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MARIA DURÃOEVASKUBIKGALLERY Rua da Restauração, 2 4050-499 Porto 01 MAR - 27 ABR 2024
Numa poetização visual, a câmara fecha o plano num bloco de pedra que é utilizado para prensar os livros encharcados, permitindo que a água deles flua. Carregados para o exterior da igreja, pelos religiosos e uma criança, são dispostos em pilhas cambaleantes. O menino carrega um livro enquanto sobe, com esforço, uma escada de madeira até o topo do edifício. Do resto encarrega-se o vento que sonoriza a sabedoria e coreografa a liberdade no encontro com as folhas dos livros que dispostos abertos, como asas, forram o telhado. O menino, lá no meio deitado de braços abertos, surge complacente com esse fulgor musicado da liberdade, e comprometido com o seu destino. Esta sequência de cenas pertence ao filme “A cor da Romã” (1969), um poema-visual de Sergei Parajanov, inspirado na vida e obra do poeta arménio Sayat-Nova, cujo narrador a certa altura profere: “Um livro deve ser valorizado e amado, pois um livro é vida e alma. Se não houvesse palavra escrita, os ignorantes governariam o mundo. Leia um livro em voz alta para que todos possam ouvir, pois nem todos sabem ler.”
Os livros são as mordaças da ignorância. A vulcanização de ideias que deles brota, na sua parafernália, é muitas vezes indutora do questionamento. E é pela interrogação que se congemina a mudança e que não se permite desbotar as cores da liberdade de expressão. Sendo isso, a antítese da vilania ideológica das autocracias e do sistema patriarcal. Refere Irene Vallejo, no seu livro “O infinito num junco” (2020), que:
“A palavra escrita foi tenazmente perseguida ao longo dos séculos, e são mais depressa estranhos os tempos de paz nos quais as livrarias só têm visitantes calmos, que não hasteiam bandeiras, nem agitam dedos fiscalizadores, nem partem montras, nem acendem fogueiras, nem se abandonam à atávica paixão de proibir” (p. 316).
Dos livros, praticamente descarnados do seu conteúdo pela mão artística, sobram as capas que, nos seus anversos e reversos, forram uma parede virada para a montra envidraçada da galeria. Este mosaico de exoesqueletos, estruturado em diferentes cores e texturas, revela e poetiza as marcas da passagem do tempo presentes na oxidação, no desbotamento da cor e na sujidade; e da ação humana, nas folhas rasgadas, nos vincos de manuseamento e nas palavras escritas à mão.
Vista da exposição Evas, de Maria Durão, Kubikgallery. © Kubikgallery
No interior da galeria, em duas pequenas salas contíguas, folhas e algumas capas de livros, em composições únicas e diferenciadas, surgem emolduradas nas paredes e em vitrines expositivas envidraçadas. Arredadas do toque, as obras são, desta forma, preservadas devido à fragilidade e perecibilidade das matérias que as compõem. Em combinações múltiplas e irrepetíveis, apresentam uma sinceridade plástica do aspeto manual do corte e recorte de folhas, em formas e dimensões diversas, suprimindo a ideia de harmonização das partes que estruturam o todo. Entre a variedade de composições é possível, igualmente, encontrar camadas de folhas, despojadas ou com palavras, matérias empastadas que formam protuberâncias e rugosidades, pedaços de fita cola e restos de lombadas, assim como porções de papéis coloridos de vermelho, azul ou verde que rompem a monotonia dos tons terrosos de folhas oxidadas. A artista convoca técnicas, práticas e formulações criativas das vanguardas artísticas do século XX, como a collage, termo francês que deriva de papiers collés (ou découpage), que designa a colagem de recortes de papel, e outros mediums, em superfícies variadas. Do Nouveaux Réalism, movimento artístico francês fundado na década de 60 por Pierre Restany, subtrai o ato performático da transformação do objeto que pode ocorrer através do rasgar (décollage) e da acumulação de camadas de matéria. Projetando a noção do ato criativo e da consciência e relação, do observador, com o objeto. A intervenção em objetos banais e quotidianos, como os livros, descontextualizando a sua funcionalidade através de uma composição escultórica, permite o trajeto da aparência para o conceito, que a Arte Conceptual afirmou e que o ready-made, de Marcel Duchamp, alavancou. Não parece a artista pretender, contudo, uma prática encarcerada no prefixo de “neo”, que sustenta o revivalismo. A dinâmica empregue de desconstrução e (re)construção, através do corte, da colagem e da reorganização e emparelhamento de matérias, revela um ativismo que espelha essas “experiências de resiliência que, ao longo da história, persistem como feridas abertas na sociedade contemporânea” [1], no que respeita ao acesso sonegado e retalhado das mulheres, aos estudos, conhecimentos e autonomia. Maria Durão ressignifica esses artefactos como símbolos de oposição à visão e ação padronizadas e castradoras do falocentrismo. E recorda-nos da inquietação da sua atualidade. Pelo que, o plural empregue em “Evas” na designação da exposição, e sendo Eva, na tradição judaico-cristã, o símbolo feminino do arquétipo inicial de submissão e rebelião, posiciona todas as mulheres, independentemente da época histórica, nesta luta e resiliência pela igualdade de direitos. Como indica a curadora da exposição, cada obra de Maria Durão leva impregnada, simultaneamente, “vestígios de um passado repleto de restrições e de um presente expectante.” [2] Lastimavelmente, os exemplos de meninas e mulheres que são proibidas de usufruir de direitos humanos básicos, como o acesso à educação, não são parcos. Em 2021, no Afeganistão, o regime Talibã impôs a proibição de alunas frequentarem escolas e universidades. A Organização das Nações Unidas (ONU) lançou a campanha “Vozes das meninas Afegãs”, para consciencializar a comunidade internacional para o problema, e tentar que sejam providenciados recursos com vista à divulgação de conteúdos escolares, via online ou por transmissão de rádio. [3] Multiplicam-se as histórias de “escolas subterrâneas”, nas quais mulheres ensinam outras. São as vozes que não se calam. E que a arte, pelos seus meios, projeta para que não esqueçamos. Por isso, talvez todas estas meninas e mulheres habitem, metaforicamente, na sombra projetada do amontoado de livros que, dispostos sobre uma mesa, compõem a instalação que remata a exposição. Pois mesmo privadas de liberdade e direitos, são resilientes em quererem assimilar, todos esses mundos e ensinamentos que moram nos livros.
Sandra Silva
Notas [1] Carmo, V. (2024). Evas, por Maria Durão.
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