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EDUARDO F.MEDUARDO F.MVERÃO Rua Ferreira Chaves 12 C/v, Lisboa 20 MAI - 01 JUL 2023 Peixes Pássaros Mães
Lá fora ferve a terra das criaturas que se aproximam umas das outras, se tocam e falam. Depois chega o verao, uma intensidade nova: os aromas, os aros luminosos, uma agudeza, uma intransigência das coisas, a forma das cores que me fortalecem. E uma noite começo a escrever. Tenho uma memória. Nada foi esquecido, vem adequado agora aos vindicativos sentidos da expressão e da representação. E assim caminho para o esgotamento, no centro da fecundidade. As pessoas perdem o nome, as coisas limpam-se, cessa a fuga do espaço e o movimento dispersivo do tempo. Fica um núcleo cerrado. Fico eu. Os versos assemelham-se a um corpo (...) Talvez eu mesmo comece aqui, neste momento ignorante, onde se faz uma claridade inexplicável. Herberto Helder
(Estes versos de Herberto Helder pertencem a livros diferentes e esta composição conjunta foi escolha livre da autora)
O cartaz da exposição de Eduardo FM chamou-me à atenção, aquele bicho ficou-me na pele. Pedi à Antónia Gaeta, criadora do espaço onde está patente a exposição, que me falasse um pouco desta pessoa e do seu trabalho. Contou-me que, quando o viu pela primeira vez no Convento das Mónicas, quis saber mais, mas não encontrou nada. Quase ninguém sabia nada… Por um feliz acaso que nunca é acaso, pelas palavras da própria, o coleccionador Alberto Caetano voltou a falar-lhe de Eduardo e apresentou-os. Agora, com esperança na continuidade de contar este segredo, o trabalho do artista está exposto no Verão, até dia 1 de Julho. Fora do circuito e de sistemas, e, por isso, livre, aberto, sem possível (e ainda bem) nomeação, o trabalho deste artista, muito poucas vezes falado e mostrado, é um mundo desdobrado em personagens que se mostram e se escondem sem que saibamos logo a razão da sua força. Aqueles são, também, os corpos que somos, sós, sempre, mas em conjunto — nesse, por vezes violento, testemunhar do tempo de recepção — porque está a acontecer connosco! — Não à nossa frente, mas à nossa volta, como sempre nos disse Merleau Ponty — e, de repente, tornamo-nos responsáveis — em querer o espaço que ocupamos ou em ocupar outro. Mas estamos comprometidos. Estas personagens são testemunhas da nossa vida e nós somos testemunhas da vida delas. Fazemo-nos existir, mutuamente. Reciprocamente. É preciso saber: não podemos largar, temos de continuar. Um traço entrelaça-se com outro, num abraço brusco, inevitável. Um cruzamento desajeitado de amor — como todos são; alternam-se, dançam, geram — como todos fazemos. O confronto coloca-nos perante lugares ainda confusos, ainda distantes, que precisamos de reunir. No meio, de pé, estou rodeada, mas não cercada. Ali, no meio, de pé, estou acompanhada. Para onde quer que olhe, vejo — um corpo, vários corpos em presença; o reinventar de se estar no mundo. Estamos perante um alfabeto expandido, sem defesas, um revelado que só raramente nos alcança. E, de repente, por breves momentos, podemos compreender. Eduardo FM era pasteleiro e o seu trabalho aparece aí mesmo — nesses suportes de café, de guardanapo, de bolo, de caixa, de embrulho, de rotina, de reserva, de poupanças, do costume, da graça quotidiana, da história da vizinha, da dor do amigo, do olhar de alguém que não se sabe quem. Aparece na hora habitual do cliente habitual, na primeira e na última luz do dia. É nesses lugares, desses lugares, que nascem as histórias, os mitos e as realidades de Eduardo FM. Não rendidas a nenhum sistema nem discurso aprisionado, são desenhos vivos, entregues ao mundo. Despojados de expectativas, amáveis, sempre, na sua comparência; simples no seu aparecer — por pura vontade, desejo, loucura ou compulsão. Existem nesse risco e coragem que os fazem assumir-se, ganhar vida própria — ainda a tremer, porque nada está parado. Absolutamente nada é quieto. Tudo se mexe. Não óbvias nem binárias, visionárias do tempo sem tempo, estas personagens falam-nos de sermos verticais mas também circulares — portanto, sobretudo, de nos podermos transformar, de nos podermos esticar, moldar, mudar. Não há ilusão, não há pensamento, não há regra — é uma pulsão mais forte, está condenada. E ainda bem. Esse impulso fala-nos do sexo, da morte, de sonhos e pesadelos. Ao mesmo tempo, como que numa tensão silenciosa, é um trabalho leve, cheio de graça, ágil e divertido; despretensioso, sem saber; na ousadia de existir — na verdade, a única maneira de, então, podermos falarmos do sexo, da morte, de sonhos e pesadelos. Talvez seja até a única maneira de falar da vida, esta vida, a que estamos a viver. São reminiscências dos lugares da infância, que sempre nos assola, a figura mítica da fala, ou a sombra dos objectos perdidos no tempo, cheios de promessa e oportunidade. Imagino a delicadeza ao mesmo tempo que imagino a fúria de desenhar. Estes pequenos desenhos transportam-nos para universos do cuidado, do pormenor, da atenção. O detalhe que pede para ser olhado, reparado e amado. Sobretudo amado. Como nós. Os animais que existem e também aqueles que não existem. Os animais que somos, também — porque somos todos bichos, e um dia seremos todos bichos mortos. [1] Esta horizontalidade crua, nessa que é a mais transformadora potência de ser — este modo de ver o mundo em que cada coisa existe da mesma maneira — cada uma e todas. O pequeno e o grande. O pequeno que é (sempre) grande. Esse segredo… sempre esse segredo, no coração que não cessa de bater — nesse moinho rodopiante, nesse traço incontido. Precisariamos de olhar melhor e mais vezes para estes desenhos de Eduardo FM, e tentar reconhecer se não seremos nós mesmos aqueles peixes fora de água, aqueles corpos esticados a tentar chegar ao céu, aquele cristo naquela cruz; nesses momentos, quando o mundo celebra em nós aquilo que não se extingue e nos relembra que temos de fugir de uma vida sem imaginação; que, como dizia Vieira da Silva, a poesia está na rua — e que, como lhe respondia Cesariny, sempre esteve. Estas são criaturas mitológicas que, afinal, somos todos nós. Quero ser aquele peixe, aquela cara que, escondida de lado, silenciosa, vê tudo. Ou então ser aquele bicho que não sei o nome, experimentar ser de outra forma — ter coragem de ressurgir, mesmo no seio das minhas próprias mortes. Quero ser aquele desenho que se estica, que consegue mesmo esticar-se bem, que vai crescendo sem ninguém ver e sem que ninguém acredite, e saber que “não se deve explicar demasiado cedo, atrás das coisas o seu brilho cresce sem rumor”. [2] Quero ser aquela pedra, confundir-me com o chão, ser poesia — pisada, pisada, pisada, e renascida — para, lentamente, me reconstituir; ser a mesma e ser nova, inaugural, fulminantemente reanimada. Ser vermelha e, depois, ser transparente — ser real e ser água. Sei que acordam a meio da noite e se juntam todos naquele jardim. Sei que não podem ficar no mesmo lugar, porque estão vivos. Têm coisas para contar uns aos outros e depois ajudam-se a voltar a casa, à cama, para descansar — e no dia seguinte já não são os mesmos. Nunca são os mesmos. Nunca somos os mesmos… Não se vão embora, ficam, guardam-se. Partilham connosco este tempo que nos é comum — talvez para não nos sentirmos completamente sós e finalmente inventarmos o colectivo, o partilhado, o dominó. São bichos que atravessam o mundo, nesse amor obsessivo que nos obriga a libertar os excessos, e onde as coisas — estas coisas — podem nascer. Estes desenhos vivem nos sítios onde está a nossa própria vida. Porque, aqui, oiço vozes que agarram todo o espaço, como um lume que se reparte entre todas as formas. Confio neles. Porque, aqui, tudo canta. E, como diz Herberto Helder, cantar é enorme. Estamos todos neste coro. Voltarei a estes lugares, quando quiser, porque, agora, já existem em mim. E porque são verdadeiros. Estes peixes pássaros mães — já entendidos dos assuntos da liberdade — vão saber voar. E, de repente, há algo de libertador no enigma singular deste pasteleiro mensageiro. Não sei se é verdade, não sei o que é. Mas, onde o brilho sombrio das nossas vidas parece ganhar uma certa unidade, onde se parece suster, por um breve momento, a dor do mundo…é aqui. É uma pequena pedra que olha para mim.
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Eduardo FM nasceu em Manteigas no ano de 1949. Concluiu no final dos anos 70 em Lisboa – cidade onde vive e trabalha -, e em horário pós-laboral, o 1º e 2º ciclos do antigo curso do Liceu. Auto-didacta na prática artística, a sua obra conta com centenas de trabalhos de desenho e pintura.
Notas [1] Frase retirada do filme "Os Mortos" de Gonçalo Robalo [2] Final do poema "Da verdade do Amor" de José Tolentino Mendonça
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