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JEAN-LUC GODARD“Voyage(s) en utopie, Jean-Luc Godard, 1946-2006”, à la recherche d`un théorème perdu![]() CENTRE POMPIDOU Place Georges Pompidou 75191 Paris 24 ABR - 14 AGO 2006 ![]() Le cinéma qu’il y aurait: A agência de viagens de Jean-Luc Godard![]() As impressões anotadas são lacunares, e quando a viagem parece passar como um rio diante daquele que a fez e lhe surge na imaginação como uma sequência contínua, então sentimos como é impossível uma verdadeira comunicação. O narrador tem de apresentar tudo de forma fragmentária: como há-de daí nascer na alma do terceiro uma totalidade Goethe, Viagem a Itália A imagem é uma criação pura do espírito, ela não pode nascer duma comparação, mas da aproximação de duas realidades distantes. Quanto mais longínquas e justas forem as relações que se estabelecem entre essas duas realidades, mais a imagem será forte. Duas realidades que não tenham nenhuma relação não podem ser aproximadas de modo útil […]. Uma imagem não é forte porque é brutal e fantástica, mas porque a associação das ideias é longínqua e justa. Pierre Reverdy, JLG/JLG Jean-Luc Godard revolucionou não apenas o cinema (o que se entende por cinema), mas o olhar do século XX sobre as imagens. Apoiando-se na teoria estética marxista – na dialéctica entre o plano formal e o sociológico, “não há arte revolucionária sem forma revolucionária” (Maiakovski) –, e nos princípios de análise semiológica desenvolvidos por Barthes a partir da década de 50 – os diferentes elementos de uma imagem podem ser interpretados como signos de uma linguagem visual, donde a significação da imagem corresponder à sua leitura –, Godard reivindica a conversão do olhar em ver e do ver em agir: “– La bourgeoisie fabrique un monde à son image (Marx). […] – Camarades, commençons par détruire cette image.” (British Sounds, 1969). No entanto, a acção – que se radicalizaria com a criação do Groupe Dziga-Vertov (1968-1972), constituído por Godard e por militantes maoístas – não tem validade se não estiver ligada à reflexão – “Le temps de l’action est fini; le temps de la réflexion vient de commencer.” (Le Petit Soldat, 1960). Por isso, e em estreita relação com todas as formas de actuação revolucionária, o cinema de Godard comporta invariavelmente uma dimensão ensaística, corolário de uma pesquisa metacinematográfica: apenas pela avaliação crítica do cinema se criará o cinema, le cinéma qu’il y aurait. Pensar o cinema na sua especificidade é, certamente, pensar a articulação de imagens, sons e palavras na produção de um discurso, mas uma reflexão aprofundada e consequente não pode furtar-se à questionação do cinema – o mais importante instrumento de propaganda do século XX – na sua dimensão política. Em Histoire(s) du Cinéma (1988-1998) Godard defende uma dupla tese: por um lado, integra a História do Cinema no âmbito mais alargado da História da Arte – o cinema é herdeiro dos movimentos artísticos (impressionismo) e das realizações técnicas (fotografia) do século XIX –; por outro, apresenta implicitamente o argumento de que o cinema é ao mesmo tempo uma Arte e uma História – o cinema regista tanto o mise-en-scène como os factos, é a única forma artística a existir como “fantasma vivo”. Sem consciência do seu poder documental (mas também arqueológico e psicanalítico), o cinema falhou, segundo Godard, o encontro com a História – “L’achèvement s’est fait au moment où on n’a pas filmé les camps de concentration. À ce moment-là le cinéma a totalement manqué son devoir.”–: a criação estética (e os seus agentes) têm pois rigorosas responsabilidades políticas, têm o dever de potenciar a diferenciação entre uma imagem e uma imagem justa – “Ce n’est pas une image juste, c’est juste une image” –, de posicionar-se claramente contra todas as formas de demagogia – “Tourner un film politique n’est pas tourner politiquement un film” –, pela efectiva intervenção e problematização crítica que, em oposição à máquina do poder e às suas representações, é a utopia de todos os tempos: a História projecta-se na tela como mise-en-abyme. “Voyage(s) en utopie, Jean-Luc Godard, 1946-2006, à la recherche d’un théorème perdu” não é uma exposição sobre JLG, mas uma exposição de JLG que acompanha a primeira retrospectiva integral da sua produção fílmica (cinema e vídeo), a decorrer no Centre Pompidou. Trata-se de uma viagem desconfortável pelas utopias políticas do cinema (e de Godard) – O que é impossível filmar? O que é urgente ser filmado? Terá Eisenstein conseguido filmar “O Capital” de Marx? –, pela história do cinema e adjacentes paradoxos da museificação (sendo clara a referência ao Musée du Cinéma, criado por Henri Langlois em 1972). “Voyage(s) en utopie” é também um resultado de projectos frustrados, substitui uma exposição mais ambiciosa, “Collage(s) de France, archéologie du cinéma, d’après JLG” (o título referia-se à recusa, pelo Collège de France, da proposta de um curso de Godard sobre as relações entre a história do cinema e a história do século XX), que se preparava desde 2003, e que em Fevereiro de 2006, como indica um cartaz afixado à entrada, teria de ser abandonada por “dificuldades artísticas, técnicas e financeiras”. A exposição é um ensaio de espacialização das questões do cinema. Dialogando com a tradição das artes plásticas, “Voyage(s) en utopie” é uma construção que se estende por três salas (intituladas “Avant-hier – Avoir été”, “Hier – À voir”, “Aujourd`hui – Être”), uma enorme colagem de citações e imagens, uma assemblage de diferentes elementos – quadros de Matisse e da Staël (da colecção do museu, os únicos objectos “originais” numa exposição onde todas as imagens se re-produzem), écrans de televisão a passar filmes ou fragmentos de filmes, fotografias, plantas, tábuas, tijolos, cabos eléctricos, textos, pequenas frases e palavras de ordem riscados a grafite ou impressos, móveis (dispostos por compartimentos: cozinha, sala, quarto, escritório), livros pregados nas paredes, no chão, nos móveis, etc. – entre os quais, ocupando um lugar central na primeira sala, se encontram as maquetes de “Collage(s) de France” (a exposição que não se realizou e que é assim trazida para dentro da exposição) e ainda dois comboios em miniatura que descrevem um movimento pendular atravessando um túnel aberto na parede que separa as duas primeiras salas (uma referência à chegada de um comboio à Gare de la Ciotat, primeira projecção pública de imagens em movimento em França? uma metáfora do cinema, “ce merveilleux petit train électrique”, glosando Orson Welles?). É ao visitante – demitido do seu papel de espectador estático na sala de cinema e transformado em turista – que cabe seguir viagem pelos processos de construção do pensamento cinematográfico, detectar os ecos e os conflitos entre as imagens e fazer a montagem dos fragmentos. Segundo Diderot, a viagem é, na sua descontinuidade radical, a metáfora estética por excelência; passeando-se pelas ruínas da civilização helénica, Goethe reconstitui as paisagens descritas por Homero; em “Viagem a Itália”, de Rossellini (um dos filmes convocados por Godard na exposição), Ingrid Bergman procura, em Nápoles, imagens ascéticas do passado e por todo o lado se vê confrontada com o espólio das guerras, com a perturbação do presente; mas foi sobretudo o cinema que deu a ver, projectada em grande, a diversidade do mundo, realizando assim o sonho de “Le Voyage”, de Baudelaire. Só a reprodução das imagens da realidade permite a confrontação do absolutamente diverso e longínquo, assim o propõe o museu imaginário de Malraux, assim o mostra a arqueologia (o tribunal?) da memória que Godard nos apresenta. Na última sala da exposição, “Aujourd`hui – Être”, as memórias (e o cinema) têm de se medir com o presente, sempre problemático: a viagem integra as imagens que passam à frente da janela (turistas na praça, vendedores de crepes e refrigerantes, malabaristas, tendas de mendigos nas traseiras, a igreja de St. Merry). E como o holocausto não é um acontecimento que se tenha extinto numa data (nem resolvido na falta de documentação) é preciso estar atento para não voltar a perder o comboio da História. ![]()
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