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ENTRE OS VOSSOS DENTES![]() MARIANA VARELA2025-05-30![]()
Sentarmo-nos diante de um quadro de Paula Rego não é experiência banal. Mas há quem passe por um bosque e não veja nada mais do que lenha para a fogueira, dizia Tolstoi. Já nos acostumamos a passar pelas coisas com os olhos embutidos de quotidiano e, tantas vezes, um quadro é só um quadro. Emoldurado sempre de forma similar, modificado, eventualmente, seu tamanho e suas cores, um desatento poderia não prestar atenção ao que lhe diz. Mas assim como escutar não é ouvir, olhar também não é ver. Do poema que inicia esse texto, foi extirpado pequeno verso, “Entre os Vossos Dentes”, para nomear a mais recente exposição da Gulbenkian, que reúne dois nomes de peso da arte moderna e contemporânea. Na esquina do século XX e XXI, Paula Rego e Adriana Varejão, agora em diálogo, confluem em um espaço comum por meio de uma curadoria que propõe a comunicação entre ambas. Pela dimensão das obras, pelos temas tratados e pela confluência atlântica, a exposição sugere não só o encontro de duas sensibilidades, mas talvez, eventualmente, o encontro de duas experiências histórico-estéticas sobre o destino cruzado desses dois países. Nesse sentido, a exposição nos coloca diante de duas artistas que expressam não só uma particular sensibilidade, mas uma temática alargada que alcança a dimensão de uma cultura e de um tempo. Trata-se, nesse sentido, de apanhar, ao mesmo tempo, história e estética pelas mãos das artistas. Paula Rego dispensa apresentações. Pintora portuguesa fundamental, pintou da segunda metade do século XX até o início desse século, forjando um vasto acervo de pintura realista, figurativa e abstrata. Paula Rego se debruçou sobretudo sobre as figuras, símbolos e retratos quotidianos da família e da cultura portuguesa. Concedeu especial atenção ao universo feminino, que retratou de maneira crua e realista em retratos quotidianos, mas também de maneira intrépida e impiedosa, jogando luz à violência, ao grotesco, ao disforme, aos corpos não normativos, às vísceras dos humores – não tendo deixado pedra sobre pedra sobre questões fundamentais como a questão do aborto. O sangue está quase sempre presente nos seus quadros. E mesmo no mais aparentemente banal retrato familiar, o que se sente é a presença de qualquer medo e qualquer crueldade. Rego expressou um certo corte grotesco para evidenciar as formas do real, apresentando a mulher, a família, o simbólico, o religioso e o sexual de uma perspetiva ao mesmo tempo realista e disforme, crua e diabólica, verdadeira e cortante. Cavou com a unha as feridas e as asas que deram forma ao imaginário de um país, dando especial atenção ao universo feminino e à violência que ronda à volta desses corpos.
Paula Rego. O espantalho e o porco (2005).
Os quadros de Rego na exposição são exemplares da vastidão da sua obra, indo de quadros mais realistas e figurativos até quadros mais abstratos. Sem importar a forma, a pintora não deixa pedra sobre pedra no que diz respeito à questão da violência. Se quadros como “Branca de Neve e a Madrasta (1995)” ou “A Mãe (1997)” aparecem como exemplos de uma fase mais figurativa, outros, mais abstratos, convocam o vidente para, na confusão das cores, encontrar nos títulos a clareza do assunto: ”Quando tínhamos uma Casa de Campo dávamos festas e depois matávamos os pretos” (1961) ou “Salazar vomitando a Pátria” (1960). Nesses quadros dotados de uma abstração quase infantil, que chegam próximos do pesadelo, a pintora revela, talvez pela desconfiguração das formas, a violência mais brutal. Porque é da natureza da violência esse rasgar das formas, talvez seja precisamente aquém da linguagem e da figuração - na incapacidade de figurar - que se expressam as violências mais absurdas. Os limites da minha linguagem são os limites do meu mundo, dizia Wittgenstein. E há mesmo qualquer coisa de fora-do-humano nessas obras, algo que escapa à linguagem porque excede em violência e brutalidade, excede como ficção a realidade. É sobre esse excesso e essa violência, precisamente, que a exposição se debruça. É claro que o ponto incontornável, a chaga principal desse encontro é o colonialismo. Mas ao mergulhar no colonialismo, encontramos ainda muita coisa. O salazarismo, a violência crua, a conjunção pátria-família, a animalidade e a construção do feminino são algumas delas. São esses, talvez pudéssemos dizer, os temas responsáveis por reunir essas duas artistas na Fundação Gulbenkian. Usando mais do que o pincel, a artista plástica brasileira Adriana Varejão dá forma, figura, e contorno a outras chagas, contando outras histórias. Varejão produz obras de médio e grande porte, à exceção de alguns trabalhos de menor escala no início da exposição, como testemunhas-oculares. A própria artista está figurada nessa obra, ora como índia, ora como Moura. E sem um dos olhos – eventualmente precisamente por causa disso – aparece como aquela que vê e testemunha a história. O aparecimento dessas figuras historicamente marginais não é banal – nem poderia. Não é só pela própria imagem da artista, que figura ora como índia, ora como moura, e pelo seu olhar – mas pelo quê de profético ou ameaçador que essas figuras revelam. Índias ou mouras, extirpadas e feridas – é por meio do seu olhar que podemos alcançar uma outra versão dos factos, contar uma outra história.
Adriana Varejão, Testemunhas oculares X, Y, Z. (parte). Óleo sobre tela, porcelana, fotografia, prata, vidro e ferro, 1997.
Boa parte do trabalho plástico de Varejão e a escolha daquilo que figura, entretanto, faz com que a artista aplique uma outra forma de expressar a violência e a ferida, que não é figurativa ou humana. Grande parte das obras de Varejão exploram a tensão entre o orgânico e o inorgânico por meio do lento aparecimento do sangue e das vísceras por detrás dos azulejos e das paredes. Ainda que sejam os azulejos portugueses e as figuras sacro-coloniais que estejam expostas em boa parte dessa vida inorgânica dos objetos, não deixando dúvida da localização dos rastros de sangue, o seu trabalho tem um carácter de abertura ou de potencial abstração quando age no revelar contínuo do sangue e dos órgãos escondidos detrás das paredes. Essa tensão entre os objetos e a vida orgânica, que é a mesma tensão entre o oculto e a exposição, sugere qualquer coisa sobre a própria feitura das coisas materiais. Como uma espécie de revolta dos objetos, a artista dá forma à vida íntima inscrita na sua confecção, sugerindo ora a necessária vinculação entre a humanidade e os seus objetos, seus projetos, seus edifícios, ora a suspeita de uma vida vibrante da matéria inorgânica, que pouco a pouco nos assalta com as suas vísceras e a sua história.
Adriana Varejão, Azulejaria Verde em Carne Viva, 2000. Óleo sobre tela e poliuretano em suporte de alumínio e madeira.
Precisamente essa quebra da distinção entre material-orgânico, entre oculto-exposto, ou, ainda, precisamente essa tão bem trabalhada tensão confluente é o que torna Varejão uma das artistas plásticas mais importantes da contemporaneidade. Seja pelo domínio técnico, seja pela própria escolha das figuras, em determinado momento do encontro com suas obras não se sabe mais se estamos diante de uma obra de arte ou se diante da própria violência. O impacto estético é tão forte que, como acontece com o amor, as noções de tempo, espaço, de categoria – o nosso pensamento, enfim – vai até ao fundo de nós mesmos e estamos diante da violência ela mesma. Nesse bosque não há lenhas para a fogueira: só verdadeiras árvores e verdadeiras raízes que comunicam connosco no nosso humanismo selvagem, na nossa experiência interior. E digo isso porque a relação colonial, aqui, mais do que colocada, adquire uma certa universalidade pela figuração da violência. O primeiro quadro da exposição, aquele que nos espera à chegada, é “A primeira missa no Brasil” (1993) de Paula Rego, em que figura uma garota grávida, uma missa sendo rezada ao fundo e a panaceia quotidiana e simbólica de copos-de-leite, perus e uma mulher ensanguentada em miniatura. Nos trabalhos de Varejão, os azulejos portugueses, as índias extirpadas, essa violência às vezes mínima, às vezes máxima – tudo remete para essa Conversa Transatlântica que foi forjada pela violência e pela brutalidade. Mas escovar a história a contra-pêlo, de repente, torna-se uma experiência física. Daquela que teve seu olho extirpado figura não só uma contra-narrativa – sempre ocultada pelos dirigentes do mundo. Figura uma abertura, uma luminescência e uma respiração. O trabalho de Varejão e de Rego alcançam, nesse enlace ao mesmo tempo histórico e estético, precisamente aquilo que esperamos do trabalho do artista: a mediação, como do anjo, entre o humano e o tempo, entre as ideias e as formas. A carne-viva de que é feita a substância desse encontro é a violência obscena que atravessa uma cultura e uma história. Essas artistas que se dedicaram a pintar e produzir sobre aquilo que está presente no substrato da nossa cultura não se furtaram a mergulhar, por isso, no horror e no trauma. Assim, das mãos dessas artistas, há, por um lado, o mostrar figurativo de um real distorcido e, por isso, excessivamente real. Varejão opera, com domínio técnico e simbólico excecional, a reconciliação necessária para nos retirar da experiência quotidiana e nos colocar no fluxo histórico e, por isso, numa espécie de eternidade. Rego, por seu turno, nos convoca a olhar a verdadeira carne do quotidiano, com sua deformidade e seu lado obscuro. Assim, com esse diálogo, mais do que contar-nos algo que, eventualmente sabemos ou não sabemos, pela particularidade de um determinado olhar, a exposição consegue, pela confluência perfeita das tensões originárias, dizer-nos tudo, sem precisar dizer nada.
“Bombas limpas, disseram? E tu sorris / E eu também. / E já nos vemos mortos / Um verniz sobre o corpo, limpos, estáticos, / Mais mortos do que limpos, exato/Nosso corpo de vidro, rígido / À mercê dos teus atos, homem político. / Bombas limpas sobre a carne antiga. / Vitral esplendente e agudo sobre a tarde. / E nós na tarde repensamos mudos / A limpeza fatal sobre nossas cabeças/ E tua sábia eloqüência, homens-hienas / Dirigentes do mundo.”
Mariana Varela
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