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JOÃO PIMENTA GOMESÚLTIMOS SONSGALERIA VERA CORTÊS Rua João Saraiva 16, 1º 1700-250 Lisboa 22 FEV - 28 MAR 2024
Importa — sim, in-porta para poder entrar em profundidade — que o gesto artístico nos lembre que o que nos acon-tece in continuum tem de ser aparentemente interrompido para que um tal encadeamento linear de causas e efeitos — já ensinado ao nosso polegar que o performa automaticamente no scroll mórbido ao qual já nos habituámos — não nos tolha o entendimento de que as imagens não são o que vemos mas o que nos permitem ver. Ver, nesta exposição, sinestesicamente; mas também, cinestesicamente, como quem ‘come com os olhos’ e assim se desloca voluntariamente no mundo — no (seu) mundo participado e em Aberto — sintonizando outras frequências, tocadas por instrumentos outros. Impeçamos o mundo que nos é dado a ver linearmente de nos adormecer às claras com imagens que nos apagam o corpo; o corpo que vê, escuta, toca, cheira e sabe. O corpo que se demora; o corpo que joga. As imagens encontram-se em inesperadas correspondências na nossa escuridão; acontecimento esse, fulgurante, e portanto, que não é de todo linear…Saibamos o que é que temos, afinal, que ver e a haver com isto. É por isso importante ter cuidado com os recortes e/ou crops que fazemos ao que sabemos. Nesta exposição há uma fatia de bolo que sabe…Sabe àquilo que eu não sei. Entremos. Uma parede negra, uma fotografia e um, dois…Quatro, conferi na folha de sala, peças com nomes impronunciáveis, como por exemplo “mltrn daeolian imprv II” — Existem, felizmente, vários gags (= mordaças) nesta exposição. Todas as quatro peças têm a mesma designação técnica: “Coluna de som, amplificador de potência, sintetizador modular”. E, esta não é mais uma parede revestida a negro, ou quaisquer outras situações de expositivo/ dispositivo que já não nos espantam por se terem tornado fórmulas esvaziadas de sentido(s) fora de si; “Se elas [as obras de arte] nada mais têm fora de si mesmas a que possam aderir sem ideologia, de nenhum modo se pode estabelecer por um acto subjectivo o que lhe falta”. [1] Por vezes, no espaço discursivo da arte contemporânea, também afeto às fórmulas de rentabilização, cómodas ao bolso e ao olhar calcificado por curto-circuito dos visitantes, juntam-se à parede negra, soluções como a manta térmica dourada ou até areia…Areia do deserto que recusamos atravessar… Como em Pessoa, “Grandes são os desertos, e tudo é deserto” e eu estou ainda “com a mala aberta esperando a arrumação adiada” — MALA que é anagrama de ALMA, i..e., aquilo que em mim sente, segundo chave franqueada por Silvina Rodrigues Lopes para o mesmo poema [2]. Refiro-me a esse elo patético (de pathos) — e do desdobramento por afecção da subjetividade no colectivo [3] — que verdadeiramente encadeia e faz as imagens encandearem superfícies negras, que afinal nada têm de superficial se olhadas em profundidade. Há uma cegueira que é desencadeada por um excesso de ver. Escutemos. Os quatro objetos, também negros, são já uma ondulação da parede negra; entramos através da possibilidade de escutar o que em nós a escava e por isso cria um espaço novo de ressonância — São, inquestionavelmente, quatro esculturas. E, os Últimos sons são afinal os primeiros, se não mesmo os primevos: Esse novo espaço enche-se de uma original sonoridade originária: Já no interior da gruta, todas as imagens. As imagens — e também as sonoras — emergem dessa negatividade cada vez mais precisa e que na exposição precisa de nós. O João expõe as suas “mala[s] aberta[s] esperando a [nossa] arrumação adiada” — Refiro-me, objectivamente, aos sintetizadores modelares posicionados no chão e ligados às colunas de som, cuja forma sugere algo que se in-completa pela subjetividade em órbitas de significantes e não se fecha em significados (conceitos). Por isso…já lá voltamos. São já muitas as camadas de subjetividade sonora esculpidas. Detenhamo-nos agora nas três camadas de bolo, de um saber e sabor espectral: Percebo-me a percorrer um gradiente de sabores e não sei ainda (a)o que sabe esta fatia — informa-me o texto curatorial por Germano Dushá — de “red velvet” (= veludo vermelho). Trata-se de uma fotografia, a preto e branco, em que uma mulher sob lençóis, ao que parece numa cama, segura um garfo e recipiente descartáveis; dentro do recipiente de folha de alumínio está a fatia de bolo com nome misterioso. Projeto(-me) na mulher (n)uma hesitação (se não mesmo uma excitação) que nada tem que ver com a mulher, a saber, vestida com decoro, mas antes com a fatia de red velvet e com tão delicado momento de provação. A fatia de bolo está por ser provada, e a prova (diria) é que o garfo de plástico continua imaculadamente branco…Como os lençóis, também eles, com duas texturas; um listrado adamascado que se comunica com o brilho da folha de alumínio. Observo a imagem como o protagonista do livro de Italo Calvino com o mesmo título, Palomar, diante do que no quotidiano é imprevisível, e portanto, possibilidade excitação, i.e., redirecionamento do desejo, da pulsão; da Vida enquanto força de realizar. Em particular, quando o Senhor Palomar se detém diante da vitrine de uma loja de queijos. Esta exposição não previu que eu, dias antes, também tivesse estado diante de uma vitrine que 'expunha' fatias de bolo com ‘títulos’ que descortinavam o seu conteúdo. A única hesitação possível era uma fatia de red velvet: A fatia de bolo era a própria cortina de veludo vermelho ainda corrida…Essa pequena hesitação na exposição do seu conteúdo fê-la — na negatividade do meu saber-sabor — ser orbitada por um chorrilho de sensuais significantes. Desse instante sinestésico, e portanto sensual, uma vez que o que está em causa é o entretecimento dos sentidos, o toque confirma a minha presença lá e aqui; inteira. A cor do inconsciente é vermelho, segredou-me (corrigindo-me) em tempos um famoso psicanalista, sem grandes explicações, logo após ter afirmado ser negro. Sei agora que, mais do que veludo vermelho, se trata de veludo encarnado. Era uma armadilha. Fiquei apenas pelo café; recusei a promoção: Na compra de uma fatia de bolo oferta do café por dois euros. Os processos artísticos demandam recusa; essa recusa que nos aproxima do nosso Eros. A capacidade de espera, e portanto de demora, é-lhe proporcional. Aqueles que confiam no Real — no Real pulsante — sabem que há coisas que apenas se nos entregam no seu próprio tempo; que se contorcem, ondulam sinuosa e silenciosamente como veludo vermelho em significantes, i.e., imagens: Encarnadas no toque aveludado da pétala de uma rosa; numa língua estrangeira e do estranhamento, ROSE, anagrama de EROS…O gesto, nesta exposição, é também de descortinar demoradamente o que sempre lá esteve. Lá onde? Terá o meu amigo/a leitor/a (afinal já nos tornamos íntimos) de cair em Si, como eu, para saber. Estarei agora a referir-me a notas musicais? Nem eu sei, mas a fotografia da fatia de bolo, uma vez mais, sabe. Uma pista: Estamos na exposição Últimos sons e não Últimas notas…Laaaaá, Siiiiiiiiiiiii… Como nos adverte Byung-Chul Han é preciso resistir à “transparência” enquanto “imperativo dataísta” (data = dados, informação), a uma tal “obrigação de transferir tudo para dados e informações, isto é de viabilizar”, de ‘coagir para produzir’ cada vez mais, destruindo “o espaço para o jogo e para as narrações”, uma vez que “o trabalho de cálculo algorítmico não é narrativo, mas puramente aditivo”, podendo por isso ‘ser acelerado à vontade’. Dir-se-ia tudo aquilo que mina a nossa capacidade de espanto, segundo o pensador, aquilo que “faz com que a produção de saber se torne pornográfica”:
Sem Eros, os passos do pensamento degeneram em passos de cálculo, isto é, em passos de trabalho. O cálculo está nu e é pornográfico. O pensamento reveste-se de figuras. Não é raro que seja retorcido e sinuoso. O cálculo, pelo contrário, segue um caminho linear. [4]
Naquele dia — o da provação tornada pro-vocação — sentia-me particularmente adormecida pela superficialidade mórbida das imagens. Nesse “caminho linear”, e portanto, onde os desvios de gratificação, porém sem as qualidades da graça, vão direto ao assunto: São promocionais, implicam-nos sempre numa redução de valor. Encontrar um abismo na superficialidade é já aproximarmo-nos de um estado de graça, onde o Valor aspira ao prazer pela recusa do Tudo — prazer esse re-corrente-mente desviado, e com ele, extraviado também o corpo. A única fotografia da exposição é essa interrupção; não do fluxo das coisas, inapreensível, mas da possibilidade calculada de deslizar confortável e velozmente, afastando-nos da visão do que em nós quando descortinado num processo de individuação é paradoxalmente comunicante. Para tal, uma obra tem de “ter algo fora de si mesma” — algo que não atue convenientemente como um espelho, em tempos em que o narcisismo (ou a arte populista) coloca à prova a nossa dimensão est-Ética. Antes, algo a ser por nós provado, já que ‘a verdade não carece de prova’ [5] — Nada que se possa dizer ou desdizer…Diferentemente, um gag, que é para Giorgio Agamben a impossibilidade de dizer; o lapso de memória, o recalcamento de algo no qual a linguagem não encontra sentido, surgindo então como gesto. Nesta exposição “a cor é o lugar onde o nosso cérebro e o universo se reúnem” [6] — Mas numa reunião particularmente íntima. Note-se que tenho vindo a discorrer a partir de uma fotografia a preto e branco; é que o tom de vermelho que me fez hesitar em comprar a fatia de red velvet pareceu-me sintético…“Pois o sentido, em que a obra de arte se sintetiza, não pode ser apenas algo em que lhe incumbe elaborar, nem também a sua substância.” [7] Essa tonalidade sintética do inconsciente é (re)encontrada nos sintetizadores que informam as colunas de som — ou as malas do João por arrumar… Numa rápida pesquisa por “red velvet” no Google, o algoritmo especializado em servir as minhas hipotéticas necessidades tornadas computáveis e portanto previsíveis, disponibiliza-me logo no primeiro resultado uma publicação que descreve sumariamente a origem do bolo: Os processos de crescente industrialização, e por conseguinte de processamento dos alimentos, fizeram com que a substância original responsável pela sua cor avermelhada tenha vindo a ser substituída por corantes naturais ou sintéticos. A cor originária devia-se a uma reação química entre o cacau, que nos meados do século XIX não era ainda alcalinizado, e o ácido do buttermilk (= leitelho). Antocianina é o nome da substância então presente no cacau. Já a minha exposição a Últimos sons tornou-se alquímica; “Se o signo, o significante, é totalmente absorvido pelo significado, então a linguagem perde o encanto e esplendor”, acon-teceu-me antes, o “luxo do significante” [8]; ou a sua aventura pelo inconsciente tornada consciente — O incomputável, i.e., o excesso-acesso do sentido em que a obra de arte se sintetiza, fora de si. No dia que decidi escrever a partir de Últimos sons, já depois de ter estado na Galeria Vera Cortês, comi pela primeira vez uma fatia de red velvet — intencionalmente. Então o contrário sucedeu: Os significantes absorveram totalmente o significado…Muito sensaborão: Sem sabor e sem saber e sem odor. “Não é o significado que é misterioso, mas o significante sem significado”. [9] O prazer profundo e inesperado, esse, habita em tudo o que desconhecemos; no jogo subtil, incompatível com a performance pornográfica que é aditiva. O mistério, pelo contrário, demanda presença, integrar a luz na sombra e a sombra na luz. Retomo, por último, o sentido de gag; desta feita, é o próprio João que explica, primeiramente, com um gesto: Cobre a sua boca. Segundo o artista, o dispositivo tecnológico dos objetos negros com nomes impronunciáveis integra células fotossensíveis com filtros (gags), que funcionam por inversão: Quando há luz, o objeto não emite som — Silêncio. Quando um corpo se aproxima, ao projetar a sua sombra na célula, o filtro ‘abre-se’ como uma boca, emitindo os Últimos sons. Ocorrre-me um aforismo do arquiteto que projetou a Faculdade de Psicologia: “Procurar o significado ‘na’ forma, é como procurar o objeto perdido não onde ele se perdeu, mas onde há luz para ver”. [10] Também o meu corpo se contorce lenta e subtilmente na interação com o misterioso objeto negro, e com ele, retorcido na minha mão o recipiente descartável de folha de alumínio, produzindo um último som e/ou gesto da fotografia. Retorno à parede negra — Silêncio.
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Notas: [1] Theodor W. Adorno, Teoria Estética, Lisboa, Edições 70, 1993, p.175. [2] Silvina Rodrigues Lopes, “A íntima desordem” in Silvina Rodrigues Lopes, Exercícios de Aproximação, Lisboa, Vendaval, 2003, p. 20. [3] Cf. Giorgio Agamben, Nymphs, London; New York; Calcutta, Seagull, 2013, p.57. [4] Byung-Chul Han, Do desaparecimento dos rituais, Lisboa, Relógio D’Água, 2020, pp. 82, 83. [5] Aforismo de Agustina Bessa-Luís. [6] Cézanne citado por Maurice Merleau-Ponty, in Maurice Merleau-Ponty, O olho e o espírito, Lisboa, Vega 1997, p. 55. [7] Theodor W. Adorno, 1993, op. cit., p. 175. [8] Byung-Chul Han, 2020, op. cit., pp. 82, 83. [9] Idem, p. 83. [10] Manuel Tainha, “Identidade” in Manuel Tainha, Manuel Tainha, textos de arquitectura, Casal de Cambra, Caleidoscópio, 2006, p. 20.
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