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ALBUQUERQUE MENDESNÃO CONFUNDIR UM TIJOLO COM UMA OBRA DE ARTE![]() GALERIA MUNICIPAL DE MATOSINHOS Av. Dom Afonso Henriques 4450-229 10 MAI - 24 AGO 2025 ![]() ![]()
Não confundir um tijolo com uma obra de arte de Albuquerque Mendes traz à Galeria Municipal de Matosinhos uma continuação multifacetada de rostos soturnos, esgares sorrateiros, vislumbres maliciosos ou mesmo expressivamente lúbricos que compõem a sala de retratos do espaço galerístico. Acima de tudo, nunca poderemos confundir o tijolo com uma obra de arte, da mesma forma que nunca nos poderemos enganar nas direções a tomar num determinado rumo em demanda. Contudo, esta confusão pode ser aberta e dissecada por inúmeras permutas de ambiguidade, que revelam e analisam, numa autópsia delongada e reflexiva, o carácter de um corpo-obra que afinal não se quer fechar numa pretensa esfera cristalizada. Abrir e não fechar, tensionar e não alongar, demonstrar o jorro da ambiguidade e não operar uma sangria de regulação homeostática. Por isso Karl Valentin, na sua grotesca sapiência, ensina-nos que quem ao fim chega, pode novamente começar, pois o fim é o início visto de um outro lado [1]. Consequentemente, os fins não justificam os meios, nem inversamente os meios determinam os fins, pois a obra de Albuquerque Mendes espartilha-se em multímodas observações, interligando-as num todo indecomponível, onde a baixa cultura (lowbrow) - páginas de jornal, anúncios publicitários, imagens eróticas - e a alta cultura (highbrow) - inventariações imagéticas da história da arte - entretecem um nó górdio de espessura inelutável. O fim, aqui encarado como a positiva e consciente afirmação de uma interpretação resoluta deve ser colocado em interrogação pelos inícios que concomitantemente se enlaçam contiguamente no encalço do seu desenvolvimento. Este olhar enviesado para o fim que nunca termina, pode ser a proposta conceptual do artista, ao recorrer às instâncias do inacabamento irresolúvel para despoletar categorias híbridas de presentificação imagética, retiradas dos mais alargados âmbitos da transversalidade da cultura ocidental, abrindo um espaço no teatro do mundo para as figurações mais implausíveis e extraordinárias, precisamente porque extra-ordinárias. Não será por acaso que da palavra Kunst (arte) se possam articular as designações de Künstlich (artificial, falso, simulado) e Kunststück (truque, façanha).
Albuquerque Mendes. Caminho malévolo, 2023/24. Acrílico sobre tela. Cortesia Filipe Braga.
No corpus de obra de Albuquerque Mendes cabem os exercícios mais informais de colagens sequenciais de temas populares ou lascivos, se não mesmo pornográficos, cujas saliências adicionadas num todo, resultam em paradigmas inexactos de tradições especulativas de colocar em evidência a saturação nefasta dos media; os elementos retratísticos mais improváveis, cujo pressentido eco desdobra a sua formação em inquietantes resquícios assimiláveis à tradição histórica das belas-artes ou simplesmente em inverosímeis (porque demasiado fantásticas) planificações anatómicas de rostos invertidos ou de corpos solucionados em composições afastadas de uma realidade final. No entanto, nada parece aqui contaminado por um advindo sopro arcano, de inefável mistério, cuja incognoscência transporta a obra para um patamar de elevação ascensional e sublime, pelo contrário, a condição imagética do artista inventaria dispositivos contaminados por uma certa dose humorística do improvável e incerto para catalisar fantasmagorias absolutamente imperfeitas de afectividade lúdica. Ou se quisermos, de um afectividade ludicamente séria, experimentada com toda a preocupação metódica e rigor propostos para o desenvolvimento de tendências vertiginosas de encarar a imagem na sua dupla acepção germinativa – retratar a realidade e desmembrá-la a partir da realidade interna do artista. Nada como engaiolar uma freira. Nada como velá-la numa caixa. Nada como inserir o retrato religioso num relicário ou sacrário de madeira, ambiguamente visível/ocultado pela rede protectora que se interpõe entre o interior e o exterior. Esta metodologia de retratar a realidade, excisando dela um pedaço para o formatar através de uma ordenação inverosímil, permite que o artista constitua uma deflagração da anti-seriedade em resposta às inflamadas e primordiais categorizações de mau-gosto. É neste sentido que o espaço cindido da realidade e da sua desmesura qualitativa permite que um acontecimento realizável no tecido organizado do mundo católico, seja retornado ao plano de representação sob a égide da ebriedade concomitante da potência reordenadora, cuja mirífica visão detém a possibilidade de inverter os rumos esclarecíveis de certas automatizações tomadas por garantido. Se o recolhimento sagrado é o pressuposto de uma realidade hipertrofiada em transcendência, o artista é o heresiarca, que no opróbrio da tradição acondiciona o incondicionável infrene numa contaminação perversa do macabro. Concentremo-nos nos inúmeros rostos e figuras retratados nas obras em exposição. Na sua consciente tentativa de eliminar todos os vestígios compositivos de uma finalidade perfeitamente assumível na arte enquanto prática exequível do bem fazer, Albuquerque Mendes ressalva a imaculada operação maladroit, ambiguamente inábil, porque perfeitamente esclarecida na sua inaptidão em fazer bem. A imperfeição gauche possibilita que o artista reinvente os moldes de acordo com a sua própria vontade, encontrando exemplos concretos localizados no modernismo pictórico do início do século passado, para com eles exercer uma espécie de dualidade conflituosa entre nostalgia e recriação, entre o olhar de soslaio por entre as fendas do passado e as laboriosas e argutas determinações em contribuir para uma representação artística invulgarmente atemporal.
Albuquerque Mendes. Circo Guignard, 2020. Acrílico e têmpera sobre tela. Cortesia Rodrigo Magalhães.
Se a obra Circo Guignard relembra a inversão hierárquica temática levada a cabo pelos modernistas, onde a actividade circense exerceu uma influência derradeira, podendo levar-nos para uma recapitulação programática dos temas impreteríveis de Max Beckmann (ou mesmo a predileção pelo saltimbanco, humoristicamente representado por Albuquerque Mendes na obra Caminho malévolo), a sua condição conceptual permite que haja uma certa reprodutibilidade de um passado sem recorrer à sua cópia fidedigna, já que a representação permite uma certa aproximação da nostalgia, sem que seja ela a saturar o espaço figurativo, ou seja, ela está como elemento interpretante de aproximação mas também como elemento espectral de propagação para uma futuridade propícia à conceptualização própria do artista. Nesta ambivalência, o artista reside e persiste na justaposição peculiar de efeitos de repetição e acumulação serial, abrindo espaço para uma estranha peculiaridade assente num código altamente individualizado e encriptado. Entre o kitsch e a seriedade programática, entre os dramas imagéticos influenciados pelo kitchen sink realism e as aproximações ao romantismo e expressionismo, a obra abre-se a uma instabilidade, de fragmentações, estilhaçamentos, usurpações, transgredindo qualquer solução de continuidade entre agenciamentos declaradamente racionais. E ainda assim a obra é radicalmente criteriosa, indubitavelmente enraizada na ideia de María Zambrano de que o carácter da realidade é a resistência [2]. Dentro desta resistência, Albuquerque Mendes decide-se pelo enraizamento paroxístico no macabro e no grotesco, definindo a hibridez metamórfica da obra como um lugar de interrogação onde os termos estéticos da harmonia, beleza, tonalidade, equilíbrio, uniformidade são quebrantados pela inviolável volúpia de operar nas margens, nos limites, nas barreiras limítrofes, entre a ordem e o caos, entre a contradição e a afirmação, entre a volição e a segmentação em dinamismos fluidos.
Albuquerque Mendes. Doce Olhar, 2022. Acrílico sobre tela. Cortesia Rodrigo Magalhães.
Doce olhar é um exemplo certeiro do inconformismo do artista com a impoluta condição idealizada do retrato e do conformismo com o desvio à norma anatómica regularizada. Há algo de Otto Dix ou de Georg Grosz neste retrato (podendo mesmo representar um dos desafortunados personagens da República de Weimar implicados por Bertolt Brecht na sua Ópera dos três vinténs), de algo incerto que se planifica numa suave, mas dilemática consciencialização de que natureza é dada a acidentes e a composições estritamente imprecisas. A assimetria do rosto, a acentuação irregular do crânio e da incapacidade de o chapéu assentar de forma exequível, a implantação tecnológica de uma prótese ocular, e mesmo assim a complacência ou o comprazimento do retratado, compõem a hibridez do acidente normalizado no tecido anómalo e instável da realidade. No poema dedicado a Georg Grosz, Else Lasker-Schüler escreve que o pintor adora o seu infortúnio (missgeschick) e sua tristeza é dionisíaca (seine Traurigkeit ist dionysisch) [3], pois todos os tormentos acarretados pela fortuna (das geschick) podem ser encarados como instâncias de aceitação em face do grotesco. É dionisiacamente que Albuquerque Mendes integra a abrupta interrogação da superfície da realidade.
Rodrigo Magalhães
Notas [1] VALENTIN, Karl. Hoffentlich wird es nicht so schlimm, wie es schon ist. Texte – Sprüche – Stücke. Marix Verlag, Wiesbaden. 2023, p.9. ![]()
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