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MATTIA DENISSERECTO VERSO E VICE VERSA![]() MAIS SILVA GALLERY Rua do Duque de Saldanha, 424 4300-462 Porto 22 FEV - 10 MAI 2025 ![]() ![]()
Mattia Denisse (Blois, França, 1967) foi o artista escolhido para inaugurar a nova galeria de arte no centro do Porto - a Mais Silva (MSG). Sob a direcção de Mário Ferreira da Silva, o nome é-nos familiar pois separa-se da sua agora vizinha Galeria Lehmann. O “+ Silva” transita para uma rua paralela e “ambiciona ser mais do que um simples espaço para exposições — é uma plataforma dinâmica de experimentação e inovação, promovendo um diálogo criativo contínuo entre artistas portugueses e internacionais” [1], emergentes e conceituados, com a promessa de um programa variado e dialogante com a comunidade artística e o público geral. A escolha de Denisse para a primeira exposição não é surpreendente. O artista francês, residente há vários anos em Portugal, é detentor de um trabalho artístico extenso, prolífero, de uma capacidade experimental fora do comum. É já conhecida a compulsão com que desenha, lê, imagina, mistura. As suas exposições são sempre compostas por um número avantajado de obras, o que indicia a sua necessidade vital e incessante pelo gesto do desenho, da leitura e, consequentemente, do pensamento. O seu trabalho inspira sempre à imaginação, sustentado por uma realidade que se transforma a cada linha, forma, cor, como espaço de possibilidade de mundos paralelos expansivos: surrealistas, oníricos, patafísicos. O conjunto selecionado é recente: 28 pinturas em papel, feitas com tinta de óleo, e realizadas entre 2024 e 2025. É-se instantaneamente cativado pelo ser amorfo que se apresenta na montra da galeria, com um olhar um tanto ou quanto vazio (ou sombrio? Não consigo adjetivar), nariz de Pinóquio e corpo mutante. O nariz faz sombra, logo há uma fonte de luz, mas o fundo verde desmente um lugar: cabe a cada espectador projetar o cenário onde esta criatura se enquadra. Esta descontextualização da figura e, logo veremos, dos textos que se seguem, é fruto de um cruzamento múltiplo de n referências, às quais se juntam aquelas que o desenho e a pintura introduzem.
Mattia Denisse, Beba-me – As Metamorfoses de Alice – Coma-me, 2024-2025. Óleo sobre papel Arches. © Mattia Denisse / Mais Silva Gallery.
A legenda dos trabalhos é composta por excertos textuais provenientes de várias fontes e em várias línguas (francês, português, inglês, japonês, código morse, código binário). Tem-se desde Alice no País das Maravilhas a sinopses do jogo eletrónico Terraria, passando por autores como Charles Darwin, Claude Lévi-Strauss e Carlo Ginzburg, só para nomear alguns. Existe um agregar de citações - geralmente de conteúdo intelectual, cultural, científico e antropológico estruturante - onde pouco importa o que surgiu primeiro: se o texto ou a imagem. As “pistas” e os “índices” que nos apresentam não encadeiam uma análise mais ou menos esclarecedora, antes, complicam o sentido das coisas e recusam uma linearidade explicativa. Lê-se, na legenda do desenho #21: “Nunca fazer listas”. Pois bem. A única indicação que a bibliografia das pinturas nos dá é que Mattia pensa o mundo nas suas aberrações e maravilhas, contrariedades e sentidos, imerso na construção de ficções altamente especulativas. Esta capacidade de gerar relações (o que é a arte sem isso?) ilustra o universo plural em que o artista se move, e que até nos pode parecer, a dado momento, aleatório, caótico, até sufocante nos seus hiatos. Somos sugados para o vórtice de um “poço de grande profundidade” (refere Laila Algaves Nuñez no belíssimo texto curatorial [2]), o que acaba por canalizar a (fuga da) contemporaneidade (um aparte: o corretor do Word sugere que utilize o verbo banalizar. Não deixa de ser curiosa esta assunção). Não obstante, as pinturas não carecem da sua componente autónoma e são receptivas a outras derivas. Mattia, em conversa com Catarina Rosendo no âmbito de Hápax (uma das suas maiores exposições, em 2022, na Culturgest), diz que os desenhos “até podem prescindir de qualquer explicação. Mas existe, sim, uma acumulação de camadas de referências. Por exemplo, faço uns desenhos inspirados num texto ou num livro, mas a seguir leio outro e acho que os desenhos que fiz têm mais a ver com as ideias contidas naquele. Não abandono por isso a primeira ligação, mas acrescento a nova à precedente. (...) Assim se abre uma multitude de leituras e interpretações possíveis.” [3] O poço afunda-se e nós vamos com ele. Lê-se, desta vez, na legenda do desenho #22: “E se o horizonte fosse vertical?”. Pois bem.
Mattia Denisse, Noticias sobre o clima:, 2024-2025. Óleo sobre papel Arches. © Mattia Denisse / Mais Silva Gallery.
Se a falta de chão e a derrapagem causam ansiedade, outros prismas mais centralizados são válidos. As pinturas são ventres das estruturas metálicas que os sustentam, e estão colocadas no espaço de modo a serpentearmos no espaço-corredor da galeria. Dispostas costas com costas, permitem dois tipos de percurso: rodear constantemente os suportes para lhes ver o recto e o verso, ou seguindo sempre em frente (sem cair na tentação de nos virarmos), e voltar pelo mesmo caminho para o segundo alinhamento de imagens (vice versa). A colocação ziguezagueante destes portais-ecrãs cria relações de simultaneidade e profundidade bem-vindas na percepção de potenciais dípticos, trípticos e/ou polípticos. Esta estratégia permite vislumbrar, por pouco que seja, o palácio mental de Mattia. (Um outro aparte: a planta na folha de sala faz lembrar os desenhos que se tornam visíveis ligando uma série de pontos numerados, ansiosos por revelarem a imagem que contornam. Parece antever as curvas nervosas de mais um “nariz mentiroso” de Denisse, elemento que está presente em alguns trabalhos. Eles são assim mas no seu contrário: o desenho mostra-se primeiro, o percurso descobre-se/imagina-se à posteriori. Parece reiterar a famosa máxima de Fernando Távora: ‘O contrário também é verdade’.)
Mattia Denisse, A Anagnorise do Unico?rnio, 2024-2025. Óleo sobre papel Arches. © Mattia Denisse / Mais Silva Gallery.
As cores vibrantes, a tinta em camadas finas e a pincelada fluída - que, numa primeira instância, conferem uma atmosfera alegre à exposição - dissimulam um mundo tenso, povoado por preocupações, dúvidas, medos, desgraças, sinistros, duplos. Mattia ensina-nos que tudo o que é da ordem do impensável tem um carácter noticioso (até as maçãs de Cézanne!), e da fantasia elege-se o delírio. A saturação dos tons torna-se, lentamente, na própria saturação do mundo: um rizoma sem limites e sem meios termos, onde o caos, o grotesco e o tóxico habitam lado a lado com as pequenas e grandes belezas do mundo: a silhueta de uma ave ou a névoa azul turquesa de um céu fatídico. Denisse esventra e apresenta, não o outro lado da história, mas o outro lado da hipótese.
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Notas [1] Site da Galeria Mais Silva. ![]()
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