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MARIANA DIAS COUTINHO E COMO SE DEVERIA DESCENTRALIZAR A ARTE: A COMUNHÃO COM A ALMA DO LUGAR E DAS PESSOAS![]() INÊS FERREIRA-NORMAN2025-06-30![]()
Num dia bem quente, percorri 588km para ver a exposição PLANTAR AFECTOS da Mariana Dias Coutinho, artista oriunda e criada em Lisboa, mas que se transplantou para Santa Clara-a-Velha, Odemira, onde desde sempre teve laços. Conheci a Mariana neste concelho, em 2022, para onde ela se tinha mudado semi-recentemente (mesmo antes da pandemia), e identifiquei imediatamente bastantes semelhanças no nosso percurso, em particular a migração de uma capital para um lugar isolado. Migração esta que traz consigo todo um percurso profissional artístico transdisciplinar, e a determinação de nos ligarmos à terra, às suas gentes, e de integrar uma comunidade que o capitalismo nos vai roubando, com a descentralização das artes enquanto metodologia. Conduzir ao largo da serra de Monchique pelas montanhas vermelho barrento cortadas pela estrada, em contraste com o verde dos sobreiros e sarapintas de floresta antiga, fez-me sentir a força estética à qual Dias Coutinho se dedica. Os materiais naturais, com muita incidência no barro e na exibição dos seus pigmentos em tela crua, aliado á vegetação local, são qualidades distintivas da sua materialidade. E é mesmo na materialidade que tudo começa para Mariana, disse-me em entrevista. E as influências desta paisagem são muito claras no seu atual trabalho: a âncora da terra transforma-se em grés, em faiança, permanentemente solidificada através da cerâmica como técnica central; mas a ciclicidade da vida, o efémero, o movimento das pessoas, das plantas e do que fazer arte nos pode trazer enquanto praticantes, também se desdobra a partir dessa âncora telúrica. Dias Coutinho admite-se como alguém que gosta de estar com pessoas, por isso, viver num sítio isolado, alimenta ainda mais a vontade de se aproximar delas. Mesmo quando estava em Lisboa, estes dois temas já se aliavam na sua obra, como por exemplo em ‘Lide’ (2018), uma escultura/instalação retangular de chão composta por esponjas de lavar a louça em mosaico, alternadas por réplicas feitas em cerâmica. Estas esponjas – as originais – tinham sido recolhidas pelo bairro onde vivia e através de amigos, e com isso trabalhava sensações e impressões como a limpeza e o nojo, assim como também a sua materialidade: ‘nós confiamos nestes materiais e nas verdades construídas à cerca deles’ diz Coutinho, mas as esponjas enganam, pois são ‘antros de bactérias que estás a espalhar deliberadamente’ [1]. Note-se a transição de materiais sintéticos enquanto vivia na cidade, para uma rendição aos materiais naturais quando se muda para o campo, incluindo pessoas e os materiais delas: para se integrar na comunidade, Coutinho começa por auto-organizar uma residência artística no cabeleireiro local, em Saboia, o Salão Marta, onde recolheu, colecionou e catalogou os cabelos e histórias da população. Uma coleção que ainda que dedicada ao questionamento do que é o nojo, revela uma ambiguidade presente no material cabelo - entre a beleza e nojo - e possibilitou um arquivo representativo da comunidade através das oralidades e paleta de cores recolhida: o degradê de texturas e cinzas nos grisalhos, os louros de sangue ‘viking’ e os cor-de-rosa e azuis da adolescência retratam a aldeia. Os posicionamentos da sua obra tão única e notável, são algo que me interessam cruzar, e entendam-se por posicionamentos, a sua posição no lugar que é Portugal, e o posicionamento teórico-prático no âmbito artístico. A prática artística de Mariana Dias Coutinho tem-se desenvolvido mais recentemente através da participação comunitária, quer seja através do Plano Nacional das Artes, quer por outras parcerias que vai conseguindo estabelecer com várias associações e municípios, com principal incidência no Alentejo e Algarve. Uma prática social, pedagógica, participativa e comunitária que não deixa de ser autoral, como se pode ver no caso da obra que apresenta na sua atual exposição no Centro Cultural de Lagos, Centro de Ciência Viva e Biblioteca Municipal PLANTAR AFECTOS patente até dia 12 de julho. O trabalho artístico passou pela autoria, desenvolvimento e coordenação do projeto, criação e produção artística, sendo uma das suas fases a aprendizagem por parte dos alunos da escola secundária Júlio Dantas e membros do público, e a fabricação de peças cerâmicas. Numa fase mais inicial, trabalhou os afetos, a atenção, como a própria descreve em folha de sala: ‘A arte, aqui, não é apenas expressão: é gesto de encontro, de escuta e de cuidado.’ [2] E isto também são meios que se esculpem, que se moldam, que se trabalham artisticamente. Nem só de material físico vive o artista, especialmente quando se trata de uma visão como a de Mariana, a da mudança de um paradigma. Esta mudança de paradigma, prende-se muito com formas de transmissão de conhecimento, e com o papel da natureza nessa transmissão e nesse conhecimento. Em ‘Curandeiras entre Nós’, exposição no Espaço CRIAR (Centro em Rede de Inovação do Artesanato Regional), em Odemira, com colaborações com o Agrupamento Escolar de Saboia, e o Grupo Etnográfico Gentes do Alto Mira, que esteve patente em setembro e outubro do ano passado, assim como no projeto ‘Ervas Daninhas, Ervas Divinas’ parte do Plano Nacional das Artes com o Agrupamento de Escolas de Saboia, Coutinho abraça a missão de ‘provar que a arte também é veículo de aprendizagem, e que é transdisciplinar’ [3]. Mais ainda, um paradigma que ao reavivar tradições anciãs que têm valores a ser preservados, germinam novas estéticas contemporâneas e suscitam valores avançados. Algo que me emocionou na exposição PLANTAR AFECTOS, para além de conseguir sentir que os aspetos formais eram veículos de sensibilidades simultaneamente individuais e coletivas, a escolha das cores e o véu têxtil envolvente deu-me a sensação de estar a ser abraçada. Note-se que para haver mudança de paradigma tem de haver um processo de transição. Para Mariana, foi a partir da exposição ‘Oh Si Cariño’ na Galeria Sá da Costa onde expôs ‘Lide’, que começou a ficar mais presente uma reflexão sobre os vários sistemas de crenças, e que a meu ver, emergiu um pouco como modus operandi. ‘Em ‘Lide’ seria a crença no discurso científico das “verdades” dos materiais. Em ‘Curandeiras entre Nós’ sobre a crença nos vários veículos de cura sejam eles a mulher ou a planta curandeiras. Em ‘Ervas Daninhas Ervas Divinas’ de novo a planta medicinal associada ao culto do sagrado’ [4], diz Mariana em correspondência comigo. Coutinho é sem dúvida, uma das mulheres que Judy Chicago menciona no seu livro ‘Revelations’, pois o seu trabalho é um veículo para a continuação do conhecimento base, o conhecimento raiz. Aquele que nos faz humanos, seres deste planeta terra-água.
‘Em Revelations, a Deusa da criação, que passou o conhecimento às mulheres para nutrirem a vida, mas que permitiram que os homens a destruíssem, castiga-as com a vivência futura do patriarcado se desenvolver através do derrame de sangue, o seu poder enfraquecer e a sua sabedoria definhar. Até ao dia em que o mundo estará em cacos e a sua força e conhecimento serão necessários outra vez. Essa sabedoria será possível de resgatar porque haverão sempre guardiãs do conhecimento cujas vidas se dedicarão a esse propósito.' [5]
Não foi Judy Chicago, mas sim Úrsula K. Le Guin, que influenciou diretamente o trabalho de Coutinho com ‘A ficção como cesta: uma teoria’, que conta a estória da origem humana ao redefinir a tecnologia desde o conceito de saco, e não de uma arma de dominação. Subvertendo o modo linear e progressivo do techno-herói, a sua teoria propõe que: ‘antes da ferramenta que força a energia para fora, nós fizemos uma outra que traz a energia para casa.’ Antes da proeminência dos paus, espadas e das ferramentas heroicas que matam, a maior invenção dos nossos ancestrais foi o recipiente: o cesto de aveia, o ramo de medicina, a rede feita do próprio cabelo, a casa, o altar, o sítio que contém o que quer que seja sagrado. O recipiente, o que segura, a estória.’ [6] Eu iria mais longe, e diria que a tecnologia de saco mais primordial foi a gravidez, a cesta por excelência que nutre e dá vida. É, portanto, concordante que vejamos formalmente em todo o trabalho de Dias Coutinho, esta estratégia do segurar, do apoiar, do suster, e conter. As formas das plantas e dos elementos naturais e o cesto de Le Guin, fundem-se em interpretações do movimento da água e da terra, em que Ma Cibele (2024) e Magna Mater (2024), como iterações Ying-Yang de uma divindade só, são exemplos extraordinários. Chega ao ponto de integrar títulos de obras, por exemplo, ‘O que contém também oferece’ (2025) e ‘Quantas mãos sustentam uma planta’ (2025), que executou em estreita colaboração com o Mestre Manuel Ferreira. Esta fusão entre os elementos naturais e o cesto de Le Guin, senti-a eu também no abraço que PLANTAR AFECTOS me proporcionou.
'Quantas mãos sustentam uma planta' peça colaborativa com Mestre Manuel Ferreira e outros © Mariana Dias Coutinho
A mudança de paradigma já está em andamento, protagonizada por artistas como Mariana. Os afetos irão reinar. Desde a construção de ecossistemas co-imaginados, até à observação das estratégias formais das plantas, sinto que todos os partidos políticos e líderes corporativos deveriam fazer uma residência com a Mariana, para que trabalhassem a curiosidade e a colaboração, e plantassem afetos, de tal forma, que voltassem a sentir o valor do amor, do abraço, do recipiente. Pelo menos a curiosidade de verem que a arte é em si mesma um recipiente, que acolhe, que pode fazer muito pelas pessoas envolvidas. Mas a estes homens com tesão de serem heróis de lança em punho, já lhes caiu a máscara, e são autênticos retratos de Dorian Gray.
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O papel do artista cada vez mais se desdobra em aspetos de produção cultural, administrativa, curatorial, coordenação e logística. Longe vão os dias em que o papel do artista se resume ao atelier e à fabricação artística. Não avalio se é algo bom ou mau, pois são modalidades de ação que se prestam ao tipo de trabalho que cada artista quer desenvolver e ao nível de controlo que cada artista possa querer exercer; o que não é aceitável, é que, e quando, não seja essa a opção dos artistas, estes sejam obrigados a fazer tal ginástica por não haver nem infraestruturas, nem investimento em pessoal especializado, nomeadamente em estruturas camarárias onde se presta o acesso mais democratizado às artes. Ou seja, fazer uma exposição numa estrutura camarária que não tem curadoria, que não tem quem escreva um texto, que não autoriza que se furem as paredes, que não tem um fotógrafo profissional disponível, que não disponibiliza verba para um catálogo pós-exposição, é uma base rota, onde artistas se vêm obrigados a cumprir todos esses papéis para tapar os buracos, inclusive muitas vezes até o de angariar financiamento. Com um governo que tinha cortado um orçamento já miserável para a cultura no mandato anterior, e agora, incompreensivelmente, funde o Ministério da Cultura com o Desporto e a Juventude, tem mesmo de ser o poder autárquico a querer fazer a diferença para a cultura, para as artes. Mais absurdamente, no mundo da arte, este esforço em colmatar lacunas do sistema por parte do artista, é algo não valorizado, muitas vezes penalizado. Ou seja, um artista que apresente a mesma obra numa exposição em espaço camarário, não é visto com a mesma importância, o mesmo peso, o mesmo mérito de quando existe um curador, uma equipa de trabalho por detrás da conceção e execução da exposição. Claro que tem a sua lógica: se existem mais pessoas envolvidas, especializadas, acrescentam valor e o resultado da exposição provavelmente irá elevar a obra, e na realidade é isso que eu defendo para os espaços camarários; no entanto, o mundo da arte deveria reconhecer que o artista que expõe em espaço camarário teve de se desdobrar em todos esses papéis, quando não é essa a formação, nem o intuito de um artista ser artista, e consequentemente devia valorizar a obra e o empreendedorismo do artista em prol de onde o artista expôs. Com a exceção do Porto e de Lisboa (e Coimbra), que mantêm programas de arte contemporânea equipados [7], o resto do país mantém práticas exploradoras dos artistas. Começando por mencionar a flagrante falta de financiamento direto à produção artística, as câmaras municipais beneficiam muito mais da apresentação de artistas nos seus espaços, do que os próprios artistas. Mas de longe (!), pois os artistas proporcionam às câmaras a sua oferta cultural, de forma gratuita. Em contrapartida, o investimento que estas fazem, é quase nulo. Mantêm o espaço aberto, mantêm o espaço limpo, imprimem os cartazes, as folhas de sala, proporcionam uma montagem rígida, restringente e limitada, e organizam a abertura da exposição, muitas vezes encabeçada por vereadores da cultura que não frequentam outras exposições, nada sabem sobre o artista, a sua obra, e nada contribuem para a educação do público, na única oportunidade que proporcionam para o fazer. Todas estas são atividades diretamente relacionadas com o património do município, a sua manutenção e a publicitação de atividades a decorrer nos mesmos, inclusive a célebre oportunidade fotográfica. Ou seja, o investimento que as câmaras fazem, reverte a favor das próprias câmaras. Onde está o apoio ao artista? Não há curadores, não há fotógrafos para fotografarem a obra, não há programa que desenvolva o tema do trabalho do artista durante a exposição, não há tempo pago ao artista, não há nada! Há a exploração da produção artística, que nem sequer é bem-sucedida, pois mesmo em espaços gratuitos, como não há educação do público porque não há recursos humanos (e financeiros) envolvidos na produção de uma programação de arte contemporânea municipal, o público acaba por não valorizar a produção artística. Digo isto por muitas razões, entre as quais ter experienciado estas condições inúmeras vezes, assim como inúmeros dos meus pares, mas também por reação política: se quase 23% da população portuguesa votou num partido que diz que ‘defendemos uma cultura totalmente comprometida com a Nação, (...) [que] honre a sua missão de guardar a alma portuguesa’ [8] é porque na realidade – desses 23% - o problema é que ninguém sabe dar valor ao que cá se faz culturalmente, nem vai ver exposições em espaços gratuitos e democráticos como os camarários. Se o fizessem, reconheceriam tal alma portuguesa, pois são maioritariamente artistas que trabalham temáticas do lugar, das suas gentes, dos seus ofícios e de pertença que neles expõem. É completamente contraditório, que se fale no ‘renascimento da cultura portuguesa’, quando o que se passa é que não há o seu reconhecimento, através de, por exemplo, apoio localizado à produção quer de forma estrutural, quer diretamente ao artista. O enquadramento da política de direita com a ideologia patriota revela um profundo desconhecimento do que é a cultura que se faz em espaços descentralizados. Para quem se diz patriota, é uma profunda ignomínia tal desconhecimento, pois se se dessem ao trabalho de verificar, de frequentar exposições descentralizadas, iriam verificar que o lugar, a nossa paisagem, os nossos costumes e tradições, são possivelmente os temas mais abordados por artistas por todo o país. A alma portuguesa não precisa de ser renascida. Na realidade, fora o neo-patriotismo até está muito bem de saúde: os artistas persistem em expressá-la, em demonstrá-la das formas mais variadas, e é na liberdade de expressão que ela prospera. Precisamos é de apoios localizados, descentralizados, para equilibrar o que em contrapartida nós artistas providenciamos – sustemos, como o cesto de Le Guin – que são os benefícios que provêm da atividade artística para a sociedade, como tão eloquentemente o trabalho de Mariana Dias Coutinho o faz. ‘A beleza está nos olhos de quem a vê’, já dizia Platão, mas a beleza do trabalho de Coutinho é irrefutável: a harmonia com que conduz todos os elementos que o compõem são de uma expressão artística completa, madura, na qual contém todo o mundo, em que o material e o imaterial se encontram para revelar a alma do lugar e das pessoas, em estreita comunhão com a virtude do seu espírito e sagacidade artísticas.
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[1] Entrevista a Mariana Dias Coutinho, 17 de Junho 2025, Santa Clara-a-Velha. |