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JORGE MOLDERJEU DE 54 CARTES![]() CARPINTARIAS DE SÃO LÃZARO - CENTRO CULTURAL Rua de São Lázaro, 72 1150-199 Lisboa 25 JAN - 30 MAR 2019 ![]() ![]()
Jorge Molder, Jeu de 54 cartes, 2017 - Joker
Mas as cartas são feitas para enganar, é claro. Porque fazer batota é jogar contra, é quebrar as regras e ser livre. Molder defende-se dizendo que vencer não lhe interessa. Mas ele semeia o seu trabalho de pequenos sinais de artifícios. Primeiro, um título em francês, deste artista português para uma exposição em Portugal: porquê este afastamento? Certamente não é snobismo da sua parte. Então, talvez um jogo sobre a ambiguidade da palavra: un jeu, em francês, significa tanto o acto de jogar quanto o baralho de cartas (mas em português, há duas palavras: jogo e baralho) . E também as suas referências a Mallarmé, a Duchamp, a Perec: o jogo como atividade intelectual, mais que como passatempo ou como vício, como com “César” de Marcel Pagnol ("tu me fends le coeur") ou com o pobre António das Arábias (e o seu cão Pilatas) de Aquilino Ribeiro ("o maldito livro das quarenta folhas"). E isso num país onde uma decisão do Supremo Tribunal, para regulamentar os jogos de azar, cita Dostoievski, Zweig e o dito António das Árabias (no 7.1.1). E depois, 54 cartas? Mas eu conto 55 aqui! Outra "trapaça". Quatro "naipes" de 13 cartas (Caras, Mãos, Bocados, Espectros, em vez de Copas, Ouros, Espadas e Paus). Dois jokers, fazem 54. E depois o 55º, este "Gabarito", pequeno dado de cores perdido num grande fundo preto, quase invisível lá onde ele está (mal) suspenso, apenas um toque de cor fosca (com o primeiro joker) neste universo preto e branco, diapasão dissimulado, medida de todas as coisas, que ninguém vê e que poderia portanto ser a chave mestra de todo este trabalho. Porque o que conta aqui, não é o valor de uso das cartas, mas o conceito que as sustenta. Além disso, é esse mesmo Gabarito que fecha a sua monografia, a qual se abre numa outra imagem também despojada e enigmática (da série "A interpretação dos sonhos", 2009). Aqui, nem Cezanne nem Caravaggio nem La Tour. Mas imagens que temos a impressão de já ter visto, como se todo o trabalho de Jorge Molder (quase todo, porque certos trabalhos não são auto-representações) fosse apenas uma obra, incessantemente declinada, renovada, recriada, com o passar do tempo. Como se voltássemos sempre ao mesmo assunto. Mas não nos enganemos: este assunto não é o auto-retrato, Molder não representa as suas emoções e estados de alma, não se enquadra na categoria dos auto-retratistas sistemáticos (Rembrandt, Van Gogh, e tantos fotógrafos desde Robert Cornelius). Ele não usa o seu corpo para personificar, para contar uma história (como Molinier ou Cindy Sherman, por exemplo). O seu corpo, o seu rosto, as suas mãos são simplesmente o material que ele utiliza (seguindo uma abordagem muito diferente, Francesca Woodman fez o mesmo). Como escreveu Hans Belting na conclusão do capítulo ("o próprio e o estrangeiro") que lhe dedica no catálogo Faces: "fotografando um duplo adornado da máscara do seu próprio rosto", enfatizando essa "ambivalência programática entre o rosto e a máscara". Vamos então para as fotografias em si mesmas. Enquanto que a exposição no MIEC de Santo Tirso era, aparentemente, mais linear, aqui a exiguidade do lugar e a sua forma peculiar impuseram rupturas, verticalidades que nem todas são felizes (como a quase-invisibilidade do Gabarito). Não seguirei também o percurso de A a Z, preferindo começar pelos Espectros, dispostos em três linhas. Aqui, e aqui apenas, o seu corpo se vê por inteiro: no meio, seis imagens de um maestro gesticulante, habitado por uma dança interior na qual ele nos conduz; no topo, seis imagens de dor, de desespero, uma torção do busto envolto de negro. Em baixo, sozinho, dramático (um pouco excessivo, talvez porque neste dispositivo de linhas), uma imagem de exaustão, da queda, do final, devorada pela sombra. O naipe "Rostos" é evidentemente o mais expressivo: mimetismo de dor, de sonhos, de espanto, de tristeza em primeiro plano, de frente ou de perfil (e uma vez de cabeça para baixo), nítido ou desfocado. A máscara em si. Os Bocados são detalhes em grande plano, o seu olho exorbitado, a sua boca gritando, buraco negro à Bacon, que nos parece desafiar (e Beckett também, esse de "Not I"). O último Bocado é uma mão que aponta para o próximo naipe. Enquanto que as outras fotografias encorajavam ao olhar empático e contemplativo, as Mãos, elas, são imperativas, elas indicam, dirigem, ordenam: punho levantado, escansão (divisão métrica), sinais. Lá vê-se o envelhecimento (Molder tem a minha idade), os tendões, a artrite. Bizarria da montagem peculiar, a última mão está separada do resto, à parte, num canto.
Jorge Molder, Jeu de 54 cartes, 2017 - Mão
Dois jokers, que permitem também indicar o percurso imposto, a ordem dos naipes. O primeiro tem um título, "Jogo de 54 cartas", fotografia da caixa de cartas, que, olhando bem, é uma fotografia a cores. O último, no final, no mesmo canto que a última mão, é utensílio e ausência: as roupas usadas para estas fotografias, dispostas como se o corpo ausente tivesse deixado a sua marca. Uma imagem mortuária. Este jogo de cartas foi um jogo de cena, e o ator fez a sua referência... Jorge Molder é sem dúvida o mais importante fotógrafo português contemporâneo vivo (Helena Almeida acaba de morrer), e um artista maior, mesmo que seja muito pouco conhecido fora do seu país (é representado por uma galeria em França, mas por outro lado tem sido pouco mostrado). Actor mascarado do seu próprio rosto, ele encarna melhor que qualquer outro o adagio rimbaudiano "Eu sou um Outro". O pouco conhecido Henri Van Lier consagrou-lhe algumas páginas, escrevendo (o que Molder negou) que ele era "um fotógrafo filósofo, ou um filósofo fotógrafo. O seu trabalho é um processo de realização de uma filosofia da fotografia em acção." Van Lier também escreveu (e, confrontados com o título desta série em francês, não resisto ao prazer de citar algumas linhas, no estilo inimitável de Van Lier, nascido no Brasil): "as suas impressões subtis estão em consonância com a topologia, a cibernética e a lógica-semiótica da língua portuguesa. Do português, elas casam o aprofundar com o reprofundar das nasais, a ondulação longa e surda, os ardores tácteis mas difusos, as penumbras, as evoluções rítmicas, as proporções imponderáveis de curvatura, as inflexões, sobretudo o distante próximo [...] Um caso de textura mais que de estrutura".
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