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ÁLVARO LAPAÁLVARO LAPA: NO TEMPO TODOMUSEU DE SERRALVES - MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA Rua D. João de Castro, 210 4150-417 Porto 08 FEV - 13 MAI 2018
Dia 8 de Fevereiro, no Museu de Arte Contemporânea de Serralves, inaugurou uma exposição particularmente marcante, comissariada por Miguel von Hafe Pérez, que, como identificou o novo diretor João Ribas, é o resultado de um olhar de curador e de um conhecimento de historiador. Esta ocasião é de enorme importância, na medida em que se trata da maior retrospectiva alguma vez realizada do incontornável artista Álvaro Lapa (Évora, 1939 - Porto, 2006). A Fundação de Serralves e o Centro de Arte Moderna da Fundação Gulbenkian já tinham realizado duas mostras do trabalho do artista, em 1994, com cerca de 107 obras. Nenhuma dessas mostras foi, contudo, de uma magnitude idêntica à da mais recente, com mais de 300 peças, algumas nunca antes vistas, inclusivamente cedidas pela família do autor. Agora, descobrem-se pinturas, desenhos e outros objetos relativos a um vasto período de criação, de 1963 a 2005. A presente exposição parte de uma pintura (aqui em baixo) do artista que contém escrito Em que pensas? No tempo todo (1979-80) e prolonga-se até ao dia 13 de maio. Fotografia: Constança Babo
Álvaro Lapa marcou e influenciou gerações, tendo leccionado a disciplina de Estética, a partir de 1975, na Escola de Belas-Artes do Porto, atualmente Faculdade da Universidade do Porto. A forma como o próprio se relacionou com os seus estudantes e com os que tiveram a oportunidade de com ele se cruzar, foi absolutamente definidora no percurso de inúmeros artistas, teóricos e pensadores. Como Miguel von Hafe Pérez explica, o corpo de trabalho que Álvaro Lapa construiu compreende uma rara dinâmica pictórica linguística, transcrevendo e revelando uma singular qualidade imagética, plástica e escrita. Expressando-se entre a figura e a letra, a tela e a página, é frequentemente invocada a sua pintura de escritor e a sua escrita de pintor. Este universo de cruzamento entre arte e literatura é particularmente nítido na série de Cadernos, datados desde 1976, onde se evocam reconhecidos nomes como Louis-Ferdinand Céline (img.1) e Stéphane Mallarmé. Também nessa mesma dinâmica se pode destacar a série As profecias de Abdul Varetti (img.2) que enuncia várias frases tais como Não se falará em vergonha do tempo velho. Discutir-se-á de preferência o amanhã quotidiano (img.3). Produzida em 1972 é, tal como as restantes obras que preenchem a mesma sala da exposição, bem representativa do espírito que se vivia no país que antecedeu o pós-25 de abril. Retrata-se um tempo de esperança com uma visão orientada para o futuro, ainda que, muitas vezes, a um nível utópico. Hoje, as frases podem ser lidas e compreendidas como atuais, em relação ao presente, na medida em que detém a contemporaneidade que é tão própria em toda a obra de Lapa. Um outro ponto de interesse desse mesmo trabalho reside na forma como foi construído, a partir de uma cuidada e delicada técnica de bordado. Tal processo, raramente escolhido e utilizado por parte de homens artistas, permite relembrar, como Miguel von Hafe Pérez destaca, que Lapa foi nesta obra um autor feminista. Onde também se encontra um forte uso da linguagem é nos cerca de 40 estudos do artista expostos, de uma série de trezentos que a Fundação Gulbenkian recentemente adquiriu aos herdeiros (img.4) que comportam uma espécie de léxico alargado, várias vezes reutilizado. Um esboço podia dar origem a múltiplas pinturas, princípio que contribui para compreender o modo como a obra de Lapa se reinventava constantemente, tanto ao nível da ação plástica como da sua dimensão conceptual. O valor do artista foi, pois, reconhecido distintas vezes, mediante as várias fases e desenvolvimentos criativos que constituíram o seu percurso. Caso disso foi, em 2004, a sua nomeação com o prémio da Fundação EDP, por sinal, o mecenas da atual exposição. As várias séries de Álvaro Lapa, contendo um caráter narrativo, movem-se entre o retrato e a paisagem, esta última, geralmente, objecto, de uma mesma referência, especialmente apreciada pelo artista, o areal (img.5). No que diz respeito à primeira categoria de representação, é de um modo muito particular que esta se revela, principalmente na forma de autorretratos, nem sempre identificados como tal. Estes, ao invés de se tratarem de reproduções do rosto ou corpo do artista, surgem a partir da sua desconstrução física ou, pelo contrário, numa total ausência corpórea, expondo-se a partir do que lhe era mais próximo, desde objetos a obras suas nas quais se revia (img.6). A criação de Álvaro Lapa é de tal modo invulgar e inquietante que é frequentemente referida como um enigma por parte de críticos e teóricos. Ora, para a sua descoberta, muito contribui esta exposição de irrepreensível curadoria, fruto de um raro compromisso e excepcional trabalho de pesquisa por parte de Miguel von Hafe Pérez. Não obstante, o trabalho de Lapa mantém, sempre, um mistério que lhe é inerente e que apenas pode ser percepcionado, observado, experienciado, mas nunca totalmente desvendado. A exposição, considerada por João Ribas como determinante na programação do ano de 2018 do Museu de Serralves, é acompanhada por um vasto programa composto por visitas guiadas, conferências, das quais se destaca, dia 17 de março, com o curador, José Gil e José Luís Porfírio, e outros momentos imperdíveis, tais como uma nova versão da peça de teatro de João Sousa Cardoso com Ana Deus, já no dia 18 de fevereiro, criada a partir do primeiro livro publicado de Lapa, Raso como o Chão (1977). Todo o programa incide sobre o valioso artista, refletindo e criando a partir dele e possibilitando uma aproximação entre o mesmo e o público, aos mais diversos níveis. É momento de recordar e celebrar Álvaro Lapa como lhe é merecido e com a atemporalidade que lhe é própria, no tempo todo.
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