|
O INFINITO PROBLEMA DO GOSTO![]() SHAHEEN MERALI2010-10-13![]() Assim que entramos na recepção do edifício do antigo Museu da Humanidade, hoje transformado na Galeria Haunch of Venison, somos imediatamente confrontados com uma encruzilhada destinada aos astutos de espírito e passada célere. Um pouco mais à frente, encontramos a grandiosa balaustrada que percorre a escadaria de pedra rosada e, mais adiante, olhando-nos do alto com um certo desdém, está uma estátua inspirada na tradição clássica, em silêncio e, é claro, seminua, olhando para baixo com as suas vestes pendentes e segurando de forma precária uma série de vasos gregos. Vasconcelos envolveu esta figura sem brilho com um material reticulado que ao longe parece desenhar um alvo na cabeça e outro no coração. Uma observação mais atenta revela que os círculos concêntricos são elaborados em croché, feito à mão, que começa na zona das virilhas e termina junto à aorta, do lado esquerdo – é uma espécie de viagem espiritual materializada, que pressentimos ser uma espécie de cruzamento entre um tratado de espiritismo e um diagrama biológico. O conjunto de modelos clássicos (re)vestidos a croché por Vasconcelos inclui as obras “Guinvere”, “Morgana”, “Perpetua” e “Juliet” (todas realizadas em 2010), sobre as quais a superfície de croché cria um(outro) padrão sobre uma figuração tradicional explícita. Estas figuras desamparadas que no século XXI perderam o seu estatuto mitológico fazem parte de um património preservado, e podem ainda ser encontradas num vasto número de locais que, sendo congéneres de museus, cumprem a função de santuários. A pele em croché – sinuoso e erótico adereço carnavalesco – permite-nos compreender a superficialidade destas peças produzidas em série – como mobiliário/adorno de jardim de casas senhoriais, elas acabam por fornecer uma desejada nota extra de gosto ao estilo clássico a que os seus proprietários desejam aceder. Com estas obras, Joana Vasconcelos aborda as questões de gosto e de classe, e acaba por mitigar de forma interessante a noção de gosto que ainda prevalece como mecanismo instaurador de uma certa aura de grandeza e sensação de autoridade – em grande medida as razões pelas quais a Haunch of Venison se instalou no que foi outrora um museu na zona antiga de Londres. É esta importante abordagem de um sentido de totalidade e de exploração da especificidade do local que eleva o trabalho de Vasconcelos a um patamar que deve ser entendido como uma crítica e não como mais um mero conjunto de obras que acaba, apenas, por sublinhar de forma ornamental o poder do mercado. Isto mesmo quando relacionamos o seu trabalho com o espanto e com o acolhimento que o público devotou ao seu impressionante “A Noiva” / “The Bride”, lustre de cinco metros de altura executado com 14 mil tampões, apresentado em 2007 na New Art Gallery em Walsall. Creio que Vasconcelos operou uma envolvência subversiva quer da imponência do edifício da galeria Haunch of Venison quer do objectivo desta última de conquistar o mundo comercial da arte ao inserir as suas obras no contexto das características específicas da galeria e na forma como a mesma se posiciona no mundo da arte. Vasconcelos torna esta superficialidade mais vívida e mais evidente ao seleccionar e colocar as suas obras em diálogo conflituante com a realidade que as envolve. A obra “Una Dirección” / “One Way” (2003) – conjunto de varas de aço inoxidável ligadas por cabelos sintéticos entrançados e de várias cores desvanecidas – é tributária de uma tendência cultural que, embora sendo contemporânea, será, esperançosamente, passageira. Esta obra obstrutiva, colocada perto da área de recepção da galeria, sugere de forma implícita que nos encontramos na entrada de uma instituição cujo acesso é controlado por via do recurso a mecanismos impositivos que, dessa forma, asseguram que o poder é mantido. “Una Dirección” / “One Way” é mais do que uma referência subtil às fronteiras e limites que nos colocam numa situação de subserviência perante leis locais de acordo com as quais se operam transacções ou segundo as quais se opera a progressão no interior do seu território. As varas de aço interligadas guiam-nos, literalmente, através do espaço da entrada da Haunch of Venison, e exercem a sua influência sobre o ritmo altivo ou natural da nossa passada, desacelerando-o. Temos a sensação de pertencer a um grupo de imigrantes que está a ser monitorizado – e somos levados a procurar o nosso bilhete de identidade para o apresentar e assim podermos avançar. Mais do que nunca, o local transforma-se num templo da cultura da expansão e retracção. A sensação é a de termos chegado ao epítome das artes superiores e de nos encontrarmos, simultaneamente, no meio da mais intermediada fase da produção artística. Durante toda a exposição, Joana Vasconcelos mantém esta dupla visão traumática da nossa condição cultural, da nossa incessante e derradeira exigência – beleza a qualquer custo, humano ou ambiental. Ela fá-lo de forma arrojada ao transpor de forma obsessiva, para as suas obras, a nossa relação fútil com o gosto, com os valores e com a forma artificial como estamos a manipular o natural, bem como a forma como aumentamos o controlo sobre as massas através da imposição de uma situação de desvantagem, empregando estratégias que se fundam no preconceito baseado na classe social ou no género. Como símbolo máximo de prosperidade material a socialite Paris Hilton disse em certa ocasião que: “Todas as mulheres deveriam ter quatro animais de estimação nas suas vidas – Marta no guarda-vestidos, um jaguar na garagem, um tigre na cama e um burro que pague tudo isto.” (1). O discurso politizado de Vasconcelos emerge de um panorama histórico que abrange “The Dinner Table” de Judy Chicago e a obra “Story Quilts” de Faith Ringold na sua utilização e recurso ás práticas artesanais como modo de expressão intemporal que resulta numa obra artística que permanece para lá da expressão humana. É chegada a vez de Vasconcelos retornar a esta busca tal como o fizeram Chicago e Ringold nas suas pesquisas, em que destacavam precisamente a falta de investigação e reconhecimento institucional do feminismo. O croché, prática artesanal, que ela usa repetidamente para cobrir animais de faiança, pianos, ou figuras clássicas, tem óbvias conotações simbólicas com a expansão e subversão de uma nova estética e com reflexões que estão por concluir no que diz respeito às histórias de correntes estéticas que ainda são alvo de preconceito e continuam a ser definidas em função do sexo. A obra de Joana Vasconcelos atinge a sua intensidade maior na forma inteligente e perscrutadora como ela apresenta imagens e objectos naquilo que é a sua avaliação do papel desempenhado pela globalização protagonizada pelas grandes multinacionais. Os efeitos sobre o nosso gosto traduziram-se numa homogeneização e nivelamento do mesmo; os nossos hábitos e imaginação estão hoje mais uniformizados do que nunca pelo modo como se processa a utilização e distribuição da cultura popular. Actualmente, as nossas vidas quotidianas entrelaçam-se com os nossos desejos que estão, por sua vez, reféns das correntes em voga, as quais só raramente questionamos ou compreendemos. O nosso recente enamoramento por cupcakes ou por cães pequenos pode bem ser exemplo disto mesmo, e este desejo é patente tanto nas ruas do Rio de Janeiro como em Berlim. Tornámo-nos, de certa forma, parte de uma oferta que nos é imposta e se estende por todo o globo, suprindo a maior parte das nossas necessidades irracionais, e emergiu, deste modo, uma estética ligada a um modo de vida padronizado que se baseia numa imagem criada pelo meio empresarial. Usamos hoje as mesmas roupas e queremos, todos, as mesmas formas à medida que o nosso consumo urbano se transformou num tipo descompensado de propriedade frustrada ou numa constante falta daquilo… As quatro obras com que a exposição termina podem ser agregadas num conjunto que nos oferece uma reflexão visual sobre a forma hoje pensamos a nossa pertença através do modo como satisfazemos os nossos desejos. “Passerelle” (2005), “Esposas” (2005), “Sugar Baby” (2010) e o enorme “Garden Of Éden” (2010), derivam directamente de um planeta plástico, transbordante, hiper-consumista e de onde, na sua obsessão obesa, emergem as esculturas de Vasconcelos - objectos de escala e volumes hiperbolizados e lugares de desejo utópico. Os nossos defeitos são curiosa e radicalmente distribuídos por um conjunto de espaços imorais que põem em causa a nossa obsessão com a alimentação e com as dietas, a nossa necessidade compulsiva de praticar exercício físico e de transformar a natureza numa realidade rígida. Através destas obras compreendemos um pouco melhor como a nossa atitude irresponsável deu origem às divisões e à insaciabilidade que estão a matar o nosso planeta. O triunfo de Vasconcelos está em conseguir forçar, da forma mais sensual possível, a nossa compreensão de que a ideia que temos de progresso é absolutamente entrópica. Talvez tenhamos de aprender um certo distanciamento, uma vez essa separação pode fornecer o tão necessário entendimento sobre os nossos próprios comportamentos actuais que estão, de uma forma tão profunda, ligados à nossa fase mais destrutiva do planeta. De acordo com a cristã mística e filósofa, Simone Weil: “O apego é o grande criador de ilusões; a realidade só pode ser alcançada por alguém cuja atitude seja de distanciamento.” (2). A obra de Joana Vasconcelos constitui seguramente um óptimo ponto de partida para iniciarmos um processo de distanciamento relativamente aos nossos comportamentos mais desadequados. Shaheen Merali NOTAS (1) Paris Hilton, www.tinyurl.com/36vajr9 (2) Simone Weil, www.tinyurl.com/36k57fh THE INFINITE TROUBLE WITH TASTE As one enters the reception area of the former Museum of Mankind Museum, which now has become the Haunch of Venison Gallery one immediately faces a crossroad in the building, intended for the quick-minded and fast footed. Ahead one faces the grand balustrade that straddles the pink stoned staircase and, further ahead looking down upon us with some disdain, a statue of some classical tradition, subdued and of course half naked, gazing downwards with its draping locks precariously holding an accruement of Grecian pots. Vasconcelos has covered this lacklustre figure with a net material that, from a distance makes a target of the heart and head. On closer inspection, the concentric circles are of hand-made crochet that start from the groin region end near the left aorta- a sort of souls journey made physical, which starts to feel like a cross between a psychic treatise and a biological diagram. The series of classical models re-dressed in crochet by Vasconcelos includes Guinvere, Morgana, Perpetua and Juliet (all 2010); upon whom the crochet surface creates an(other) pattern on top of an already traditional patented portraiture. These forlorn figures which, in the twenty-first century have lost their mythological status, are still to be found as heritage in mostly untranslatable environments which act as sanctuaries alongside their sister museums. The crochet skin, like some meandering erotic carnival costume, allows us to understand the superficiality of this mass – produced pieces of garden furniture and stately home artifacts that further provide such a cache for those in need of classical taste. It is taste and class that Vasconcelos addresses in these works or, rather, she interestingly mitigates the notion of taste which still circulates to provide a veneer of grandeur and a sense of authority;- very much the reason why the Haunch of Venison has established itself in a former museum space in old London. It is this important exploration of a sense of totality and site-specificity by Vasconcelos that drives the work into a realm which should be understood as a critique rather than another set of works that embellishes the power of the market, even in comparison to the awe and response she received by the public for her remarkable five meter high chandelier made of 14,000 tampons, A Noiva / The Bride, at the New Art Gallery in Walsall in 2007. I would argue that Vasconcelos has subversively involved the grandeur of the Haunch of Venison gallery building, as well as its mission to conquer the commercial world of art, by embedding both the specifics of the gallery and the manner in which it has strategically placed itself in the world of art. Vasconcelos makes it more vivid, more evident as superficiality, through the selection and placing of her various works that comment so conflictually within its premises. The first series of works, Una Direccion / One Way (2003), is a series of steel poles, linked by braided synthetic hairs in differing, pale hues, secured from a contemporary but hopefully transient, cultural trend. This obstructive work, in the lobby of Haunch of Venisons’, by its front desk, suggests and openly implies an entry to a controlled institution that employs enforcing mechanisms to secure its power. Una Direccion / One Way is more than a subtle reference to the borders and boundaries that make us subservient to local laws for trade or to advance within its grounds. The interlinked, steel poles guide us literally through Haunch of Venisons’ lobby by slowing down our natural pace or swagger. We are made to feel like a group of surveyed immigrants – automatically reaching for our I.D. cards in order to proceed further. This, more than ever before, becomes a temple of boom and burst culture. One feels like one has arrived at the hierarchical epitome of the high arts and, simultaneously in midst of the most mediated state of art production. Vasconcelos perseveres throughout the exhibition in maintaining this traumatic double view of our culture condition, of our continuous and ultimate chant to demand beauty at whatever cost, human or environmental. She does this valiantly by obsessively negotiating our futile relationship to taste, values and the synthetic way we are manipulating the natural as well as the way we are further controlling the masses through disadvantage, by employing strategies that prejudice certain classes and gender. As the ultimate symbol of affluence, the socialite Paris Hilton once said “Every woman should have four pets in her life: «A mink in her closet, a jaguar in her garage, a tiger in her bed, and a jackass who pays for everything. (1). Vasconcelos politicised discourse grows out of a history that spans The Dinner Table by Judy Chicago and the Story Quilts by Faith Ringold, in her use of crafts as a timeless, obsessive work of art that has remained outside human expression. It is Vasconcelos’ turn to return to this demand like Chicago’s and Ringold’s feminists enquiries into its lack of institutional acknowledgement or research. Craft, like crochet, that she uses repetitively to cover ceramic animals, pianos or classical figures, symbolises obvious connotations of growth and subversion, of new aesthetics and unresolved demands on aesthetic histories which still remain biased and gendered. The further intensity of Vasconcelos’ work is in her intelligent and inquisitive nature in rendering images and objects to evaluate the role of corporate globalisation. The effects on our taste have somewhat become more flattened and homogeneous; our habits and imagination more uniform than ever before through the use and distribution of popular culture. Our mundane lives are now intertwined with our desires which are morbidly locked into fashionable trends which we too infrequently challenge or understand – an example might be our current love for cupcakes or small dogs – from the streets of Rio to Berlin, this craving is evident. Somehow we have become part of an enforced supply that now stretches all over the globe, supplying most of our irrational needs – a corporate, aesthetic living standard has emerged and we now wear the same clothes and want the same shape whilst our urban consumption has turned into an imbalance of frustrated ownership or the lack of it….the four final works in the exhibition can be grouped together, providing a visual consideration in the way we now think of how we belong through fulfilling our longing. Passerelle (2005), Exposas (2005), Sugar Baby (2010) and the immense Garden Of Eden (2010) come out of an overflowing, plastic planet, over-consuming and, in its obese obsession, an outstanding volume of scaled-up objects and places of utopic desire emerge in Vasconcelos sculptures. Our shortcomings are curiously and radically credited with a set of immoral spaces that contest our obsession with eating and dieting, our compulsive need to train and, make nature rigid and through these works, we start to further understand our recklessness, which has created the divisions and insatiability’s that are killing us and our planet. Vasconcelos’ triumph is in forcing us to understand that our idea of progress is absolute entropic in the most sensual possible way. Maybe we too have to learn to separate ourselves as this could provide the much needed knowledge of our ways which are now inextricably linked to the most destructive phase of our earth. As the Christian mystic and philosopher Simone Weil once said «Attachment is the great fabricator of illusions; reality can be attained only by someone who is detached.(2) and certainly Vasconcelos’ work allows us a good starting point to start detaching at our gross inadequacies. Shaheen Merali Notes (1) Paris Hilton, www.tinyurl.com/36vajr9 (2) Simone Weil, www.tinyurl.com/36k57fh |