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MANUEL CASIMIROMANUEL CASIMIRO - DA HISTÓRIA DAS IMAGENSMUSEU ARPAD SZENES - VIEIRA DA SILVA Praça das Amoreiras, 56 1250-020 Lisboa 17 JAN - 17 MAR 2019 Um vazio na imagem
É um buraco negro na fotografia? Um vazio, uma falta, um rasgão no negativo, uma remoção? Ou, pelo contrário, uma adição, uma mancha no positivo, tinta ou pintura preta? A maioria das fotografias de Manuel Casimiro (na Fundação Arpad Szenes-Vieira da Silva, sob o título "Da História das Imagens", até 17 de Março), são assim marcadas por um sinal oval, frequentemente preto, que cria na imagem um apelo, uma lacuna, pela qual a visão se pode dissipar, desaparecer, se abstrair da imagem; esse buraco negro é um actor, diz o artista, ele pode assumir o papel que lhe quiser dar. É uma abertura para um desconhecido (e pensamos na porta negra de Matisse em Collioureau do começo da guerra), um convite à profundidade, uma ferramenta para esvaziar o espírito e meditar (e pensamos nos desenhos orientais ou em Malevitch). Ou pode ser um jogo com a imagem, uma forma de dizer "isto não é mais que uma representação, que eu posso manipular, deformar para fazer outra coisa que não a fidelidade ao real" (e pensamos em jogos diversos de lacunas fotográficas e em todo o campo desconhecido da ausência fotográfica, que me fascina). Contrariamente a Baldessari, mais tardio, estas lacunas na imagem não a aclaram, nem enfatizam as suas principais características, elas estão lá, isso é tudo. Claro que, alguns ovóides são jogos, montagens mais ou menos irónicas, até mesmo um pouco anedóticas, como a série de Quillebeuf de Turner onde a tempestade faz voar o oval preto (mas, enquanto as oito reproduções aqui apresentadas predizem demasiado o espectáculo, com o seu efeito cinema, o catálogo inclui uma série de 15, em que, no final, o preto devorou toda a imagem, e isso é muito mais interessante), como a freira que passeia dois ovóides num carrinho de bebé. Mas outras obras são inquietantes: ninguém jamais soube o que observava o cão de Goya, maior que a natureza, e esta mancha negra, longe de esclarecer este mistério, reforça-o (Casimiro também refez os Caprichos, não apresentados aqui, com a cumplicidade de Michel Butor). Mais inquietante ainda é a série (muitas séries, na verdade) de 25 retratos de Don Sebastião, o jovem rei desaparecido que regressará um dia para salvar Portugal e o mundo: do seu busto de armadura emerge apenas um rosto negro invisível, o rei-messias não tem traços reconhecíveis, ele não é mais do que um mito (e só podemos lembrar o Quinto Império).
Manuel Casimiro, O cão de Goya, acrílico sobre fotografia.
Tal como acontece com Sebastião, por vezes é toda a imagem que é substituída, que se derrete e se liquefaz. A série Vénus e o Amor parte do quadro de Cranach, com duas composições de pequena escala. Apresenta-se com um modelo contemporâneo, uma jovem nua com a mesma pose, cujo corpo é como devorado pela pintura, branca ou preta, positiva ou negativa; em baixo, uma mancha vermelha, o sangue derramado por uma ferida da flecha de Cupido, sem dúvida. Em frente, a última imagem da série Pesadelo desaparece também sob a pintura. Estas duas séries, "Vénus e o Amor" e "Pesadelo", são as mais construídas, encenadas e baseadas em fotografias do próprio autor e não reproduções. Casimiro é antes de tudo um pintor, e o seu trabalho é também uma obliteração da história da arte, um questionamento do ícone: a maioria das imagens obliteradas são pinturas clássicas, por vezes retomadas em grande formato, e às vezes reagrupadas em painéis de cartões postais vulgares: museu imaginário como todos nós tivemos nas nossas paredes de estudantes, de que o artista se reapropria com o seu pincel, marcando cada cartão com o seu toque, que, aqui, às vezes, é vermelho e translúcido, como se o gesto de sacrilégio o tivesse retido no último momento, suavizado e misturado de respeito. Outras fotografias mostram Peggy Guggenheim (inteira), um projeto para pintar os balastros do porto de Nice em várias cores, jogos de frutas, legumes e pedras numa praia, uma rua esfumaçada em Nova York e um conjunto de nove exemplares de duas serigrafias representando uma maquete urbana feita de latas de conservas e de caixas de embalagem: a cidade-consumo, a cidade-desperdício.
Manuel Casimiro, Moi je suis de l'autre côté mais je vous vois (1978) Acrílico sobre fotografia, 61x91cm.
Casimiro viveu durante muito tempo em França, e participou em particular na exposição Peindre Photographier em 1986 em Nice, em muito boa companhia. E claro que podemos glosar sobre as relações entre pintura e fotografia, sobre uma fiel servente da outra, libertando-a depois para a não-figuração, inspirando-a depois (ver Peintres Photographes, de Michel Poivert). No entanto, parece-me que o trabalho de Manuel Casimiro vai além dessa dialética. Talvez porque ele seja, fundamentalmente, um artista conceptual, não na forma, mas no pensamento, inspirado pela filosofia e privilegiando a cosa mental à mera representação; ele cita Pessoa: "não posso ver sem pensar". Talvez porque o processo seja mais importante para ele do que o resultado. Em 1978, no MoMA, Casimiro colocou-se atrás do Petit Verre de 1918 (e não o Grand Verre de Philadelphia, como indicado no catálogo), que Duchamp também chamou de A regarder (l'autre côté du verre) d'un œil, de près, pendant presque une heure, e no qual ele inseriu uma lente objetiva da Kodak (Jean Clair vê um gnomo, a lente focando os raios do sol); diante dessa injunção, Casimiro realizou ali um auto-retrato fotográfico que intitulou Moi, je suis de l'autre côté mais je vous vois. Um tributo duchampiano impertinente e uma bofetada de luva branca. Várias séries de fotografias aqui apresentadas são designadas "Moi, je n'existe pas": são séries de auto-retratos onde a face do artista se torna quase invisível num jogo de espelhos, de reflexos, de fundidos, de decomposição da identidade (e às vezes de ocultação por um ovóide). Não o rimbaudiano "Je est un Autre", mas uma identidade afirmada pela negação, pela ausência. Esta é talvez a chave.
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Catálogo (em português) muito interessante, com um ensaio da curadora Isabel Lopes Gomes e uma entrevista com o artista (que, no entanto, parece não apreciar as entrevistas). E um filme (ainda não visto).
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