|
OS CORVOS OLHAM-NOS![]() ALBERTO MORENO2015-05-13![]() Um corvo dá-nos as boas vindas dentro de uma jaula. O fetiche é deliberado e o símbolo (é um corvo decorativo de plástico e penas de veludo preto) voa por Lisboa durante 10 dias reivindicativos, de Cinema, de 25 de Abril a 1 de Maio. Isso sim, olha-nos detalhadamente, como ameaçando a órbita dos nossos olhos. Não houve animal vivo na terra que melhor tenha sabido transmitir o suspense, elemento essencial da continuidade narrativa no Cinema. O Indie Lisboa, abriu mais um ano as suas asas e ofereceu-nos uma boa e coerente selecção de filmes. O festival elaborou uma lista variada, onde os filmes com mais orçamento, que normalmente costumam ser os filmes norte americanos, coexistem com filmes com menos recursos, mas de talento e que reivindicam, mais uma vez, o bom critério da equipa de selecção durante estes 12 anos, igualando na balança a desigual liga de produções (dentro do independente há filmes com bastante orçamento). O evidente olhar sobre o panorama nacional destacou muito poucas produções durante estes anos. Nesta edição competiam apenas quatro filmes: Gipsofila (Margarita Leitão, 2015), uma longa metragem mínima sobre a memória e a correia de transmissão da vida de uma avó à sua neta (a própria realizadora), A toca do Lobo (Catarina Mourão, 2015), Uma rapariga da sua idade (Márcio Laranjeira, 2014) e Os olhos de André de António Borges Correia, o filme premiado com o prémio de melhor longa metragem portuguesa, um filme sobre o amadurecimento de um adolescente jovem e os avatares de uma família que perde a custódia de um dos seus filhos. Um trato arriscado com os actores, que são as próprias pessoas que viveram essa situação, num formato de ficção documental. O filme aprofunda os sentimentos e a forma como actuamos por causa deles. Sob este olhar atento, de suporte à produção nacional, o festival apoiou um projecto de longa metragem intitulado Aqui em Lisboa (2015), um filme codirigido pelo realizador canadiano Denís Coté, a chilena Dominga Sotomayor, Miguel Abrantes e a realizadora francesa Marie Losier. Todos eles realizadores premiados em anteriores edições. Fora de competição, o filme Capitão Falcão (2015) de João Leitão, uma comédia de género, clássica nas manobras industriais do Cinema. Esperava-se a obra de Abrantes, que como bom enfant terrible libertou toda a sua precisão cómica e estranha habilidade, puro talento, para elaborar um filme com vários filmes, formatos e histórias hilariantes. Uma das suas melhores armas, a meu ver, é a utilização da atmosfera dos espaços e a habilidade para compaginar presente, passado e o seu contraste, gerando em muitas ocasiões um espaço atemporal. Também de mencionar os seus tempos cinematográficos e a sua enorme criatividade para relacionar tudo, qualquer tipo de objecto ou animal (neste caso calhou a um rodovalho), dotando tudo o que faz de um genial surrealismo. O festival projectou algumas das obras que mais circularam no ano passado e neste ano, e revelou novas, como o caso do vencedor Aferim (2015) de Radu Jude, que já nos surpreendera com Toata lumea din família noastra (2012), o magnífico filme do realizador romeno, um olhar sob o manto de um cinema naturalista, clássico, mas de um grande humor negro em relação aos nossos papéis quotidianos. Um olhar absurdo, caótico, do que fazemos: casais, filhos, divórcios, trabalho... em Todo o mundo na nossa família. Aferim é um filme ambicioso e de conteúdo histórico, coproduzido pela Roménia, Bulgária e República Checa. Percorre, desde uma narrativa linear, homérica, as desventuras de dois miseráveis funcionários ou caçadores de foragidos (não chegamos a saber muito bem se são responsáveis da lei, polícias da época, durante o século XIX), que põe em evidência o absurdo, a cretinice e finalmente a barbárie, num clima cómico que acaba em drama. Radu Jude, de novo, faz finca-pé no humor, mas partindo do pior do género humano. Sobretudo a enorme estupidez de viver sem critério, de fazer o que se tem que fazer num sistema de loucos e como, de certo modo, o mundo se desenvolve desta maneira. Os que têm o poder e os cretinos que vivem das migalhas que lhes dão e das ordens que cumprem sem se perguntar o que fazem. O filme responde à narrativa clássica do western, das personagens em busca do foragido, mas em vez de míticos são, neste caso, patéticos, enganados por todos e no seu afã de profissionalismo, massacrados pela infâmia... Também, de certo modo, ambos os filmes do realizador romeno reflectem um olhar fatalista em direcção a essa sociedade e à sua História, a dos povos banhados pelo mar negro. Pouco a pouco dirigimo-nos ao filme mais mínimo, por entidade e talvez por orçamento, um filme repleto, do meu ponto de vista, de inteligência vital, sentido e sensibilidade, o do brasileiro André Novais Oliveira, Ela volta na quinta (2014), um filme muito afastado dos filmes norte americanos Christmas Again ( Charles Pocket, 2014), e claro, o polo oposto de Listen up Philip (Alex Ross Perry, 2014). Filmes maravilhosos, bons trabalhos, mas com elementos artificiais que se afastam em muitas ocasiões da vida quotidiana. Sobretudo em Listen up Philip. Todo o contrário de Ela volta na quinta, filme do quotidiano e da vida sem encobrimentos, que reflecte a sabedoria de viver, de entender em si a vida como ela é, sem romantismos nem artifícios, mas com amor verdadeiro e entendimento pelas fases da vida. O cinema do Brasil, desde que Glauber Rocha o encaminhara em direcção a uma poética da realidade (“os cinemas da fome”), deixou uma máxima ideológica: um país pobre devia fazer um cinema pobre e que exigisse uma visão crítica e clara, sem véus, da realidade, como um manual de aprendizagem dos sofrimentos e ânsias do povo e da gente. André Novais conhece a realidade, e o seu filme está cheio de sabedoria e respeito por ela. Por último, passei magníficos momentos com dois filmes que, creio, não devemos deixar passar ao lado. Ming of Harlem (Phillip Warnell 2014), um filme que consegue de forma poética transmitir conceitos filosóficos sobre a existência e o sentir dos seres humanos desde o entendimento dos animais; e outro, perfeito canto à vida, atravessando Paris em bicicleta, Quan je ne dors pas (Tony Weber, 2014).
Alberto Moreno |