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EXPOSIÇÕES ATUAIS


Vista da exposição Dois Stereos, de João Pimenta Gomes, Galeria da Boavista, 2025. Foto © Bruno Lopes


Vista da exposição Dois Stereos, de João Pimenta Gomes, Galeria da Boavista, 2025. Foto © Bruno Lopes


Vista da exposição Dois Stereos, de João Pimenta Gomes, Galeria da Boavista, 2025. Foto © Bruno Lopes


Vista da exposição Dois Stereos, de João Pimenta Gomes, Galeria da Boavista, 2025. Foto © Bruno Lopes


Vista da exposição Dois Stereos, de João Pimenta Gomes, Galeria da Boavista, 2025. Foto © Bruno Lopes


Vista da exposição Dois Stereos, de João Pimenta Gomes, Galeria da Boavista, 2025. Foto © Bruno Lopes

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JOÃO PIMENTA GOMES

DOIS STEREOS




GALERIAS MUNICIPAIS - GALERIA DA BOAVISTA
Rua da Boavista, 50
1200-066 Lisboa

19 SET - 11 JAN 2026


 

 

 

The Impossible attracts me, because everything possible has been done and the world didn't change.
— Sun Ra

 


Roland Barthes uma vez afirmou que o ato de escutar é como um pequeno teatro em cujo palco se confrontam duas “divindades” modernas: o poder e o desejo [1]. Essas esferas — o poder e o desejo — como bem sabemos, não existem separadas, configurando uma relação dialética em que uma assombra a outra. É, também, a partir das dualidades e das suas inerentes relações espectrais que a exposição Dois Stereos, de João Pimenta Gomes, é pensada.

O título da mostra já expressa as questões que nos confrontam ao adentrar a Galeria da Boavista: os duplos, a imaginação do espaço, o aspecto sônico enquanto condutor da percepção espaço-temporal. “Dois Stereos” inclui a ideia de duplicação, entretanto é, também, um nome meta-semântico, uma vez que o próprio som estereofônico é um sistema binário: dois “estéreos” são, na verdade, quatro saídas de som. A multiplicação implícita no título indica o procedimento que apresentará as muitas outras camadas sensíveis emergentes no percurso expográfico. Na primeira sala da galeria, nos deparamos com um objeto contundente: um enorme volume preto alocado no centro do espaço — uma estranha escultura com aparência futurista. Trata-se da réplica de uma corneta acústica utilizada em salas de cinema na década de 1920: o sistema Western Electric 16A. Conectados a ela, encontram-se quatro módulos para o sistema Eurorack de sintetizadores: um sampleador, dois filtros e um LFO (Low Frequency Oscilator). O som etéreo que infiltra a sala, composto por vozes humanas, conjura a própria história do cinema ao assinalar a transição dos filmes mudos para os falados, marcada pelo lançamento do longa-metragem The Jazz Singer, em 1927. O áudio produzido envolve aquele imponente objeto em uma aura tão misteriosa quanto sublime.

Subimos as escadas ao fundo e entramos em outra sala para conhecer o segundo sistema sonoro de Gomes. Ao contrário do primeiro cômodo, composto por paredes brancas e pela ampla vitrine da galeria, este é um espaço menos arejado, configurando uma black box — portanto, mais propício à imersão. O convite à demora é figurado na presença de um banco posicionado de frente para a instalação sonora. Aqui, podemos ver dois objetos grandes e pretos, sustentados por tripés e colocados paralelamente, embora voltados para a parte interna do quarto. Seu formato é ainda mais intrigante do que aquele observado na primeira obra: com desenho nitidamente orgânico e um material metálico de brilho intenso, as duas pétalas maquinais nos remetem simultaneamente ao nível molecular da vida biológica e à plasticidade acética do mundo inorgânico. Aqui, a referência é o instrumento musical Cristal Baschet, criado em 1952 a partir da polêmica Glass Harmonica: um idiofone friccionado do século XVIII que foi descontinuado e até mesmo proibido em alguns territórios europeus [2]. Entre essas duas estruturas, outro sistema modular Eurorack que contém cinco módulos: um sampleador, dois filtros, um LFO (Low Frequency Oscilator) e um mixer. O sintetizadores são conectados às pétalas metálicas, fazendo-as vibrar e amplificar o som — como no Cristal Baschet original. A tensão entre o orgânico e o inorgânico é refletida, também, no próprio aspecto sônico da obra: no lugar de osciladores, fontes sonoras comumente utilizadas na síntese eletrônica convencional, o artista escolhe uma origem orgânica para o áudio produzido — vozes humanas são sampleadas e moduladas pelos sintetizadores. Esta decisão ainda atualiza a fonte sonora corporal do Cristal Baschet, um instrumento totalmente acústico cujo som era produzido pela fricção dos dedos umedecidos contra cristais de vidro. Sem emitir nenhuma palavra definida, o ambiente é imerso em uma suavidade estranha e fantasmagórica.

Por último, ao descer as escadas de volta para a sala principal, surge inesperadamente a última obra da exposição. Doppelgänger encontra-se entre os dois ambientes da galeria, no corredor que os conecta. A pequena Polaroid quase passa despercebida, mas é precisamente o caráter furtivo aquilo que sublinha sua função na mostra. Um entre-lugar omitido no preciso título da exposição, Doppelgänger emerge como um excedente, um substrato sobressalente e residual das duas máquinas escultóricas-sonoras em pleno funcionamento: uma diminuta imagem aparentemente deslocada. Salomé Voegelin argumenta que apesar de não ser um atributo do visível, o som atinge profundamente o âmago da visualidade, mostrando movimentos subterrâneos e invisíveis da organização visual do mundo, de modo a questionar a centralidade do olhar [3] A única fotografia presente na mostra reside no centro dessa disputa. O título da obra novamente explicita o dispositivo binário que conduz Dois Stereos, mas não apenas: ao evocar a ideia de sósia — um duplo vicário — ela também convoca o caráter espectral e fantasmático que permeia todo o projeto.

Evidentemente, a fantasmagoria é um conceito fundamental para a fotografia, mas também o é para o cinema. Nesse sentido, a obra na sala principal que replica o Western Electric 16A se inspira na ideia de som duofônico, isto é, um sistema estereofônico falso que emula a percepção tridimensional ao dividir um sinal mono em dois canais, criando diferença temporal e sonora entre eles. Essa discrepância normalmente é gerada por uma pequena defasagem entre os canais e pelo uso de filtros low pass em um, e high pass no outro. Uma espécie de doppelgänger sônico, aqui, mais uma vez, o que está em jogo são mais as reverberações do que os objetos em si.

A exposição estabelece uma ressonância sensível, também, entre múltiplas temporalidades, criando um campo de fricções, ecos e sobreposições históricas no mesmo espaço físico. A década de 1920 é evocada pela réplica do Western Electric 16A, marco da engenharia acústica de seu tempo. Os meados do século XX surgem na referência ao Cristal Baschet, cuja sonoridade e estrutura remetem ao ancestral Glass Harmonica do século XVIII. Em seguida, a fotografia Polaroid convoca a sua época icônica, entre as décadas de 1970 e 1980.

Por fim, o Eurorack é um sistema modular desenvolvido nos anos 1990 e difundido nas duas décadas seguintes. As diversas camadas históricas são acessadas de forma fragmentária e não linear através de percepções sensíveis provocadas pela experiência expositiva: são “temporalidades hápticas”, termo que tomo de Tina Campt [4]. Em More brilliant than the sun, Kodwo Eshun explora a ideia de uma “memória de pele” que seria ativada sonicamente; essa ativação teria a capacidade de construir um novo sistema psicomotor a partir do antigo “eu”, além de causar um deslizamento do sujeito para dentro da máquina mnemônica. Trabalhando com memórias várias, porém sobretudo com a fabulação de um espaço sônico e visual, Dois Stereos cria uma espécie de intervalo. A representação dupla dessa suspensão cria parênteses na cadência ora caótica, ora ritmada do cotidiano, onde, por alguns momentos, a escuta vira corpo.

 

 

Isabel Stein
É doutoranda em Estudos Artísticos na Universidade Nova de Lisboa. Mestre em Comunicação e Cultura pela UFRJ, integra os grupos de pesquisa Observatório de Estudos Visuais e Arqueologia dos Media (NOVA FCSH) e Imagem/Tempo (UFRJ). Sua investigação e prática centram-se na fotografia, explorando suas articulações com a história, a arte e a política. Tem participado de conferências e publicações acadêmicas sobre a imagem fotográfica. Além disso, desenvolve projetos curatoriais e artísticos, como a exposição Imagens intangíveis (2025) e a fundação do InterStruct Collective.

 


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Notas

[1] L’obvie et l’obtus (1982).
[2] A Glass Harmonica foi desenvolvida durante o Iluminismo, a partir de uma ideia do compositor Christoph Willibald Gluck e aperfeiçoada por Benjamin Franklin em 1761. O instrumento produzia sons etéreos e penetrantes através da vibração de taças de vidro rotativas e de diferentes tamanhos, que eram tocadas com dedos umedecidos. Ele foi um sucesso durante o século XVIII, reunindo entusiastas como Mozart, Beethoven, Goethe e Franz Mesmer. O último utilizava o instrumento como ferramenta fundamental nos processos de cura do seu “magnetismo animal”. A associação com o mesmerismo, dentre outros fatores, levou a Glass Harmonica ao desuso. Musicologistas e médicos a apontaram como causa de distúrbios nervosos, devido ao seu “timbre fantasmagórico”. Havia, ainda, a suspeita de que o instrumento envenenava quem o tocasse, uma vez que o vidro, na época, continha uma substância tóxica. Após a morte de uma criança durante um concerto, ele foi finalmente proibido em alguns estados germânicos. Assim, embora o Cristal Baschet tenha sido inventado em outro contexto, ele carrega essas histórias espectrais. Estas e outras informações podem lidas no artigo “The glass armonica: Its development, use, and misuse as a musical instrument of social change in the Eighteenth century”, de Robert B. Craig.
[3] Sonic possible worlds: Hearing the continuum of sound (2014).
[4] Listening to images (2017).



ISABEL STEIN