalidade desfaleceu e na sua queda, vislumbrou-se a possibilidade de volver a narrativa para dentro, e construir mundo por narrativas pequenas. Pequenas mesmo que épicas. “Não é o conhecimento que supera a ignorância, é o movimento.” [1], então para onde continuar a andar? Tiago Madaleno, com Clepsidra, uma exposição-conjunto que é um pensamento lúcido, alienante e contínuo que reflecte sobre a condição da Imagem no Tempo (uma imagem e um tempo sem origem), cruzando métodos, meios e abordagens dando lugar a um todo de pensamento (neste caso, a exposição) dá-nos uma resposta à pergunta que talvez nunca tenha formulado. Para onde continuar a andar? O melhor é andar em círculos. E se lhe perguntarmos se o pensamento está acorrentado às pernas, a peripatética personagem dos slides (em Pernas) – que é o Tiago, ele mesmo -, carregando uma enorme máquina que constrói e destrói imagens e faz brilhar o caminho até ao mar, responde-nos que sim. Às pernas e às máquinas. E caminhar pode ser construir a luz? O melhor é estar atento ao mar. Talvez alguém lhe tenha também contado que a pintura também já tinha morrido, e ele sentiu a morte da pintura como a sua própria morte e perguntou-se “Como morrer agora que estou pronto a saltar de um abismo?” e então saltou. Foi o começo. No começo, o salto para um mundo paralelo, que é vontade de vontade de encontrar um solo em que morrer seja um possível compactuante com o renascer a cada gesto (a Imagem que se destrói, a Imagem que se constrói) e então o gesto abraçou simbolismos e ligações narrativas para que morte e salto e abismo e queda e vida-inteira pudessem coexistir e auto gerarem-se. Eu dou um passo. O melhor é dizer que um passo gigante foi dado por aí. A Viagem (estudo de movimentos), conjunto de desenhos que, dentro do estudo de movimento, do movimento do corpo engrenado com a máquina e, juntos, movimentos de uma máquina de produzir mundo (com)possível e não alternativo. Ficcionar dentro da própria realidade. Num dos desenhos lê-se: “ Após o passeio, no final de cada sopro teria que visitar um paralelo da rua e substituí-lo por uma réplica em sabão com uma imagem. Com as chuvas o paralelo seria levado até ao rio, perdendo-se assim a imagem anterior (fim do constrangimento anterior), mas perdendo-se também uma pedra que compõe a cidade. “ Perde-se e ganha-se ao traduzir a própria vida, o próprio mundo. E se, com Walter Benjamin, pensamos a tradução como um processo de manutenção de intenções, ou seja, considerando a tradução como um movimento que guarda as potências do próprio texto original numa nova língua e que não deveria ser considerada pelo seu grau de verosimilhança; podemos também ver esta exposição como um exercício de tradução. Aliás, uma tradução de traduções. Aqui já não a vida e o mundo representado mas o próprio mundo traduzido noutro mundo (mantendo a capacidade de expansão de um mundo dito original, ou real), documentado e depois de documentado, voltado a montar num mundo (ou Imagem de mundo) de imagens. Imagens que constroem outros planisférios e criam outros planos de imanência que já não o primeiro do mundo criado, nem o do anterior mundo original: dentro deste mundo-outro uma potência associativa (traduzida) que cruza, descruza e rompe as próprias narrativas criadas inicialmente em prol desta possibilidade de outras se auto-gerarem na leitura. E assim, novamente, o movimento inevitável de criação e desaparição, em paradoxal harmonia. E a presença da morte, para que nos lembremos que até morrer pode ser falso. Ou documento. Ou potência. Ou tudo. Também esta exposição, em relação ao Acontecimento – do qual toda a exposição é projecção, antecipação e documentação -, é uma perda e um ganho. “The line between the Happening and daily life should be kept as fluid and perhaps indistinct as possible” disse Kaprow, e Madaleno cumpriu-o, alimentando o mito com palavras e textos e imagens já depois do acontecimento-mito em si. “Doze pessoas confirmam ter visto aquele rastilho luminoso descendo até ao mar. É impossível falar do corpo de trabalho (e corpo, assim como trabalho, são sem dúvidas palavras importantes nesta obra e nesta exposição) de Tiago Madaleno sem estar absolutamente disponível a aceitar novas regras de mundo: esta ilusão de verdade, de realidade, de humor... são ficção ou criação de novas existências? E haverá alguém tão louco capaz de acreditar nestas histórias fantásticas e ainda assim possíveis? Ou com_possíveis? A loucura é mesmo já estarmos em vida. O melhor é continuar a andar. É nos dado a ver um mundo com regras paralelas e com tantos pontos em comum que já não sabemos se podemos também pertencer a este sistema de códigos e de simbolismos – que nos são em grande parte pertença cultural colectiva - e que Madaleno recupera, recorta e rouba, como grande-pequeno narrador e artista. Se a potência se perde quando se entra no museu? Se o museu congela o que a própria pesquisa dinamiza? Acho que serão perguntas que podem estar presentes quando somos confrontados com uma entrevista do autor desta exposição no mesmo espaço em que a exposição se apresenta e a sua postura é tão lúcida que é nervosa, é tão nervosa que é louca. Só podemos acreditar que a própria vida é a própria obra. E que existir no mundo com um chapéu e andar até à foz para libertar a Imagem, é aí. Existe aí nesse limbo vida-obra: nesse gesto que não procura aplausos, mas apenas se constrói. Construções com o tempo necessário para que o épico-fim-trágico chegue (e não chegue nunca mais), porque até lá um corpo nostálgico fica e alimenta outras potências, conta outras narrativas a partir do desconhecimento (do não-movimento, portanto): dos objectos, das obras. Os objectos a contaminar as imagens a contaminar a vida a contaminar a representação da vida a contaminar as leituras a contaminar os objectos a contaminar as narrativas a contaminar como um vírus a contaminar como uma semente a semear uma imagem a semear uma narrativa a semear em vida representações de sementes de vida a contaminar os objectos O rumor já se fez.
Catarina Real
::: Notas [1] José Maria Vieira Mendes. Arroios. Diário de Um Diário [2] Tiago Madaleno. Clepsidra – Imagem, Documento e Acção
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