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OPINIÃO


Vista da exposição, antes da abertura ao pĂșblico. © Rijksmuseum / Henk Wildschut


Vista da exposição. © Rijksmuseum/Henk Wildschut


Vista da exposição. © Rijksmuseum/Henk Wildschut


Vista da exposição. © Rijksmuseum/Kelly Schenk


Rapariga a escrever, Johannes Vermeer, 1664-67. Óleo sobre tela. National Gallery of Art, Washington.


Mulher de azul lendo uma carta, Johannes Vermeer, 1662-64. Óleo sobre tela. Rijksmuseum, Amsterdam. (emprĂ©stimo da Cidade de AmsterdĂŁo)


Rapariga com brinco de pĂ©rola, 1664–67. Óleo sobre tela. Mauritshuis, The Hague.


Rapariga com colar de pĂ©rolas, Johannes Vermeer, c. 1662-64. Óleo sobre tela. Staatliche Museen zu Berlin – GemĂ€ldegalerie


Mulher com uma balança, Johannes Vermeer, c. 1662-64. Óleo sobre tela. National Gallery of Art, Washington, Widener Collection

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AQUELA LUZ QUE VEM DA HOLANDA



ELISA MELONI

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Ter tido o privilégio de visitar a exposição dedicada a Johannes Vermeer (1632-1675) que decorreu no Rijksmuseum de Amsterdão - talvez apressadamente definida como a exposição do século - induz o observador comum a anotar as impressões e os pensamentos que dela surgiram.

Certamente a enorme afluência de público, pela grande divulgação dada ao evento, não ajuda inicialmente o visitante ávido por mergulhar nas atmosferas subtis do pintor. No entanto, se ele fizer um esforço e se isolar da multidão pode partir para uma viagem que só a visão direta das obras permite.

No reduzido número de obras presentes, surgem aos nossos olhos todas as pinturas que retratam o local amado onde Vermeer nasceu e viveu – a cidade de Delft – bem como os entes queridos, muito provavelmente a sua esposa e uma ou mais das suas filhas.

Paciência, se no jogo de atribuições mais ou menos certas, mesmo as pinturas assinadas – e sobretudo de temática religiosa – parecem ser obra de outro pintor. Só vendo o brilho tranquilo das águas de Uma Vista de Delft (c.1660–1663) e a sua transparência se percebe porque razão o quadro foi definido por Marcel Proust como “a pintura mais bela do mundo”.

 

Vista de Delft, Johannes Vermeer, 1660-61. Óleo sobre tela. Mauritshuis, The Hague.

 

Em seguida, passamos a admirar as figuras que animam os interiores. A presença simultânea de tantas obras em que as figuras femininas se sucedem umas às outras, leva a que elaboremos uma hipótese que um crítico não ouse formular, nomeadamente a de que a mulher grávida que vemos é sempre a sua mulher Catarina e a menina mais nova é uma das suas filhas.

O facto de a esposa de Vermeer estar quase sempre grávida não é surpreendente, visto que em pouco mais de vinte anos de casamento os dois tiveram catorze filhos. A filha mais nova é muito parecida com uma outra figura feminina, no que aparenta ser o mesmo interior. Poderá ser a filha mais velha, Maria, cujo nome conhecemos, e é o mesmo da sua avó Maria Thins?

A terceira mulher que se destaca é a figura de A Leiteira (c. 1658-1661), talvez a empregada da casa dos Vermeer, não menos deslumbrante do que as outras, principalmente depois do recente restauro.

 

A Leiteira, Johannes Vermeer, 1658-59. Óleo sobre tela. Rijksmuseum, Amsterdam.

 

Afigura-se, também, provável que os títulos, todos atribuídos a posteriori, sejam fruto de uma ideia oitocentista e romântica dos papéis que cada uma desempenha: é por isso que Rapariga com brinco de pérola (c.1665-1667), pintura pertencente ao Museu Mauritshuis em Haia é descrita como exótica: “Não é um retrato, mas um ‘tronie’ – uma figura imaginária. ‘Tronies’ retratam um certo tipo ou personagem; neste caso uma jovem de vestido exótico, usando um turbante oriental e uma pérola na orelha de tamanho improvável”.

“Tronie”, segundo a definição, são rostos característicos da pintura de género, tipologia semelhante às cabeças grotescas de Leonardo da Vinci, um tema da excelente e original exposição “De Visi Mostruosi e Caricature. Da Leonardo da Vinci a Bacon” (Palazzo Loredan, Fondazione Giancarlo Ligabue) que terminou recentemente em Veneza. Ao meditarmos nessa referência, como aceitar então Rapariga com brinco de pérola como um “tronie”, quando o seu rosto parece tão familiar e a jaqueta amarela semelhante a outras pinturas de Vermeer? E, ainda, quando o “turbante exótico” se aparenta a um modo de usar as cortinas de seda que abundavam naquela Idade de Ouro do comércio holandês? 

A mesma pérola, “improvavelmente grande”, também pode ser vista pendurada na orelha da Mulher com colar de pérolas (c. 1663/64) havendo uma profusão de pérolas em torno do seu pescoço e dentro da casa, como na pintura Mulher com uma balança (c. 1663/64) (que na verdade segura uma balança na mão onde não há pérolas). Mas, quem sabe, talvez esteja a ser usada para pesar ouro pois há moedas de ouro sobre a mesa (Schütz, [2015], 2021, 354). Esta mulher visivelmente grávida é provavelmente a mesma Catarina.

A presença neste último quadro de uma pintura que representa o Juízo Final levou muitos estudiosos a pensar que as pérolas aludem a uma Vanitas e que a obra está carregada de referências religiosas. Mas será porventura mais intrigante considerá-la parte do grupo das “pinturas de pérolas”, como as designou o crítico Lawrence Gowing (Vermeer, [1952], 1970), quadros unidos pela mesma atitude recolhida e pensativa das mulheres retratadas.

Tentemos então encontrar um elo entre as interpretações possíveis, e imaginemos que Mulher com uma balança está a meditar sobre o equilíbrio a manter entre a fé, a vida eterna (o Juízo Final) e os efémeros bens materiais. Se continuarmos no assunto da riqueza, o uso do caríssimo ultramarino, uma cor feita de lápis-lazúli, poderia explicar-se pela presença de outra mulher que morava na mesma casa, ou melhor, em cuja casa morava toda a família Vermeer – a sogra Maria Thins. Sabe-se que ela pertencia a uma rica família católica e os sinais de riqueza são evidentes nos casacos de pele, quiçá de arminho, nos tapetes orientais, nas pinturas das paredes, na profusão de pérolas... Podemos supor que negociasse pérolas, visto que a época é de comércio colonial com a Ásia, ou, quem sabe, talvez Maria vendesse ocasionalmente uma das pérolas de família para financiar o genro. Também é provável que as pérolas dos brincos fossem de vidro e tivessem vindo de Veneza, onde ainda hoje são produzidas da mesma forma.

Estas suposições não deixam, porém, de mostrar algumas evidências: as mulheres da família sabem ler e escrever e também brincar. São, portanto, mulheres cultas e elegantes, e provavelmente objetos de orgulho e amor por parte do autor das pinturas. Nessas imagens de Vermeer parece emergir uma tranquila felicidade doméstica, feita de harmonia de interiores e atenção exclusiva aos afetos. Estes interiores com grandes janelas envidraçadas que procuram o mais possível captar a luz, são os interiores onde se movem as suas dilectas figuras. Espaços amados e imersos num jogo de luzes, em sombras e reflexos e distantes do observador, parecem estar sempre presentes na alma do artista. A luz que os banha é uma luz especial, existindo apenas num mundo feito de água, translucidez e reflexos esverdeados como na paisagem polder, rica em verde das plantas à beira d'água. Conhecer esse espaço geográfico permite-nos entender o lugar metafísico onde vivem as amadas mulheres de Vermeer.

 


Elisa Meloni
Licenciada em medicina e cirurgia e também ensaista.

 

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Bibliografia

Gowing, Lawrence, Vermeer, London [1952], 2ª ed. London, New York, 1970
Schütz, Karl, Vermeer, the Complete Works, Köln: Taschen, [2015], 2021.