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O QUE (AINDA) FAZ FALTA?
JOÃO ALMEIDA E SILVA
26/04/2025
Na Casa da Arquitectura, uma exposição percorre 50 anos de democracia através da arquitectura, entre as promessas do 25 de Abril e os dilemas do presente.
A exposição “O que faz falta. 50 anos de arquitectura portuguesa em democracia” — título que cita a canção homónima de José Afonso, editada em 1974 — interpela o passado, o presente e o futuro da disciplina num país em contínua transformação. Organizada pela Casa da Arquitectura, a mostra convida o público a revisitar o percurso democrático do país, criando uma rara oportunidade para pensar as intersecções entre Arquitectura, Cultura e Política na contemporaneidade.
Ao longo dos 900 m² da Nave Expositiva da Casa da Arquitectura, são analisadas em detalhe 50 obras em território português — representadas por maquetes, desenhos, fotografias e outros suportes — maioritariamente provenientes do próprio acervo da instituição [1]. A mostra reúne, deste modo, um conjunto alargado de conteúdos que ilustram a evolução e transformação da arquitectura no Portugal democrático.
A exposição organiza-se em sete áreas: uma instalação inicial, cinco módulos cronológicos e uma instalação final. O percurso expositivo inicia-se, assim, com a instalação Before, seguindo-se cinco módulos, por ordem cronológica: Revolution (1974-1983), Europa (1984-1993), Fin de Siècle (1994-2003), Troika (2004-2013) e Wi-Fi (2014-2023), terminando com a instalação After, sendo que os títulos dos módulos, em inglês, francês e alemão, reflectem a condição europeia (e internacional) da arquitectura portuguesa.
Entre Before e After, duas linhas paralelas, ao longo das quais os projectos de cada módulo se sucedem, configuram três corredores de leitura e circulação. Cada módulo é marcado superiormente por cinco estruturas suspensas de base quadrangular, nas quais, pelo exterior, se indicam as datas, títulos e pequenos textos/apresentações de cada núcleo e, pelo interior, se apresentam referências culturais correspondentes a cada período. Deste modo, a contribuição de arquitectos e arquitectas de várias gerações é contextualizada por manifestações artísticas, culturais e por figuras de referência que ajudam a situar cada período no respectivo imaginário colectivo.
Se em Before se evoca a repressão e a resistência cultural em Portugal, a partir das Novas Cartas Portuguesas (1972) [2], o primeiro módulo tem início com o projecto Vill’Alcina, de Sérgio Fernandez, iniciado em 1971 e finalizado em 1974 — o primeiro dos 50 projectos apresentados. A exposição resolve, deste modo e com sensibilidade, o início da cronologia, reconhecendo que a mudança trazida pelo 25 de Abril de 1974 à cultura e à arquitectura teve antecedentes que atravessaram o pré e o pós-25 de Abril.
De facto, em Revolution (1974-1983), explora-se o período revolucionário — com a emergência do social — e o pós-revolucionário, marcado pela estabilização liberal. Reflectem-se novos programas públicos e outros modos de fazer arquitectura, através de projectos como o Bairro da Bouça, de Álvaro Siza, ou a Casa dos Bicos, de Manuel Vicente e José Daniel Santa-Rita. O módulo convoca ainda figuras como Agustina Bessa-Luís, Sophia de Mello Breyner ou António Variações.
Segue-se Europa (1984-1993), onde se reflecte sobre a adesão de Portugal à Comunidade Europeia. Predominam os complexos habitacionais e os edifícios de uso público, destacando-se, neste módulo, a Cooperativa de Aldoar, de Manuel Correia Fernandes, o Bairro EPUL, no Restelo, de Teotónio Pereira, Portas, João Paciência, Pedro Botelho e Ribeiro Telles, a Pousada de Santa Marinha, de Fernando Távora, as Piscinas de Campo Maior, de Carrilho da Graça, ou o Complexo das Amoreiras, de Tomás Taveira. O interior do módulo suspenso relembra-nos a cultura coeva, da assinatura do tratado de adesão à então CEE a Saramago, passando por Eduardo Prado Coelho ou pelo filme Non, ou A Vã Glória de Mandar, de Manoel de Oliveira.
Em Fin de Siècle (1994-2003), que traduz a tensão do final do século e a ilusão que, reflectindo o passado, viu o futuro na Expo 98 e no Euro 2004, destacam-se neste módulo, precisamente, obras como o Pavilhão de Portugal, de Álvaro Siza, o Estádio Municipal de Braga, de Eduardo Souto de Moura, ou a ambiciosa e visionária Reconversão dos Estaleiros da Margueira, do Atelier Contemporânea de Manuel Graça Dias e Egas José Vieira [3]. Em paralelo relembra-se Eduardo Lourenço, Herman José, Miguel Esteves Cardoso, ou o filme Zona J, de Leonel Vieira.
Teatro Azul - Contemporânea. © Ivo Tavares Studio/Casa da Arquitectura.
Já em Troika (2004-2013), módulo que aborda a crise económica que o país enfrentou, são analisadas as mudanças na prática arquitectónica e o crescimento desenfreado do turismo. Para além de obras marcantes nas respectivas cidades como o Teatro Azul, do Atelier Contemporânea, ou as estações do Metro do Porto, de Souto de Moura, o Mosteiro de Santa Clara-a-Velha, da autoria do Atelier 15 (Alexandre Alves Costa e Sérgio Fernandez) com Luís Urbano, ou o Museu Marítimo de Ílhavo e Aquário dos Bacalhaus, do Atelier ARX Portugal, são ainda apresentadas obras relacionadas com a Saúde, como o Centro de Saúde de Vila do Conde, de Paulo Providência, ou a Educação, como a Escola Secundária Dom Dinis, de Ricardo Bak Gordon, o Conservatório de Música de Vila Real, de António Belém Lima, ou o Complexo de Artes e Arquitectura da Universidade de Évora, de Inês Lobo e João Ventura Trindade. Das referências coevas, destaque para José Gil, o Euro 2004, Paula Rego ou o Filme do Desassossego, de João Botelho.
No último módulo, Wi-Fi (2014-2023), acompanha-se a recuperação económica, impulsionada pelo investimento europeu, ao mesmo tempo que se tratam das transformações tecnológicas e da urgência climática. Vemos o Arquipélago - Centro de Artes Contemporâneas, da autoria de João Mendes Ribeiro e do Atelier Menos é Mais (Francisco Vieira de Campos e Cristina Guedes), ou a Biblioteca de Grândola, da autoria de Pedro Matos Gameiro e Pedro Domingos, obras promotoras do acesso à cultura e à coesão territorial. Em paralelo, e à boleia do crescimento do Turismo, temos obras como o Terminal de Campanhã, de Nuno Brandão Costa, ou a revitalização do Mercado do Bolhão, de Nuno Valentim Arquitectura. E voltamos a ver Álvaro Siza, com o fascinante Museu Nadir Afonso [4], enquanto vemos também as gerações mais recentes a propor abordagens híbridas e também artísticas, das referências do fala atelier a Rousseau, em Six Houses and a Garden, ou do Corpo Atelier a Cy Twombly em Exposed Concrete. Acumulam-se, de igual modo, as referências socioculturais ao período, desde o Ronaldo do Euro 2016, que Portugal venceu em França, à modelo Sara Sampaio, ao poeta Herberto Helder ou à pandemia de Covid-19 que esvaziou as nossas cidades.
© Ivo Tavares Studio/Casa da Arquitectura.
Por fim, do outro lado da linha do tempo — aquela que aponta para o futuro —, a instalação After, composta por Anexo (2024), de Sandra Poulson [5], e O que faz falta: módulo multimédia participativo (2024), de Sérgio Rebelo, encerra a mostra. Poulson evoca, desde logo, um Portugal multicultural, de regresso a condições de habitação precárias, onde os sérios problemas contemporâneos no acesso à habitação são sublinhados. E Rebelo faz ecoar o espírito dos tempos do SAAL — o programa de habitação participativa surgido após o 25 de Abril —: junta as vozes de quem constrói e de quem habita, abrindo espaço para imaginar soluções colectivas e duradouras — quase como se esta fosse, afinal, a chave para recuperarmos o direito à cidade e à habitação.
Ao associar-se às celebrações dos 50 anos da Revolução de Abril, a Casa da Arquitectura promove uma mostra que não só revisita momentos-chave do passado recente, como também reflecte criticamente sobre o presente e o futuro da disciplina. São obras que pertencem ao imaginário colectivo — e não apenas ao dos arquitectos — e que ajudam a construir o nosso território um pouco por todo o país e que habitam o quotidiano e evidenciam as idiossincrasias que colocam a arquitectura portuguesa entre as mais reconhecidas internacionalmente.
A exposição evoca também a diversidade de programas arquitectónicos — de escolas a habitação, de teatros a unidades de alojamento turístico — que, em diferentes escalas, resultam das promessas de Abril: o direito à habitação, à educação, à saúde, ao espaço público de qualidade e ao acesso à cultura. Ao revisitarmos os seus 50 melhores exemplos, somos chamados a pensar também naquilo que ainda falta construir. Não sendo nestes 50 anos que se inventou a arquitectura Portuguesa, é contudo seguro que esta mostra articula duas ideias centrais. Por um lado, torna visível o modo como a arquitectura portuguesa se consolidou enquanto produto cultural, com reconhecimento internacional. Por outro, apresenta uma disciplina culturalista, sempre em diálogo com outros campos do saber.
Poderíamos facilmente argumentar que se poderiam acrescentar (ou substituir) 50 obras da arquitectura portuguesa dos últimos 50 anos e que continuaríamos a ter um conjunto de excelência. Mais do que uma celebração, esta mostra funciona como um espelho — devolvendo-nos a imagem de uma arquitectura que se fez entre promessas e contradições, conquistas e silêncios. Importa, por isso, não esquecer que estes são os bons exemplos e aproveitar para reflectir sobre o modo de produção desta e de outras arquitecturas, sobre as condições em que Portugal foi sendo construindo e como trabalharam e continuam a trabalhar os arquitectos. Deste modo, num tempo em que o direito à cidade e à habitação volta a ser questionado, “O que faz falta” oferece um olhar lúcido e colectivo sobre a forma como a arquitectura portuguesa moldou e continua a moldar a nossa democracia. E por esta continua a ser moldada.
“O que faz falta. 50 anos de arquitectura portuguesa em democracia” tem curadoria de Jorge Figueira, curadoria-adjunta de Ana Neiva e projecto expositivo do Atelier do Corvo. A mostra foi inaugurada a 26 de Outubro de 2024 e estará patente na Casa da Arquitectura, em Matosinhos, até 7 de Setembro de 2025.
João Almeida e Silva
Arquitecto e Investigador no CEAU da FAUP, Visiting Scholar na Universidade de Princeton.
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Notas
[1] É a primeira exposição extraída do acervo da Casa da Arquitectura, a qual, para esse efeito, também recorreu a elementos de outras fontes de forma a enriquecer o olhar sobre os últimos 50 anos do panorama arquitectónico em Portugal
[2] De Maria Isabel Barreno, Maria Teresa Horta e Maria Velho da Costa, com locução de Catarina P.
[3] Na verdade, relembre-se que esta exposição mostra 49 obras e um projecto, precisamente a polémica Reconversão dos Estaleiros da Margueira, que propunha, em Almada, a criação de uma cidade intensa, com arranha-céus e grandes estruturas viárias, mas também equipamentos e espaços públicos qualificados.
[4] Uma nota final para a presença transversal de Álvaro Siza, que atravessa as cinco décadas com produção relevante, sendo, por isso, representado em três dos cinco núcleos — o Bairro da Bouça, no primeiro módulo, o Pavilhão de Portugal, no terceiro, e o Museu Nadir Afonso, no último.
[5] Sandra Poulson (Angola, n. 1995), artista interdisciplinar, adopta uma abordagem arqueológica aos símbolos, códigos e objectos culturais angolanos, com o intuito de desvelar histórias, tradições orais e estruturas políticas globais. Ao voltar a sua atenção para vestuário vernacular e mobiliário doméstico, Poulson explora a multiplicidade da vida quotidiana e dos costumes da sua cidade natal, Luanda — recorrendo a uma variedade de materiais frequentemente encontrados em mercados e casas angolanas, como cartão descartado, desperdícios têxteis, betão, publicidade e filme. Ao interpelar criticamente o discurso contemporâneo em torno do “Sul Global”, as esculturas e instalações de Poulson lançam nova luz sobre a circulação transnacional de imagens e da cultura material.