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DAVID HOCKNEYSOMETHING NEW IN PAINTING (AND PHOTOGRAPHY) [AND EVEN PRINTING]PACE GALLERY - 25TH STREET NY 510 West 25th Street New York NY 10001 28 MAI - 28 MAI 2018 A EXPERIÊNCIA IMERSIVA RESULTANTE DA MULTIPLICIDADE DE PONTOS DE FUGA
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Pode revelar-se complicada, a análise de uma única obra de um artista, quando este apresenta uma carreira de cerca sessenta anos de criação, repleta de notáveis conquistas em termos de inovação e técnica. No entanto, este exercício pode tornar-se exequível, se o artista em questão executa uma obra na qual congrega todas as fórmulas numa única equação, originando como suma um complexo produto de rara genialidade. David Hockney nasceu em 1937 em Bradford, Inglaterra, e vive e trabalha atualmente em Los Angeles, na Califórnia. Apenas no ano de 2017 apresentou três exposições individuais em Paris, duas das quais no Centre Georges Pompidou, e em Londres exibiu quatro vezes, duas destas na Tate com a sua sobejamente celebrada retrospetiva. Este ano em Nova Iorque, David Hockney teve um espaço exclusivo na Frieze New York apresentado pela Pace Gallery, e simultaneamente uma exposição individual constituída por novas obras no espaço da galeria na 25th Street em Chelsea, Manhattan. Através desta obra, vou fazer uma análise destacando algumas das suas principais características e categorias plásticas, passiveis de cruzar transversalmente toda a obra de David Hockney.
David Hockney, In the Studio, December 2017, 2017. [clique na imagem para ver em mais detalhe]
A primeira leitura do espetador quando se aproxima desta obra, mesmo não conhecendo fisicamente o espaço do estúdio do artista, e provavelmente desconhecendo também os seus traços fisionómicos, será de imaginar que estas são efetivamente suposições fundamentadas desta narrativa cénica. Estas assunções acabam por se confirmar quando acedemos ao título “No estúdio, Dezembro de 2017”. Após identificada esta relativamente descomplicada transposição do quotidiano de caráter pessoal para a obra, o espetador vê-se forçado a explorar cuidadosamente a cena, que apesar de se querer revelar inicialmente mundana e de fácil trato, devido à precisão pictórica fotográfica e à escala que atenta o real, se revela complexa e deveras intrincada. Tudo começa pela imagem de David Hockney, que se encontra curiosamente à escala real humana se considerada a sua posição no espaço que ocupa na cena, e tomando como fidedigna a representação em perspetiva resultante da multiplicidade de pontos de fuga. Após este confronto com David Hockney em ambas as salas, no seu estúdio e no espaço da galeria (em simultâneo), apercebemo-nos que todas as pinturas expostas no espaço físico em que nos encontramos (a galeria), e que estão fielmente reproduzidas nesta obra, foram igualmente sujeitas a semelhante trato de perspetiva. A técnica que Hockney usa nesta obra, impressão de desenhos fotográficos (photographic drawing printed) poderia desvendar alguns dos enigmas deste complexo trabalho. No entanto, e devido ao fato da narrativa se cruzar transversalmente com a técnica utilizada para a execução, surgem renovadas questões à leitura, que uma vez mais tende a desorganizar o que até esse momento tínhamos metodicamente conquistado num primeiro ato contemplativo. Ao longo da sua carreira, David Hockney tem-nos demonstrado, que a perspetiva expetável, resultante da ação de um único ponto de fuga, ou múltiplos assentes numa única linha de horizonte, não é necessariamente a forma de representação fidedigna do mundo que o rodeia. Desta feita, tem desafiado o conceito através da execução de uma perspetiva prepóstera incitando a lógica que reconhecemos como comum. Apesar do quesito, não há certamente nada de equívoco nesta sua estética da representação espacial que tem explorado magistralmente com tinta de acrílico. O que é seguramente revelador naquilo que até então entendíamos como uma expressão característica da técnica dúctil da tinta, é a transposição dessa mesma maleabilidade para o plano da reprodução fotográfica, instalando o caos na tendencialmente facciosa, leitura da perceção ocular. É indiscutível que David Hockney é exímio na exploração de paisagens enquanto narrativa, algumas simplesmente arquitetónicas, outras de composição vegetal, muitas outras transpondo ambas as temáticas, e mais recentemente o retrato humano. Apenas nesta obra, David Hockney acaba por aferir todas estas temáticas que nos são familiares à sua obra, enriquecendo-as ao estabelecer entre estas um diálogo eminentemente ativo. Adicionalmente, ao introduzir novas aplicações a esta técnica, o trabalho desperta no espetador sensações antagónicas, que experiencia intempestivos níveis de entendimento, circunscritos numa única cena que inicialmente julgava apreendida.
Para melhor entendimento é imprescindível desvendar o que está por trás da execução desta colagem de ideias. David Hockney tem um assistente de tecnologia desde que começou a explorar o desenho digital no seu iPhone e iPad. No final do ano de 2017, encontraram um laboratório digital em São Petersburgo na Rússia que explorava um programa informático fotogramétrico que aparentava responder eficazmente às suas necessidades de construção plástica digital. Através deste método, David Hockney poderia associar centenas de captações individuais de imagens da mesma cena ou espaço físico, e posteriormente trabalhá-las tridimensionalmente. Momentos antes de entregar as pinturas à transportadora para a sua exposição individual em Nova Iorque na Pace Gallery, o artista pausou todo o processo de embalagem para precisamente registar as centenas de imagens que viabilizaram a execução deste trabalho. Fotografou mais de três mil imagens transferidas a-posteriori para o programa 3D, que lhe permitiu navegar e explorar os registos no espaço tridimensional, em múltiplos ângulos e perspetivas. Dentro deste espaço nocional, ele foi capaz de movimentar livremente todos os elementos que habitavam as centenas de captações. Hockney brincou com os elementos como se tratassem de peças pertencentes a um puzzle ou de uma casa com bonecas à mercê do seu entretenimento, até finalmente encontrar a composição perfeita que respondia à sua visão.
Em “No estúdio, Dezembro de 2017”, David Hockney dá continuidade à exploração da perspetiva reversa (subentenda-se prepóstera como acima anunciado). Esta ideia desafia a história da Pintura Ocidental que desde que debutara no período da Renascença exercia normativas de perspetivas geométricas. A palavra “perspetiva” tem como primeiro significado, a leitura expansiva de uma captação visual alegadamente sensorial, e numa segunda interpretação, o termo é aplicado à transposição gráfica na pintura, desse mesmo método cognitivo. À semelhança de quase todas as suas obras, este trabalho apresenta-se pictoricamente antagónico à Pintura Ocidental. Nesta representação, o ponto de fuga é volátil, não está fixo, nem é evidente ou singular. Tudo o que nos poderia parecer como uma solução sensata para desenhar objetos sólidos num espaço bidimensional numa superfície plana, como é o caso de uma tela (em que se atribuem as proporções de volume, altura, profundidade, e largura, para alcançar uma leitura fidedigna de espacialidade), nunca foi uma resolução atraente para David Hockney. Ao explorar o conceito de “Perspetiva Prepóstera” ele desafia o que entende ter sido superestimado ao longo das últimas centenas de anos; validando a ausência de perspetiva usada pelo Russos nos séculos XIV e XV, à semelhança dos Chineses e Japoneses, ou ainda, remontando um pouco mais na história, aos Egípcios. Ao aplicar estes princípios técnicos de perspetiva, Hockney está na maioria das vezes, a remover a incidência de sombras que resultam habitualmente de um único e estável ponto de fuga. Ao libertar-se do que ele considera “a tirania da perspetiva do ponto de fuga” (“tyranny of the vanishing-point perspective”), David Hockney anuncia um renovado entendimento do espaço tridimensional, que no caso particular deste trabalho, estabelece simultaneamente uma latente apropriação do espaço amiúde imersivo, da Realidade Virtual. Quando nos encontramos imóveis à frente deste trabalho imenso, sofremos precisamente a ilusão de estarmos rodeados por uma tridimensionalidade aglutinadora. O espetador é incompreensivelmente sugado para o interior desta representação bidimensional, acontecendo precisamente nesse instante a ilusão da possibilidade de olhar em redor. Como em qualquer experiência de Realidade Virtual, encontramo-nos nesta altura, perante aquilo que é o resultado de um costurar de centenas de captações fotográficas, que exaltam o ilusão e sentimento do Real, produzindo uma emulação imersiva de um “Quase Real”.
Ao aplicar todas as estratégias e fórmulas que acabo de referir, David Hockney cria o que nós poderíamos considerar como uma experiência magistral impulsionada pelas conjunturas dentro do espaço expositivo da galeria. Os espetadores confrontam-se com uma representação Renascentista de uma perspetiva atentadamente realista, de uma narrativa contínua, provinda do mundo real. Hockney, ao nos fornecer elementos primordiais para um potencial entendimento da ação, despoleta cuidadosamente na nossa memória e conhecimento, um caminho verdadeiro de uma narrativa inicialmente obscura, que se transfigura em familiar. O processo de familiarização é grandemente facilitado quando o artista transporta todas as pinturas que se encontram no espaço físico da Pace Gallery, para o espaço cénico narrativo, deste trabalho. É também através deste artifício do espelhar de objetos, do interior da narrativa do seu estúdio, para o interior do espaço da galeria, que a experiência de interatividade acontece, dando lugar a uma comunicação fluída de informação. É esta sensação de circunfluir que determina a liberdade do espetador ao explorar a ilusão deste ambiente virtual real. É ademais curioso, que esta ilusão de Realidade Virtual, obtida sem o auxílio dos acessórios tecnológicos, se revela quando o espetador abandona o espaço de contemplação frontal à obra, e se aventura no espaço da galeria; onde é confrontado com os originais das pinturas fotograficamente retratadas em “No estúdio, Dezembro de 2017”. Por fim, e como resultado das arestas cortadas das telas expostas, o espetador é uma vez mais absorvido pela astuta interpretação da perspetiva de Hockney, tentando uma vez mais, decifrar o seu lugar nestes espaços múltiplos onde as narrativas se desenrolam, e das quais este também faz parte. Nas palavras de Leonardo da Vinci: “Existem três possíveis aspetos que afetam a perspetiva. O primeiro, tem que ver com o fato de que o tamanho dos objetos tende a diminuir em função da distância; em segundo, a forma como a cor tende a alterar-se cada vez que os objetos se encontram mais distantes; e a terceira, confirma a tendência da representação dos objetos, com menor acuidade, quando estes se encontram nos planos mais afastados.” É inquestionável que esta interpretação de Leonardo, responde com precisão à representação pictórica da perspetiva, no entanto, a era digital eclodiu posteriormente na História da Humanidade, e como David Hockney muitas vezes afirma: “A perspetiva é uma lei da ótica,” e conclui, “No momento em que começamos a fazer batota em prol do belo, entendemos finalmente, que somos um artista.”
Sérgio Parreira
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