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VASCO ARAÚJOPATHOSFORMEL![]() ESCOLA DAS ARTES | UNIVERSIDADE CATÓLICA DO PORTO R. de Diogo Botelho 1327 4169-005 16 OUT - 29 JAN 2021 ![]() ![]()
[...] um atlas das ‘fórmulas-de-pathos’ (Pathosformeln), gestos fundamentais transmitidos e transformados – até nós desde a Antiguidade: gestos de amor e gestos de combate, gestos de triunfo e de servidão, de elevação e de queda, de histeria e de melancolia, de graça e de fealdade, de desejo em movimento e de terror petrificado... O homem encontra-se, pois, no centro do atlas Mnemósine, pela energia contrastada dos seus pensamentos, dos seus gestos, das suas paixões. [5] O confronto com a nossa humanidade, as nossas emoções, o nosso pathos, mediante a conjugação e comparação de imagens da História de Arte, é recuperado e materializado por Vasco Araújo na instalação apresentada em Pathosformel. Num primeiro contato com a obra, somos atraídos por imagens, que reconhecemos da história da pintura, rostos que aparentam falar entre si, ideia que é reforçada pelas vozes que ouvimos, pequenos diálogos que ecoam por todo o espaço expositivo. À medida que olhamos os retratos, a nossa perceção altera-se e os papéis invertem-se, não somos apenas nós que observamos os retratados, eles também nos observam e questionam. Através da utilização de 42 impressões digitais de retratos pictóricos da história da arte, sobre fragmentos de cartazes publicitários, Vasco Araújo estabelece um diálogo direto entre o passado e o presente, entre signos visuais clássicos e contemporâneos, convocando simultaneamente o espaço urbano enquanto espaço expositivo, de intervenção e o espaço museológico. Recorrendo à colagem e descolagem - técnicas que pressupõem uma ação, um gesto, uma performatividade – o artista apropria-se, descontextualiza signos visuais e textuais da cultura urbana e clássica, criando sucessivas camadas de informação e de leituras, num processo aparentemente inacabado que presume uma repetição. Vasco Araújo banaliza ao nível de outdoors, pinturas de Ingres, Rafael, Bronzino, entre outras, imagens musealizadas, deformando-as pela fragmentação, laceração e rasgagens, com o objetivo de lhes retirar a aura e de as humanizar, através da manipulação [6]. Para além destas imagens que preenchem as paredes da sala de exposição e três paredes cenografadas, fazem parte da instalação três esculturas: a de um homem engessado e duas esculturas vídeos, ambas intituladas Entre Actos, em que a partir de mitos o artista promove uma reflexão sobre o comportamento humano e o mundo, à semelhança de Warburg que entendia a representação dos mitos antigos como testemunhos de estados de ânimo, convertidos em imagens, a partir dos quais las generaciones posteriores...buscaban las huellas permanentes de las conmociones más profundas de la existência humana. [7] Na instalação Entre Actos #1, qual canto da sereia que nos hipnotiza, somos conduzidos, pelo som de uma guitarra que acompanha uma voz masculina. Cantando sozinha, frente ao espelho de um camarim - provavelmente no intervalo entre dois atos de uma representação, numa alusão ao título da obra – a figura da Medusa, canta-nos o seu destino num fado. Recorrendo à figura mitológica da Górgona, enquanto signo, Vasco Araújo propõe a sua desconstrução numa versão contemporânea. Se na mitologia grega a Medusa, é uma temida criatura do sexo feminino, mortal, com cabelos de serpentes e olhos que petrificam, em Entre Actos #1, é-nos apresentada como um homem trasvestido, cujo olhar paralisa o espetador pelo peso da sua confissão [8]. Assumindo uma posição de voyeur, assistimos a um momento de solidão e intimidade de alguém cujo rosto nos é revelado através do reflexo de um espelho. De costas voltadas para o espetador, não deixa de ser curiosa a presença do espelho, em frente do qual a Medusa canta ao mesmo tempo que observa a sua imagem refletida, contrariando o mito clássico, em que a visão do seu reflexo no escudo espelhado de Perseu a conduziu à morte. Nesta obra, onde realidade e ficção se cruzam, a expressividade teatral do intérprete, conseguida pelo gesto, o olhar e a voz, ultrapassam os limites da representação, levando-nos a interrogar sobre quem nos está a falar: a Medusa ou quem a interpreta? A própria letra do fado que nos é cantado, triste e melancólico, explora a intimidade, a questão do género, da identidade e da condição de ser mulher: (...), Mas a gente/ Já traz o fado marcado/E nenhum mais inclemente/Do que este de ser mulher! Recordemos o fado da Medusa, descrita por Ovídeo como uma bela donzela, que ao ser seduzida por Poseidón, foi castigada, ao contrário do deus, por Atena, que transformou o seu cabelo em serpentes e tornou mortífero o seu olhar. À medida que assistimos ao vídeo, a imagem da Medusa vai-se confundindo com a do próprio ator que a veste, promovendo-se uma reflexão sobre a identidade, a sua procura e a pluralidade do ser humano, temáticas exploradas na prática artística de Vasco Araújo, que recorre ao travestismo enquanto meio para a construção da narrativa que pretende contar. De salientar o importante papel desempenhado pela voz, que associada ao gesto, imprime o tom pesaroso, triste e amargurado do poema que se canta, assumindo-se como protagonista, e através da qual estabelecemos uma relação entre o texto e a imagem. A voz, que Vasco Araújo considera como nossa verdadeira identidade, é o que nos identifica imediatamente [9], e talvez seja por esse motivo que, na esfera privada da personagem, para a qual fomos convidados, a Medusa canta: Seja quem for adivinha/Na minha voz soluçando/Que eu finjo ser quem não sou! A importância do mito como meio para refletirmos o mundo contemporâneo, assim como o protagonismo atribuído à voz e à intimidade, voltam a estar presentes na escultura de vídeo Entre Actos #2. A instalação em madeira pintada, espécie de cabine composta por uma caixa de paredes opacas com um pequeno orifício, qual câmara escura, convida-nos a espreitar o seu interior. Ao entrar na instalação o espetador depara-se com múltiplas linguagens – música, imagem e texto – que o atraem e despertam emoções. O ambiente sonoro, amplifica o caráter trágico da cena, em que a expressividade da voz rivaliza com o dramatismo da imagem. Inspirado na pintura A Morte de Marat (1793), de Jacques Louis David (1748-1825), concebida como um monumento público ao herói-mártir, Vasco Araújo apresenta-nos a morte do homem que está na origem da criação de Marat - a lenda - enquanto símbolo de um homem novo, saído da Revolução Francesa. Recorrendo ao vídeo, como medium, Vasco Araújo confere uma nova expressividade ao tema, transpondo-o para a contemporaneidade, numa obra que se situa simultaneamente entre a fotografia e o filme, e em que o tempo desempenha um papel essencial. A simplicidade alcançada, a mesma que encontramos na obra de David, herdada da arte clássica, atrai-nos para a contemplação da figura de Marat. Destaquemos a genialidade do artista ao cruzar temporalidades diferentes no espaço da narrativa: o momento da morte, para o qual somos transportados através do vídeo, e o momento anterior à morte, através da voz do retratado, a voz que na memória é dos primeiros elementos que perdemos aquando da morte de alguém. O relato, na primeira pessoa, da carta escrita por Marat antes de morrer, adquire um tom confessional – tal como na Medusa - expondo dúvidas, angústias e receios.
Detalhe da exposição Pathosformel, de Vasco Araújo. Fotografia cortesia da autora.
Em ambas as instalações de Pathosformel, Vasco Araújo propõem-se refletir sobre a condição humana, explorando as suas inquietações, fragilidades e desejos, através da apropriação de narrativas do passado que transporta para a época contemporânea, comprovando a intemporalidade dos conceitos que enunciam. Assistimos à sobrevivência da imagem ao longo da história da arte e da cultura como motriz de humanidade. Uma travessia do tempo, que se converte num recurso para ver a história como manifestação presente, ainda que a partir de uma eventual memória do passado. O interesse de Vasco Araújo pelo lado de trás ou o que está por debaixo, o que não se vê, a intimidade, o forro das coisas [10], que carateriza/acompanha a sua prática artística e que encontramos em Pathosformel, adquire uma dimensão literal através de uma imagem de gestualidade emotiva, que se esconde, inserida na parte de trás de um dos cenários que compõem a exposição. Colocando o dedo na ferida, o artista apresenta-nos o toque, através reprodução de um fragmento de uma obra de pathos barroco de Caravaggio. Ao longo de toda a exposição somos confrontados com o poder das imagens e a sua capacidade de criar e disseminar mitos, ritos, memórias e sensações. Imagens de um passado que fascina Vasco Araújo, pois como o mesmo diz, (...) apesar de todos os episódios, de todos os séculos, nós continuamos a ser os mesmos. ou seja, matamos de forma diferente, amamos de forma diferente, vivemos de forma diferente, mas continuamos a ter o mesmo tipo de emoções. [11]
Mafalda Teixeira
[1] A exposição resultou de uma residência artística de Vasco Araújo na mesma instituição durante o ano de 2019-2020. Para além da mostra expositiva, o artista realizou um filme com o mesmo nome, Pathosformel. ![]()
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