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YONAMINEN’GOLA CINEJAHMEK CONTEMPORARY ART Rua dos Coqueiros, nº201 (Fábrica Misson) 17 MAI - 24 JUN 2018 N`GOLA CINE, O PAÍS EM QUE VIVEMOS
No início de 1975, o N`gola Cine ainda existia: recordo ver autocarros double-deck (cabina dupla), desses que ainda hoje podemos ver a andar pelas ruas de Londres, parar em frente ao cinema. Atualmente, o N`gola Cine já não existe como tal, resta apenas o lugar em que estava situado, transformado em grande armazém de comércio a grosso e a retalho: agora são os hiaces dos candongueiros que, como formigas, pairam a volta do largo. Porém, o cine N`gola já foi um país: saíamos das casas das nossas famílias - o país da infância - íamos lá ver, nas matinées, qualquer filme (e o Trinitá Cow Boy Insolente era um deles), para sonhar o país do futuro. Dinis Canhanga, o pioneiro que içou a bandeira no dia da Independência de Angola, frequentava o cine N`gola. Todos nós - o Dinis e a rapaziada das cês e das bês, a das casas redondas e as dos prédios do Simão Toco e do Caputo, incluindo as que residiam à beira da rua D. João II (Hoje Lino Amezaga) - vivíamos ali bem perto do N`gola Cine, sem saber que o filme que nunca seria projetado no seu ecrã, afinal, era aquele em que, de algum modo, nós também éramos protagonistas. Na verdade, éramos e continuamos a ser participantes de outro filme, aquele que fazemos no nosso dia a dia. É essa interminável história que Yonamine nos convida a revisitar de maneira crítica, pondo no centro das suas reflexões a instalação “Roupa suja lava-se em casa”. "Roupa suja lava-se em casa" é, também, a enunciação de um princípio de soberania cultural que pode ser lido em consonância com a complexidade da transição social e política em curso no nosso país. O mundo mudou e as interferências e a sobre-exposição aos ecossistemas simbólicos e práticas artísticas e históricas que antes poderiam ser consideradas exógenas, atualmente, num mundo cada vez mais global, formam parte de todos. Logo, a ideia de "casa" já não é a mesma de há anos atrás: exigir uma leitura endógena, de portas para dentro, não é assim tão pacífico, e este é um risco que o artista corre.
Na exposição na galeria Jahmek Contemporary Art, o cine N`gola é uma metáfora sarcástica que o artista Yonamine nos propõe, para analisar, com senso comum e olhar emancipado, a história mais recente de Angola. A instigação tem o fôlego e a acutilância a que já nos acostumou, de modo muito particular e depurado, desde a sua instalação "Pão nosso de cada dia" (2017), mesmo que, segundo Suzana Sousa, na sua obra "Dipoló" (2010) e na sua exposição "Luz Veio" (2013), já lá estejam muitos dos elementos que utiliza de maneira impactante e noutra escala. Entretanto, não cabem dúvidas que, as colagens - rasgadas, intervencionadas, coladas, riscadas, sobrepostas - são já hoje uma das marcas distintivas da primeira fase importante na trajetória artística de Yonamine. Com "Pão nosso de cada dia", o artista passa para uma dimensão criativa mais efetiva em termos de mensagem, resgatando, subvertendo e embelezando uma estrutura similar à dos azulejos, tão próprios de um segmento importante da narrativa visual colonial, para, paradoxalmente, questionar o pós-colonialismo, a pós-independência e o culto à personalidade que ela instaurou.
Com "Roupa suja lava-se em casa" estamos em presença de outra mudança de estratégia do artista, sendo que desta vez em sentido inverso: onde ele acumulava, agora esvazia; onde ele organizava em forma de quadrículas, arruma agora unindo a irregularidade de contornos que as palavras e frases, por si só, provocam; onde ele antes colava na parede, agora pendura, estende ou "iça na corda" - como Dinis Canhanga fez com a bandeira - como se já tivesse lavado e purificado tudo, como se a realidade tivesse deixado de ser um lençol corrompido e insano. Em última instância, N`gola Cine é uma grande exposição/instalação que representa a história de quarenta e três anos de Independência Nacional (1975- 2018) "estendida" - no sentido coloquial do calão luandense que significa criticar à exaustão - sem qualquer deferência que não seja aquela que os limites da estética e da reflexão política impõem. Estamos em 2018 e, apesar de ter efectuado uma mudança de estratégia criativa, Yonamine continua a usar a "interação dos meios de produção" artística que, segundo João Silvério, já utilizara na sua exposição "Só China" (2012); também de algum modo, continua a insurgir-se contra a “ideia do apagamento" de que Paulo Cunha e Silva falara aquando da sua exposição "Tuga Suave" (2008), tão frequente no seu trabalho dos últimos dez anos. Entre 2008 e 2018, contra "a ideia do apagamento" e utilizando uma intensa "interação de meios de produção artística", Yonamine passou a fazer parte dos artistas angolanos de vanguarda, que participam num dos mais tensos cenários da batalha pela autorrepresentação e autorreferencialização histórica e identitária, tratando de definir-se e distinguir-se tanto com respeito às práticas artísticas locais como irrompendo no cenário da arte internacional, sem qualquer tipo de preconceito ou de acanhamento. Na verdade, o desafio do artista e os da sua geração foi o de fugir dos lugares comuns, afastar-se dos terrenos trilhados e dos clichés nacionalistas das décadas de 80 e 90 do século passado para, à vontade, voltarem a eles com outro olhar, tratarem temas nunca abordados, ou refletirem sobre temas atuais, que preocupam o cidadão. O culto da personalidade, o passado socialista, a injustiça social, a sem-razão da retórica e dos slogans políticos pseudo comunistas e o fracasso da ditadura do proletariado, em Angola, são temas tratados com ironia, sarcasmo, crítica e humor, em muitas das obras de Yonamine. E se desta vez é o N`gola Cine que interessa a Yonamine é porque, como todos os que vivemos naquele país da nossa infância, ele também recorda bem o ambiente de antes e durante as matinés. Como ele nos confessou ninguém poderia esquecer estes momentos em que era possível: "Sentir a emoção do filme sem estar dentro do cine; de comprar bilhetes na candonga quando já estavam esgotados na bilheteira e das bichas enormes para comprar bilhetes para ver filmes que ficavam meses a passar até a fita riscar toda". Se antes não sabíamos bem, de onde é que provinha o impulso de riscar tudo, talvez agora estejamos mais próximos de o saber.
Adriano Mixinge
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