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TÂNIA CARVALHOCOMO SE UMA CAMADA DE ESCAMAS BEM FECHADA![]() PLATAFORMAS ONLINE 02 MAI - 30 JUN 2020 ![]() ![]()
A performance “Como se uma camada de escamas bem fechada” (2020) de Tânia Carvalho foi transmitida em directo via live streaming no canal do youtube da BoCa Bienal no dia 2 de Maio de 2020, seguida de uma conversa com John Romão, e encontra-se ainda disponível para visualização. A programação de performances comissionadas pela BoCa, a decorrer até pelo menos 30 de Junho de 2020, são, como podemos ler no site, “pensadas através do dispositivo relacional corpo-câmara-casa. Propõe-se uma relação em torno do nosso estado atual de confinamento e as linguagens artísticas mediadas pela câmera.”. No editorial do BoCa Online - que contempla para além dos live streaming de performances iniciativas que passam por conversas online ou trabalhos de casa (na secção Homework) propostos por vários artistas para que o público possa realizar, ou activar, em casa - podemos ler, nas palavras de John Romão, que o tempo que vivemos “pode servir a oportunidade para descolonizar o nosso imaginário e repensar modelos de comunicação, de produção e de apresentação performativa que, nascidos das urgências específicas deste contexto crítico, possam ser consequentes e se possam prolongar no futuro.” Apresenta-se assim o BoCa Online não como uma adaptação de uma programação anterior ao espaço virtual mas como uma resposta de reflexão sobre o mundo e os seus estados, dando centralidade ao corpo, à casa e à câmara. O editorial cujas intenções aqui se encurtam pode ser lido na íntegra aqui: www.bocabienal.org. Creio que não será possível, ou possível ainda, equacionar-se nem as perdas nem os possíveis ganhos que a nossa experiência, face a objectos artísticos que nos encontram via ecrãs, tem (ou terá) face às possibilidades. Isto porque, se é verdade que nem a disponibilidade daquele que se disponibiliza a ver, no caso, esta performance, conseguiria em hipótese ser a mesma caso se tivesse deslocado a um local para vê-la e para estar em presença quando ela acontece, é também verdade que a atenção que pode ser prestada a, no caso, esta performance, se amplifica com a possibilidade de voltar a vê-la, e vê-la sempre na sua actualidade de “vivo”, de tempo real que é passado, mas que continua com a mesma realidade de ser presente. Claro que esta problematização não é nova, mas é nova também, quando se torna recursivamente banal ou estrategicamente consensual. Em estados de excepção talvez o que tenha de mudar, para que mantenhamos a nossa funcionalidade produtiva, seja precisamente a dinâmica entre a atenção e a desatenção. Parece-me determinantemente relevante que o editorial do BoCa Online aponte a consequência e o prolongamento pelo futuro de práticas ou desvios padrão de abordagens que poderão ser neste tempo iniciadas, mas que virão a dar-nos esse re-pensamento. O live streaming já era uma ferramenta (seria uma técnica?) mas estamos a voltar a pensá-la quando a ela recorremos como padrão. E o que nos poderá dizer este aproveitamento de formatos quando outros, também padrão, não podem ser mantidos, abertos, executados? Este pequeno apontamento - e tantas ideias e tanto silenciamento quanto ao que dentro do mundo de Tânia se poderia referir - sobre a performance “Como se uma camada de escamas bem fechada” carrega essa ainda dificuldade de pensar as perdas e os ganhos face à forçosa alteração de estratégia de uma artista que prima pela perfeição técnica aparente; em que tudo se articula de um modo não-caseiro mas profissional, mesmo quando tudo é também aparentemente simples. Para nos falar do título, em conversa com John, Tânia diz que procurou perceber como era a estrutura do cabelo, que é feita por escamas, o elemento central desta performance. É também este cabelo, a sua performatividade e a sua articulação com a música, da autoria de Tânia, que me lembra um outro cabelo com uma forte presença, o de Marta, da dupla Von Calhau!. Diz Tânia que a performance se foi desenvolvendo naturalmente, com o foco no que ia ser mostrado, música e movimento: esta imagem a que tinha também ela acesso por via do seu ecrã. Tudo se relaciona com o susto e com a compreensão de que afinal nunca estamos sozinhos, mas sempre acompanhados. Começa com uma espera vermelha: “A performance iniciará em breve”. A cortina cai e abre-se uma imagem: uma esquina, uma música que nos dá uma certa tensão emocional, um suspense leve. Há uma sombra que se mexe muito próximo do que poderemos supor que seja o alvo do foco de luz numa das paredes. A imagem é fria, há um filtro que a faz ter uma variação do azul ao amarelo, com uma certa subtileza - a possível em streamings - na gradação da cor. O chão é de madeira, não podemos dizê-lo pela cor, mas pelo padrão, também ele escamoso, em certa medida. Na forma da sombra, primeiro incompreensível, surgem leituras; cabelo?, sim. Cabelo. E depois mãos, numa espécie de luta invisível com a mancha de luz. Luta ou carícia, um limbo entre ambos. Há momentos de ternura, mas muitos de convulsão, onde também entram esses cabelos, e pelo delay, não se torna claro se a sombra do corpo não poderá ser a de um monstro antropomórfico e não de um humano. A sombra do movimento tem as suas quebras, e os meus olhos não compreendem ainda se elas resultam do dispositivo. Confusão, mão, confusão, mão. O som altera-se, cai um véu sobre a câmara. Parece um nevoeiro instalado, mas num só plano. Há um corpo-sombra, negro, que se mexe por detrás deste véu cinza. Levanta-se o nevoeiro, uma massa de cabelo defronta-nos e também as mãos. Torna-se corpo, corpo mesmo, e já não sombra. Entrelaçam-se as mãos nesse cabelo, e tocam-no. Uns braços, um corpo, o cabelo já com um corpo. O corpo de joelhos perante a câmera, cortando a linha que nos faz compreender o espaço como um canto. Os braços e mãos fora do enquadramento, mas ainda como sombra, mexem-se. Agitados. Há algo na ligação entre o som e o movimento das mãos, dos dedos em suspenso, que evoca o terror. O imaginário do terror. As mãos, assim como o corpo, vestido da cor do cabelo comprido, preto, vão entrando e saindo do plano, ligando-se às sombras e a esse terror. Não há uma face. Toda ela coberta de um plano de cabelo. O corpo aproxima-se da câmara, voltamos a ver o canto. Voltam a ter maior importância as sombras e o círculo de luz que as permite. As mãos são o único elemento de pele a que nos é dado acesso. Lembro-me de uma fotografia da Helena Almeida, das mãos caídas sobre um portão. Um cotovelo eleva o corpo, que se vai libertando do adormecimento do terror ou do terror que o leva a certo estado de movimento, o corpo liberta-se e usa as mãos com uma cadência natural: sacode os cabelos da face que ainda não havíamos visto. Uns olhos fechados abrem-se e parecem habituar-se à luz. Descobrem a câmara num seguimento de movimento curioso, quase animal, quase uma sequência de imagens do filme REC. A mão tenta tocar-nos. A virtualidade não permite. O corpo, que agora já é uma pessoa - com a sua cara, sentimentos e movimentos humanos - senta-se a um canto. Volta, dançante-gatinhante, à câmara, mãos confusas, imagens misturadas. Cai um filtro. Um tecido recortado com um losango imperfeito. Vemos-lhe a textura, que na imagem se torna uma série de pequenos pontos com intensidades de brilho dissemelhantes. Passamos a ver o quarto - a esquina, digo - apenas por uma linha que se alinha quase, quase, com o vértice superior deste quadrângulo de enquadramento. A pessoa vai passando, vamos apanhando os vislumbres dessa passagem, impedidos de acompanhar todo o movimento que é feito. Espreita. Um olho, um dedo. Tudo Escuro. Novamente a névoa. A imagem final tem uma gradação do verde ao rosa. Acaba o som. “A conversa iniciará em breve...” sobre um fundo azul. E no meio dela: “Este isolamento está nos a mostrar que estamos todos juntos, que somos só uma coisa”, diz Tânia. ![]()
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