WIM WENDERS
ANSELM - O SOM DO TEMPO
CINEMAS PORTUGUESES
04 JAN - 15 JAN 2024
Nesta cidade falta-nos tempo. E eu, como de costume, já me tinha atrasado outra vez.
Na rua os turistas andam demasiado devagar. É fácil reconhecer um lisboeta pela maneira como ziguezagueia por entre as pessoas a grande velocidade. Não ia conseguir. Apanhei um táxi para o cinema Nimas, quero desesperadamente ver Anselm – O som do Tempo, o filme de Wim Wenders sobre o famoso artista visual Anselm Kiefer.
O trânsito infernal de Lisboa parecia ter outros planos. Foi no meio deste trânsito que vi um anjo. Sim. Um anjo. Um anjo no banco de trás de outro carro. Não percebi se era um menino ou uma menina, não é assim que é suposto serem os anjos? Aparentava ter 6 ou 7 anos. Eu, tinha desviado o olhar do telemóvel e agora observava aqueles cabelos encaracolados loiros, as asinhas brancas, a mãozinha a acenar para mim através da janela do automóvel. Não acenei de volta. Desviei os olhos de novo para o telemóvel, suspirei, perguntei ao motorista se não conseguia ir mais depressa.
Depois deste episódio, senti-me um verdadeiro lisboeta. Para os lisboetas nada é bom o suficiente. Gostaste do filme? “Não foi nada mau” é assim que os lisboetas dizem que gostaram de alguma coisa.
Para uns, Lisboa é a realização de um sonho pessoal, a possibilidade de se sentirem vivos numa cidade vibrante onde todos os dias brilha o sol, um café numa esplanada inusitada, um cigarro num rooftop com uma vista inebriante, um copo de vinho num pátio pitoresco coberto de flores, a beleza dos prazeres simples. Para os Lisboetas tudo isto se resume a: “Vai-se andando”.
Já na sala de cinema coloco os óculos 3D. As imagens surgem na tela da sala escura, expandem-se pela escuridão e chegam até à superfície dos meus óculos 3D. Fica bem claro que Wenders quer que mergulhemos neste filme. Vemos os raios de sol a iluminarem em “Les Femmes Martyres,” um trabalho de Kiefer presente na La Riboute (O estúdio/museu de Anselm Kiefer em França, anteriormente uma fábrica têxtil).
Wenders convida-nos a entrar no mundo de Kiefer. Faz-nos viajar por paisagens tridimensionais pejadas pelas obras do artista. Tudo parece estar no sítio certo. Ou caminhar nessa direcção. Vemos um plano geral do enorme estúdio de Anselm. As suas telas gigantescas sobre rodas. Como num passo de magia, Anselm empurra a tela, fazendo-a atravessar o longo armazém e estacionar perfeitamente no seu lugar, junto a outras telas. Tudo parece estar no sítio certo.
Wim não parece ter vontade de nos explicar quem é Anselm Kiefer. Parece ter mais vontade em recriar a vida do artista através do seu olhar cinematográfico. Mas, mesmo assim, lá o faz. Talvez um pouco contrariado, talvez sentindo a urgência de nos fazer compreender a importância do trabalho de Kiefer, divide a vida do artista por períodos temporais, salientando o mais importante... Talvez não o mais importante, mas de certo os temas que lhe são mais caros: As questões do nazismo, do mito, da história da Alemanha e da Europa.
Vemos chumbo derretido derramado sobre telas. Nas palavras de Kiefer: “O chumbo é importante para o alquimista, que queria transformar chumbo em ouro.” É verdade que ele consegue transformar chumbo em ouro, mas também é verdade que, para um artista nascido no final da segunda guerra mundial, chumbo também é sinónimo de balas, de armas, de destruição.
Em Cannes, a propósito do lançamento de Anselm – O som do tempo, quando perguntaram a Wenders porque gostava de fazer filmes sobre outros artistas, ele respondeu: “Que artistas? O papa? Esse grande artista” depois riu e respondeu seriamente: “Não há muitas aventuras disponíveis neste planeta, onde quer que vás, alguém já esteve lá e já fez um filme sobre isso. Mas a mente humana, essa é a grande aventura, e os artistas são das pessoas mais aventureiras do planeta.”
Wenders aventura-se a filmar algo para além da narrativa meramente expositiva. Wenders filma Kiefer divagando por “Seven Heavenly Palaces”. Senti-me a entrar num universo Tarkowskiano. Enquanto observava estes planos, não consegui deixar de pensar em Stalker (1979). Fico tentado a estabelecer uma equação: Ansel Kiefer + Wim Wenders = Andrei Tarkovsky. Este pensamento faz-me soltar uma pequena gargalhada. Como se a arte pudesse ser analisada por funções matemáticas.
Não sei se estarei a fazer um grande spoiler se vos contar o final do filme. Talvez já o tenham visto num cartaz ou nas redes sociais. Vemos Anselm junto a “Ra,” uma escultura de grandes dimensões representando assas e uma serpente, um trabalho que nos faz lembrar “Uraeus”, junto do Rockefeller Center em NYC, obra que consiste num gigantesco livro aberto com asas de 9 metros, ambos feitos de chumbo. Essa imagem do cartaz, que é também o último plano do filme, fez-me lembrar o pequeno anjo que vi no trânsito antes da sessão. Fez-me lembrar que “Início” e “Fim” são a mesma coisa. Mito e história, realidade e fantasia, divino e profano. Tudo a mesma coisa. E mesmo que não sejam, nenhuma destas coisas pode existir sem a outra. Aquelas asas em direcção ao céu...
Será spoiler descrever o último plano do filme? Ou será mais importante perceber o que nos leva até lá? Para realmente se poder descodificar este enigma... é preciso ver o filme.
A chuva que cai miudinha à saída do Nimas, os guarda-chuvas e os olhares cinzentos fizeram-me lembrar como hoje me sinto um lisboeta perfeito. Amo Wim Wenders, amo Anselm Kiefer, mas de alguma forma isso não me chegou. Tinha demasiadas expectativas, demasiada adoração por tão grandes mestres. Acho que eram mesmo demasiado grandes as minhas espectativas, tão grandes que roçavam o infinito. Tenho a sensação que qualquer filme que eu assistisse ficaria aquém das espectativas que criei.
Que filme poderia tê-las alcançado? É fácil saber a resposta: Nenhum.
Não se pode contar a história de uma vida em horas, nem em dias. Talvez nem em meses ou anos. E se é verdade que um filme não pode conter toda essa realidade, também é verdade que é apenas este filme de alguns minutos que assistimos.
Há dias em que para nós nada é bom o suficiente. E por isso é que temos que passar a apreciar as coisas por aquilo que são, não por aquilo que podiam ser.
Os filmes são: um café numa esplanada inusitada, um cigarro num rooftop, um copo de vinho num pátio pitoresco. Para uns, estes pequenos prazeres são o sentido da vida. Para outros, uma pequena gota de água neste copo a transbordar de cultura a que chamamos Lisboa.
Sabemos que a seguir à chuva virá o sol, depois da tempestade virá a bonança. O mundo estará em constante mudança e, chamar-nos-á para navegar em oceanos desconhecidos todos os dias.
De qualquer das formas, uma sala de cinema será sempre um porto seguro para todos os aventureiros que sonham descobrir algo de novo.
Richard Laurent
Nasceu em Santa Mónica, Califórnia. Formou-se pela USC School of Cinematic Arts (Los Angels-EUA), mestre em antropologia (Culturas Visuais) pela NOVA FCSH (Lisboa – Portugal), actualmente vive em Lisboa.
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