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PEDRO CALAPEZ
LIZ VAHIA
“As obras estão a suspender qualquer coisa, sustentam o nosso céu”, diz-nos Pedro Calapez, que nos recebe no seu atelier em Lisboa. Atarefado entre o acondicionar dos trabalhos que seguirão para a galeria Luís Adelantado, no México, e o acerto da montagem da sua próxima exposição em território nacional, na galeria Mário Sequeira, em Braga, o artista fala-nos não só sobre o seu ritmo de trabalho, mas também sobre processos e percursos, sobre voltar atrás quando é preciso, sobre a importância dos suportes e dos materiais, sobre o olhar primeiro de longe e o ver bem de perto depois.
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PC: Precisava de mais uma pessoa para fazer trabalho de escritório.
LV: E esse trabalho de escritório consiste em quê?
PC: Todos os dias chegam coisas para tratar. Pedem-me fotografias, autorizações para isto, autorizações para aquilo... É um trabalho muito cansativo, ocupa-me imenso tempo, perde-se horas com este tipo de coisas. Por outro lado, é preciso estar sempre a atualizar a lista das obras. Tenho uma base de dados onde todas as obras têm uma ficha com os dados da obra e a sua fotografia (fotografo tudo antes da sua saída do atelier). A ficha indica igualmente se a obra se encontra disponível e a sua localização.
LV: É como gerir um arquivo.
PC: Exatamente. Isto dá muito trabalho e neste momento sou eu sozinho que faço isto. Muitas vezes só me apetece pintar mas tenho que tratar destes assuntos. Tenho tido muitas exposições, de facto, e há muita coisa burocrática para preparar. Aquela imagem romântica de que estamos só a pintar... não corresponde à realidade. Tenho uns dias em que estipulo mais ou menos uma parte do tempo para trabalhar e outra parte para resolver problemas, comprar materiais, esse tipo de coisas. Esse trabalho é um trabalho diário. Todos os dias estou aqui às 10h da manhã e saio daqui às 19h30/20h. É esse o meu dia a dia.
LV: O que é que estava a fazer agora?
PC: Estou aqui a olhar para estes painéis que já foram pintados, também já foram fotografados e estão agora numa segunda revisão. Vão para uma exposição na galeria Mário Sequeira, a inaugurar no dia 26 de Junho. Estes conjuntos pertencem a diferentes séries, mas foram sensivelmente realizados ao mesmo tempo, durante 2014 e 2015. Estou a pensar como é que os vou dispor lado a lado, não me apetece apresentar uma série numa parede e outra série noutra parede... apetece-me combinar as diferentes séries porque o meu trabalho é também revelar misturas e contrastes. Ultimamente tenho consciência que abordo vários caminhos ao mesmo tempo e gosto de combinar essa dispersão. A exposição na galeria Belo Galsterer não permitiu a montagem que eu verdadeiramente imaginara, porque a montagem que eu queria era um confronto e não concentrar, por exemplo, os trabalhos sobre papel numa única sala. Gosto de ter ali aqueles desenhos, mas de início não tencionava mostrá-los nesta exposição, só que de repente, fiquei com vontade de os ver na parede, de os ver fora de mim. Mas aquela outra obra na exposição, da série “Dominó” (2013/2015), sempre a imaginei exposta do modo que está, na sala mais pequena da galeria, permitindo a quem aí entrasse, que a fosse vendo a diferentes distâncias descobrindo a obra à medida que se vai caminhando para ela. Acho que é uma coisa que tem a ver comigo, provocar variados modos de olhar para as coisas desafiando o espectador a diferentes sensações. Gostava de ter conseguido isso relativamente às obras sobre papel (série “Openspace”, 2015), e apesar de ter andado a experimentar diferentes colocações, o espaço revelou-se difícil tendo em conta as dimensões destas obras. Teria talvez resolvido melhor o espaço se tivesse colocados menos coisas, penso nisso agora. De qualquer forma encontrei um equilíbrio e acho que está bem. Mas gostava de ter misturado os papéis com os alumínios. E isso é um pouco o que eu estou a fazer agora com os estudos para a montagem desta próxima exposição. Na maquete digital vou colocando numa parede uma coisa, outra ao lado e depois outra ainda... Depois os painéis circulares, os “redondos” ou melhor a série “round” (2014/2015).
LV: São feitos do mesmo material?
PC: A base é sempre o alumínio, só que alguns são feitos em alumínio cru, cuja superfície é por nós (eu e o meu assistente) preparada para receber a tinta acrílica. As partes laterais são envernizadas mate (antes acontecia que quando eram tocadas ficavam marcadas devido ao suor ou gordura, o verniz evita isso). Entretanto tenho estado a experimentar estes outros painéis que são lacados. Ao serem lacados põe-se uma outra questão: como é que uma superfície lacada recebe a tinta? A tinta de óleo adere perfeitamente. Voltei assim a pintar a óleo. Nestes painéis circulares a pintura resulta diferente porque o material é diferente. Deu-me muito prazer voltar à tinta de óleo. Tinha começado a pintar a óleo nos finais dos anos 1990, tendo mudado para as tintas aquosas quando descobri que conseguia ter um bom e resistente primário para o alumínio. Com a tinta acrílica tudo seca muito mais rapidamente, principalmente as espessas camadas de tinta que gosto de pôr. Sempre que altero o tipo de tinta o resultado visual também é diferente. Aparecem coisas diferentes.
LV: Foi o que aconteceu com os papéis?
PC: Sim, os papéis também são diferentes dos pintados a acrílico. Na série “Openspace” utilizei esmaltes industriais, que são tintas muito líquidas, e nos apresentados na galeria Belo-Galsterer há uma camada a óleo em barra que cobre parcialmente a sua superfície. Apesar de ter já usado a barra de óleo em muitos outros trabalhos, nunca o tinha feito desta forma. Ainda estou interiormente a dialogar com estes recentes trabalhos. Pensei também selecionar obras desta série para a próxima exposição na galeria Luís Adelantado, na Cidade do México , mas decidi que não. Apetece-me continuar a fazer para ter um corpo de trabalho mais substancial e poder estar mais à vontade com os resultados que estou entretanto a obter. Trabalhando por séries e em várias séries simultaneamente apercebo-me que necessito de mais tempo para entender, para encontrar o que faz sentido.
LV: E acha que estes trabalhos em papel são mais interventivos com o público, na medida em que não têm vidro, a plástica tem mais relevo...
PC: Há de facto um contacto muito direto, sobretudo com esses que têm pastel de óleo. A moldura não é uma barreira, é um dispositivo de colocação do trabalho. Já apresentei papéis sem moldura, pois o vidro para mim é por vezes uma barreira, nunca se está à vontade com trabalhos escuros, refletem sempre o espectador ou as paredes diante da obra. Há uma certa limpeza em ter tirado o vidro. Era uma coisa que já tinha pensado fazer: montar o papel numa moldura que não tivesse vidro e não o colar, agrafá-lo simplesmente. Acho que ficou muito bem.
LV: E desenhos?
PC: O desenho, nesse sentido que penso que está a referir, do desenho em que se usa a linha, o que tenho produzido ultimamente resulta do trabalho directo no computador. O projecto que apresentei na Appleton Square contava com uma obra que ocupava uma parede, de lado a lado, de alto a baixo: era uma parede toda cheia com um desenho (“Curtain”, 2014). O desenho é o resultado de uma grelha que conta com mais de 200 impressões digitais, folhas soltas colocadas lado a lado. Noutra exposição (“There is only Drawing”, Fundación Luis Seoane , A Coruña, 2013) uma série significativa de trabalhos são em impressão digital, sobre papel ou sobre chapa de alumínio, preparada a acrílico. A sua organização na sala de exposição e os títulos de muitos deles, surgiu depois da leitura do “Spleen de Paris”, obra que agrupa diferentes histórias e que Baudelaire organiza sem clara sequência, ou antes, esta é criada pelos saltos estruturais entre as diferentes histórias. Outras obras nessa exposição são, por exemplo, uma larga série de desenhos a tinta da china que anteriormente mostrara no Colégio das Artes em Coimbra (“naked eye”, na exposição “Fragmento”, 2012). Portanto, o trabalho de “desenho” continua, mas com cambiantes: criação de desenhos que começam a sua existência no computador e que se materializam em diferentes formatos e suportes, nomeadamente em impressão digital. A instalação “Gymnasium” (2012) por exemplo, 16 painéis em alumínio com 300 x 150 cm, em que a sala em que são expostos determina a sua colocação, é toda realizada em impressão digital. O alumínio é preparado e lacado e de seguida impresso digitalmente. São desenhos de computador, variações sobre composições de diferentes tipos de linhas. Parti de um pequeno traço que depois foi repetido, invertido, deformado, criando um efeito padronizado. Esse efeito de repetição provocou o título desta obra, não só pela ideia de exercício, em que a repetição estrutura a eficácia dum resultado, como também pelo facto do espaço do ginásio ter sido, na antiguidade clássica, o lugar da discussão, do confronto de ideias.
Entretanto, uma outra situação aconteceu envolvendo um outro tipo de desenho. Para o livro editado pela Bial, redesenhei em linha de contorno as obras nele apresentadas. Esses desenhos foram utilizados no índice desse livro. O meu filho referiu-me que pareciam ser coisa para colorir. Decidimos então fazer a abertura da minha página web com esses desenhos e criar uma secção em que qualquer um pode colorir à vontade uma obra criada por mim.
LV: Quando é que lhe apetece desenhar ou pintar?
PC: Geralmente quando me canso de uma coisa ou outra. O trabalho sobre tela é lento. Muito mais imediato é quando se usa o papel: é só fazer. Quando uso painéis de alumínio primeiro têm que se mandar fazer, depois têm que se preparar. Há todo um trabalho fora do atelier que é moroso, que atrasa o começar. Depois é sempre necessário encomendar múltiplos painéis, o que provoca várias semanas em que não posso pintar. Nesses intervalos estou muitas vezes a fazer trabalhos sobre papel.
A série “Naked Eye”(2012) não se traduz bem na literal tradução deste título: “a olho nu”. É como se fosse a ideia do “olho nu”, do olhar direto para as coisas. Fazer um desenho a partir do que se está a ver. “Naked eye” são desenhos à vista, a tinta da china sobre papel, um papel comum que eu tinha comprado num lote de restos de um armazém que ia acabar. Fiz mais de duzentos desenhos, cada um no formato normalizado A1. Este é um trabalho que gosto muito de fazer, pegar em revistas, jornais e fazer desenhos a partir de fotografias, gráficos, etc. São séries que acontecem, sem ideias prévias, usando as imagens que alguém já pensou por nós. Um dia estava a preparar imagens para impressão digital, uma sequência de procedimentos mecânicos no computador e de repente senti uma vontade louca de estar a pintar. Estes desenhos começaram assim com uma pilha de revistas, um pincel, tinta da china e uma folha de papel.
Na exposição de Coimbra, no Colégio das Artes, apresentei igualmente uma dupla projeção em vídeo de desenhos feitos em iPad. No iPad podemos facilmente desenhar com os dedos. Existe também a possibilidade de se visualizarem todas as etapas da construção de cada desenho. O iPad permite uma atividade muito “doodleana”, mas com uma diferença essencial. Quando fazemos “doodles” num papel sobrepomos linhas ou manchas num processo de acumulação, de sobreposição, e no iPad podemos voltar atrás, apagar e recomeçar. No entanto todos esses passos ficam registados e permitem rever como os desenhos se fazem e desfazem. É possível obter assim um filme das nossas acções, do desenvolvimento de linhas, formas e cores numa superfície. Inseri estas imagens num programa de edição de vídeo onde se temporizou a transição entre cada movimento do dedo no ecrã obtendo-se assim um filme que revela o deambular do processo criativo. O que foi engraçado é que tudo resultou de um processo que eu não caracterizaria de displicente, talvez descontraído. Vai-se fazendo, apaga-se, faz-se de novo, e depois carrega-se num botão e vê-se aquilo tudo a movimentar-se e a criar sequências que não esperávamos. É como se o desenho estivesse a surgir diante dos nossos olhos, vê-se a crescer, a desfazer-se, a transformar-se.
Ao mesmo tempo que estava a fazer isto, continuei com outros trabalhos, mais físicos, não digitais. A sequência do trabalho vai simplesmente acontecendo.
LV: Estas séries que tem aqui montadas para a exposição na galeria Mário Sequeira são séries que definem um período?
PC: Sempre gostei de obras em fragmentos, de conjuntos de painéis. Os painéis em alumínio dobrado, com diferentes dimensões e profundidades têm estado presentes no meu trabalho desde o início dos anos 2000. Em 2009 comecei a fazer outro tipo de peças, que embora organizadas em grupos têm pouco volume e são recortadas de um modo irregular. Resultam da vontade de ir experimentando diferentes tipos de suportes. Nem sempre resultam bem. Apeteceu-me depois voltar a estruturas mais regulares e portanto voltei aos conjuntos de painéis rectangulares. De certo modo estou a retomar coisas que já fiz, embora a maneira de pintar seja mais brutal e se olhar com atenção é possível notar como vai variando o modo de colocar a tinta. Quando sinto que estou a ficar demasiado preso a um tipo de suporte resolvo mudar, voltando eventualmente a formas e suportes que utilizara anteriormente. Nunca sei bem quando termino uma série. Posso voltar para trás também, já me aconteceu várias vezes. De facto, acabo por andar muito à volta do suporte, atraiem-me as caixas, os volumes, o aspecto arquitectónico. A arquitetura e o processo construtivo tanto surgem nas obras como na apresentação da exposição, na criação do espaço em si, na obtenção dum circuito para o olhar. O carácter de instalação está presente em diferentes séries de trabalhos. Agora vou gastar algum tempo a imaginar como é que estas diferentes obras irão resultar na galeria em Braga [galeria Mário Sequeira], como criar as dinâmicas visuais necessárias. Acho que isso é tão importante como fazer as obras em si. A colocação de uma obra numa parede determina sempre a forma como as coisas são vistas.
LV: Esta questão do fragmentado, tem a ver com o libertar a pintura, deixá-la expandir-se mais?
PC: Em Espanha, e noutros sítios também, começou-se a falar de pintura expandida. Rosalind Krauss é frequentemente citada para fundamentar teoricamente a expansão do plano visual para a tridimensionalidade. No meu trabalho a deslocação da superfície da pintura aconteceu de uma maneira progressiva. Há um momento fulcral que tem a ver com o desenvolvimento do meu trabalho durante os anos noventa. Refiro duas exposições: uma na Fundação Miró em Mallorca (“Campo de Sombras”, 1997) e outra, um pouco antes, no Museu do Chiado (“memória involuntária”, 1996). Nesta os meus desenhos partiram de outros desenhos, de outras coisas. Na altura a Raquel Henriques da Silva perguntou-me se eu queria trabalhar com obras da coleção e eu fui ver tudo o que havia nas reservas e fiquei seduzido por um conjunto de trabalhos a pastel seco de Sousa Pinto, uns feitos em Paris, outros nos seus arredores e na Bretanha, e ainda outros numa quinta que Sousa Pinto tinha nos arredores de Lisboa, em Benfica. Escolhi onze obras, mas sem saber ainda bem o que iria fazer. Passei cerca de um mês a ir ao museu às horas que me apetecia, incluindo à noite. Copiei os desenhos à vista, seguindo técnicas já por mim usadas anteriormente, como utilizar o desenho de linha ou desenhar com a mão esquerda alternando com a mão direita. A certa altura há uma coisa que me faz parar e que surge aos meus olhos na textura do pastel seco: as misturas desta cores em pó, revelavam-se aos meus olhos como fundos a partir dos quais o desenho despontava. E decidi fazer pinturas com aquele tipo de fundos de cores. Até esse momento todo o trabalho entre 1990 e 1995 é um trabalho quase monocromático, porque uso uma cor que ora é preto ora é um vermelhão ou laranja, riscando, sulcando a sua superfície com uma espátula ou estilete. Aí, onde o fundo tem uma presença muito grande, trabalhado em termos de textura, mas mesmo assim monocromático, o desenho como que emerge desse fundo, afirmando-se por causa dele. A partir de 1996 esses fundos começaram a ter outras características pois revelam misturas de cores. Nos painéis da exposição do Museu do Chiado, quatro conjuntos de onze painéis cada, foram sulcados sobre esses novos fundos os contornos retirados dos desenhos de Sousa Pinto. E de seguida apareceu a questão do fragmento. Tinha acabado de fazer uma pintura que proporcionava uma leitura em conjunto, em que o olhar circulava de uma coisa a outra, de uma cor a outra, de uma linha a outra, de um painel a outro. Gosto de comparar com o que acontece quando estamos a ver pintura, como fazemos quando estamos a ver por exemplo uma pintura de uma certa dimensão, seja um Ticiano, Tintoretto ou Veronese. A determinado momento encontramo-nos obcecados por pormenores desses quadros, vendo-os fragmento a fragmento mas depois fazemos a sua união quando distanciamos o nosso olhar. Criamos uma história a partir dessas parcelas visuais. Na Fundação Miró parto de um conjunto de recortes que Miró recolheu em revistas e também de pequenos objetos que ele encontrou e que utilizou para desenvolver os seus desenhos. Uso assim o mesmo universo de partida de Miró para fazer os meus. Alguns dos fundos que receberiam esses desenhos ganharam entretanto autonomia e passaram a existir por eles próprios, exibindo fortemente a sua cor. A linha foi esquecida e alguns painéis começaram a ser abstractas misturas de cores. O ano de 1996/97 representa um momento de transição para um novo tipo de trabalhos que emerge de dois distintos projetos e do trabalho profundo de observação por mim seguido. Passei de sobreposições de desenhos, de diferentes tipologias de representação, para a situação em que posso ter desenho ou não o ter, fazer um fundo abstracto ou não. Começam a surgir vários fundos abstractos, pintados de maneiras diferentes, com contrastes de cores diferentes e funcionando ou confrontando-se uns com os outros. Nos anos seguintes os fragmentos serão organizados em grelhas (a série das “janelas”, 1998). O suporte eram grossas placas de MDF, o alumínio só começa em 2001/2002. É engraçado como uma falha técnica, a fragilidade do MDF ou o empenamento das placas com a humidade, origina a procura dum novo material que de seguida altera todo um modo de pintar. Por outro lado ao ter usado placas de espessuras diferentes e ao colocá-las lado a lado fez-me descobrir uma ponto de interrupção, uma “décalage”, uma descontinuidade no fluir da pintura. E nesse momento comecei a trabalhar sobre a profundidade, a distância à parede. Quando quis aumentar a profundidade fiz caixas mais profundas, e a certa altura queria mais e os carpinteiros já não o conseguiam fazer, ou as caixas ficavam muito pesadas. Comecei a utilizar as caixas de alumínio. Estas, porém, também tinham limitações de espessura, por causa dos perfis e do material que se usava. Só com a exposição do Centro Galego de Arte Contemporânea (“piso zero”, 2005), é que descobri, seis meses antes da sua inauguração, que podia fazer painéis com significativa profundidade se os deixasse abertos, em forma de “U”. No espaço da sala emblemática desse museu de Siza Vieira, a sala de duplo pé-direito, apresentei quatro obras, conjuntos de diversos destes novos painéis, ocupando as paredes de quatro maneiras. Depois de 2004 e até agora, tenho dialogado exaustivamente com a questão do físico distanciamento da superfície da pintura em relação à parede em que se encontra colocada, jogando com painéis estruturados arquitetonicamente e com incursões pelo meio noutros tipos de suportes como os ondulados ou recortados. De certo modo, nunca deixei de fazer estes painéis, mas agora voltaram com outra intensidade.
Entretanto, decidi contrariar a ideia de fragmentação realizando algumas telas ou painéis únicos. Apresento agora no Tivoli três telas, no restaurante. São peças que mesmo assim têm volume, pois as estruturas metálicas que as constituem fazem-nas distanciar da parede, o que lhes dá um ar de objecto.
LV: Digamos que as séries não têm uma sequência cronológica.
PC: Não. Os trabalhos têm andado muito à volta das questões que o olhar levanta. Uma coisa que sempre passou por todo o meu trabalho, desde 1982, da minha primeira exposição individual: o lugar do olhar. Este será para mim muito preenchido pelo campo visual que os trabalhos possibilitam. Daí surge também o questionamento sobre o que está por trás, detrás da pintura, para além do “colour field”, por trás do horizonte, depois da relação interior/exterior, integrar a noção de distância. Estes assuntos acabam por se refletir nos títulos que eu dou não só às exposições como também a algumas das obras.
LV: Esta última exposição chama-se “Openspace”.
PC: “Openspace” é uma palavra que tem sentido para pessoas fora do mundo da arte, e eu achei interessante isso.
LV: Há também uma analogia com a obra, ela está ali contida e ao mesmo tempo é um lugar de respiro para outro sítio.
PC: A exposição na galeria Luís Adelantado no México vai-se chamar “Off limits – espacio sin retorno”, o espaço do qual não se pode voltar. “Off limits” tem dois sentidos, isto é, é fora dos limites, mas também zona proibida, onde não se pode ou deve ir, e da qual provavelmente não podemos voltar. E no México pensa-se muito nesta situação, de uma civilização que está aculturada pela influência norte americana e antes pelos espanhóis – e onde antes estavam os índios. Há uma tensão que se sente claramente no México, entre uma civilização que não passou, mas que continua presente. Há uma grande extroversão, muita gente na rua, uma grande mistura, muita força perante a realidade. Vive-se intensamente a vida pública, um forte nacionalismo permanece mas também um sentimento de submissão. O México é um país ainda desconhecido para mim, mas seduziu-me a mistura de culturas, do conflito da religião com a modernidade. É ir para um espaço que para mim seria proibido, porque desconhecido, mas ao mesmo tempo um espaço de liberdade, porque é um espaço fora do meu espaço. E é sem retorno porque já não voltarei da mesma maneira.
Alguns dos trabalhos chamam-se “overseas”, também é uma palavra que para nós tem um sentido mais vasto, mas talvez para um americano o sentido é muito mais limitado. Eu provavelmente tenho uma leitura mais poética da palavra do que ela tem na realidade.
Os títulos dos trabalhos passam um pouco pelas leituras que estou a fazer ou pelas pequenas relações que encontro. Gosto de nomear as minhas obras. Uma das séries que está no Tivoli faz parte da série “Horizontes”, e fui nomeando: “horizonte transverso”, “horizonte invertido”, “horizonte longe”, “horizonte rio”, “horizonte mar”... até me cansar dos horizontes! Ou a série de trabalhos “Trasfondo”. “Trasfondo” é a palavra espanhola que quer dizer “background”, o fundo, mas “trasfondo”, se formos ver num sentido mais literal poderia ser “atrás do fundo”. O que é que existe atrás do fundo? O que é a pintura? A pintura é o que está por trás de toda a pintura que se pintou. Achei que podia ser o que está por trás de tudo. Gostei de fazer uma série de trabalhos com esse título porque era como se eu andasse à procura, no momento de pôr camadas de pintura, da camada primeira. Procurar a camada antes da primeira pondo muitas camadas em cima uma das outras.
LV: Essa parte do nomear é importante, como a montagem?
PC: É porque que me dá prazer. Os títulos geralmente vêm pelo uso do fazer. Não há uma programação dos nomes, mas eu gosto de nomear as peças. Não me apetece ter aquele ar seco do “sem título”. Os nomes acabam por aparecer no momento. Obtenho títulos para os trabalhos através de alguma poesia que leio. Mas também intitulei uma série de “Breves” (1993-1995), porque são trabalhos muito concisos no seu fazer.
Às vezes os títulos não saem facilmente, há coincidências que se têm que encontrar. Às vezes há relações formais e isso faz o título, outras vezes é mais complicado.
LV: O trabalho para estar terminado precisa de um título?
PC: Acho que sim.