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NIKOLAI NEKHMUSEU DE GENTRIFICAÇÃOBALCONY RUA CORONEL BENTO ROMA 12 A 22 SET - 02 DEZ 2023
Um museu numa galeria. A mais recente exposição de Nikolai Nekh em Portugal é uma nova iteração do seu Museu da Gentrificação, cujos capítulos anteriores se terão desdobrado em exposições como Surrender, Surrender, (também na Balcony Gallery sob a curadoria de João Silvério, em 2021), ou Três Cartazes Para o Museu da Gentrificação (na Mupi Gallery no Porto, em 2020). À iconografia de objetos do lar que resgatou nesta sequência de exposições – escovas de dentes agigantadas, estrados de cama reformulados – juntam-se, agora, os cabides de pé, ainda hoje conhecidos sob a designação (racista, como aponta a folha de sala, e ilustra o título da série) de criados-mudos. Residem neste white cube da Balcony, dispersos, deslocados do seu uso quotidiano. Apesar de, aqui, não pendurarem roupa, temos um conhecimento prévio dessa sua função – e, ao nos recordarmos da sua aplicação, observamos sempre o sintoma de quem chega a um lugar onde irá permanecer indeterminadamente. A roupa que se pousa é, assim, um fantasma, uma sombra, vestígio especular de uma ação sempre humana. É assim que, inversamente, no piso subterrâneo da exposição, vemos imagens de um casaco de cabedal, preso num suposto cabide de parede que nunca vemos – aos vincos negros, sempre plásticos da roupa, expõem-se simulações de ações humanas, como se conservadas nesta outra pele (sempre a pele, a superfície, neste Museu da Gentrificação), à beira de uma queda vertiginosa. Atente-se, aliás, nesse gesto de pendurar, e nos seus sentidos possíveis: não poderemos lê-la como um figurado para algo mais, numa cidade em plena crise de desalojamento? Já voltaremos às imagens. Por enquanto, são os cabides que olham as vidraças que permitem a cidade e ouvem, muito ao longe, o burburinho do fim de tarde. A madeira que os constitui está escondida, sob uma superfície polida, de cores artificiais, alegres, mas nunca naturais, que mascaram a sua constituição – são sorrisos amarelos, fingindo alegria na sua alienação. Nessa feliz apatia (a nossa, também, de visitantes observadores), apenas permitida pelo seu deslocamento no seio da galeria, reparamos nas diferenças que os constituem: as cabeças diferem, umas relativamente curvas, outras geometricamente regulares. De uma forma ou de outra, refletem-se em Utopia, tanto na ovalidade do “ovni” que é atirado por uma mão (signo para um objeto estranho, que este braço arremessou, sem pedir licença), como nas compridas traves que seguram essa imagem, como num quadro de sala de aula - declaradamente industriais, compráveis, num quase andaime que não esconde a marca da sua proveniência (a marca, sabemos, é Dexter, qual ready-made). Para além da já referida apropriação de objetos, formalmente é, sobretudo, nesta proeminência da linha que estabelecemos pontes, não só com os anteriores desenvolvimentos deste Museu da Gentrificação, mas também com o trabalho de Nikolai Nekh para lá dele: vem à tona a sua apetência para a bricolagem, a redefinição de objetos coletados, quer pela sua improvável conjugação, como pela simples desintegração funcional, como aqui acontece (consequência, mais uma vez, desta apropriação pós-Duchampiana em que trabalha), em recorrentes tensões, tantas vezes assumidas, com a geometrização da forma (a perfeição no banal, portanto). Na heterogeneidade das abordagens de Deep Water Drive (2018), Radiator (2016), ou até mesmo Navigators (2016), em comparação com estes Criados Mudos, persiste sempre a vontade de construir em altura, e de suportar essa verticalidade, procurando um assentar de pés – de forma mais, ou menos pronunciada, exibem-se como estruturas que vão jogando com uma noção de estabilidade, e que ousam apoiar outras. Talvez seja por isso que o tal casaco de Realtor em Queda Livre (título redefinido em novas conjugações em cada imagem da série, como Livre queda do realtor), se preocupe tanto com essa queda, e a sublinhe – aqui, para lá das formalidades, numa irónica troça das suscetibilidades do mercado imobiliário (sempre aparentemente esbelto, mas em constante risco de vertigem). Numa entrevista concedida em 2021, Nicolas Nekh terá dito que a sua ideia inicial para este Museu da Gentrificação seria constituir uma espécie de Museu Geológico, “no qual eram expostos os objetos despejados das casas em renovação.” Aceção curiosa, tendo em conta que o que vemos, aqui, é muito mais ambíguo: Nekh parece pouco preocupado com as supostas vivências dos objetos (ainda que procure, nos sentidos possíveis das suas funções ou etimologias, alguma marca histórica) mas está, sim, plenamente dedicado às suas máscaras, retirando-lhes propositadamente essa memória (adiciona a tinta tão feliz dos cabides) para os conduzir a uma perda de identidade, uma invisibilização - que estabelece, no fundo, a mesma consequência oferecida pelos processos de gentrificação. Como aponta Diogo Pinto na folha de sala, o trabalho de Nekh é obcecado pela superfície, e pelas suas implicações socioeconómicas – “mecanismos visuais concebidos para nos prender (à nossa atenção e dinheiro).” Nesse sentido, o objeto é relativamente secundário, a intenção vai “para além” dele – e quem diz superfície, diz a pele (o porquê do casaco), a máscara, a aparência. Talvez, a exposição até ouse cair demasiado nesse abismo: pelo gosto na codificação das pistas a um tema demasiado urgente ou, sendo mais cínico, pela ironia de se exibir numa galeria de nome anglófono, na cidade de Lisboa. Porém, assinale-se a transformação no gesto curatorial de Pinto, que nos habituara a uma aproximação, por vezes indistinguível, entre arte e curadoria, e que aqui se rende (afinal, esta é uma mostra individual, não coletiva) à visão de Nekh, procurando, apenas, a inserção de uma geografia concreta, a de Lisboa – aí sim, um paralelo, por exemplo, com a bela This is a Bar… Praia de Banhos, onde se centrara no Algarve, ainda que, aí, sob a vontade de uma experiência imersiva e sempre possível. Como indiciam os andaimes, as obras ainda não terminaram. Neste piso falta-nos Celebration, quase oclusa à esquerda de Utopia, camuflada entre os computadores, os livros, e a galerista que nos recebeu – o “ambiente” propriamente dito da galeria – mostrando-nos uma aguarela de um monumento que se aparenta futurista (as referências à Expo 98 e ao Euro 2004 na folha de sala, e o suposto entusiasmo que se desencadearam à altura, parece pertinente para o entendimento formal desta obra, conscientemente presa àquela utopia kitsch dos noughties), onde uma figura se circunda por uma onda de moedas – o capitalismo como a bela força motriz, comicamente enquadrada no local onde se desenvolve a atividade diária da galeria. Ao piso subterrâneo, somos acompanhados pelo mais mudo dos criados, branco, sob as paredes também brancas – o único que não esconde a sua morte. Ao descermos, igual mudez – um primeiro espaço aparentemente vazio. Se virarmos à direita, deparamo-nos com uma escultura no chão, baixinha, que grita GREAT. No ângulo oposto, lemos DEAL. A obra é uma maquete de um edifício modernista: um novo empreendimento para construção que (não se esqueçamos que é hábito de Nekh querer ir para além do objeto) se traduz numa excelente oportunidade de negócio. O amarelo que se sequencia ao branco é a única cor que veremos neste piso – e, mesmo assim, parece doente, passível de se camuflar entre toda a higienização. A exceção cromática, além desta, estará nas molduras da série de imagens do Realtor (que anunciam o corredor), mas estas são os meios, não os fins - dispositivos externos, que não participam na “ação”. Para além do que já fora dito até sobre esta série, evoque-se ainda o estatuto das imagens fotográficas na obra de Nekh – parecem sempre mais reais, sinceras, do que as esculturas, sempre sob um cinismo apático. Estabelecem-se, quase, como a catarse, uma revelação à máscara dos objetos – tornam visíveis os sinais subjacentes à invisibilização que procuram (porque, apesar da esplendorosa vaidade dos Great Deals, o casaco imobiliário estará sempre dependente da gravidade; também na lacagem dos criados-mudos tão aparentemente inofensivos, poderíamos esquecer o contexto de produção desse estranho ovni - imposto, quer por uma desesperada economia de consumo, como por um violento passado colonial). Restam as roldanas sob as paredes falsas deste subterrâneo (assemelham-se até às caixas de relógios desportivos, com os seus inúmeros círculos interiores – o tempo está contado), cada uma com um nome de rua de Lisboa que, nos últimos anos, terá sido alvo desta invisibilização – destaque-se a menção à Rua Poço dos Negros, hoje uma área “trendy”, que esconde a sua história enquanto local, outrora, de abandono dos corpos de escravos mortos. Estas roldanas são, portanto, a engrenagem que faz mover este processo de dissociação, e que num frente a frente aos corpos, os fazem cair verticalmente no precipício (como quase diria Cesariny). A última obra é uma pinha enquanto fruto morto, encimada por um aquário de vidro – muito semelhante aos que terão habitado Navigators de 2016. Está pintada de cinzento, impossibilitando qualquer rasgo de vida, congelada à frieza do vácuo. O título é ilustrativo: A home where dozens of pine nuts can live rent free. Nem que fosse isso.
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