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MARIA CAPELOO DIA JÁ FECHA AS PORTASMAAT Av. de Brasília, Central Tejo 1300-598 Lisboa 18 JAN - 30 ABR 2023
Sente-se o espaço como uma memória flutuante do ser, que é regida pelo tempo da pincelada em tinta da China sobre o papel oriental. Maria Capelo elabora em sucessivas variações de paisagens, o momento de cada uma delas dada pela transformação, cuja ação se funde entre a contemplação e a memória de uma paisagem. Ao apreciarmos as palavras de João Pinharanda, viajamos para a obra plástica da artista:
Vales e colinas, renques de árvores bordejando cursos de água, espaços abertos, montes calvos, árvores isoladas ou pequenos bosques, florestas mais fechadas e secretas, raríssimos pormenores de construções humanas confundindo-se com afloramentos rochosos… (Pinharanda [2023] Paisagem, palavra e silêncio [Folha de Sala])
Através dos desenhos configurados por uma unidade monocromática, entre a sombra e a luz, contracena-se, de um modo subjacente, o entendimento da noção espácio-temporal. Maria Capelo sugere, desta forma, através da montagem dos vários elementos pictóricos, o sentido da vida sinalizado pelo silêncio. De desenho a desenho, o gesto da mão e o olhar criam vocábulos repetitivos, mas diferentes entre si, como incidentes de uma composição cenográfica, onde tudo permanece mutável, numa constante fluidez e transitoriedade, que, inevitavelmente, suscitam um recomeço ao seu ponto de origem. Por outras palavras, cada obra reside na impossibilidade do encontro com o espaço. A imagem original dada por cada gesto da pincelada estende-se através de um processo experimental que comporta as matérias em si. Na efemeridade da coisa, o corpo perambula entre caminhos, cuja sensação dilacera as fronteiras do ser em si. Da descontinuidade da narrativa visual, revela-se o fragmento, do olhar, o gesto e o desenho. Numa experiência estética, em particular, o impulso ininterrupto da mudança, o espectador avista a unidade dada pela conceção temporal de um percurso, que se manifesta na montagem das paisagens contempladas. A ordem desmorona-se na inviabilidade definida pela oscilação da narrativa dos vários momentos e dos fragmentos testemunhados, cujos elementos, por sua vez, se expandem numa experiência para além do aparente encadeamento cinematográfico. Essa experiência encontra-se na memória, reconhecendo a sua volubilidade e uma consciência ilusória de querer abarcar a natureza, enquanto coisa em si. A narrativa da montagem adere a uma duração de um momento temporal de ação. O fluxo da memória, que ocorre no tempo psicológico, evidencia-se como sendo um processo de criação que determina a obra da artista. Todavia, a memória é absorvida pelo estado de contemplação. Assim, sentimos a impermanência em cada momento, sendo exteriorizada pela vacilante narrativa, numa espécie de devaneios de um caminhante no espaço. A temporalidade do caminhar na paisagem transparece na mutabilidade do ser, enquanto estado de consciência, que converge e unifica os vários trilhos do passado, presente e futuro no não ser. Na fluidez de um gesto, o caminho manifesta-se transitório, a memória ténue exposta como um frame de uma película cinematográfica, numa consciência aparente do próprio ser no espaço e no tempo. Em O dia já fecha as portas, relembra-nos o sentimento de um contemplador solitário como afirmava Jean-Jacques Rousseau, que, em certa medida, a artista contemporânea desponta numa outra experiência estética, apelando à dicotomia entre o estado de meditação e a memória, onde o passado e presente, a paisagem real e o momento de ação do gesto são delineados pelo ato da memória. Ambos unem-se nos múltiplos fragmentos visuais, oferecendo-nos, desta forma, uma alusão da sensação de um ser meditativo. O gesto despojado da artista intensifica a compreensão da essência das coisas em si da natureza. Um momento de união entre a memória e o estado meditativo do contemplador nasce da consciência do gesto dado pela mão através do pincel. A artista encontra na ação o movimento da essência dos elementos. Capta a transitoriedade da energia que tudo flui, como é entendida pela filosofia oriental, ou na prática da pintura chinesa, em que o gesto da mão, o traço e o pincel fluem como um todo, libertando o fluxo da vida. Atendendo à experiência de um contemplador, que unifica a memória ao ato do gesto, um elemento enfático do movimento espácio-temporal, Maria Capelo encaminha o espectador para um estado da finitude do ser. Por assim dizer, quando olhamos uma paisagem, aspirando o estado de consciência do não ser, não é no tempo da paisagem que pensamos, mas sim na temporalidade do ser.
Joana Consiglieri
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