|
COLECTIVAPODE O MUSEU SER UM JARDIM?MUSEU DE SERRALVES - MUSEU DE ARTE CONTEMPORÂNEA Rua D. João de Castro, 210 4150-417 Porto 06 FEV - 13 SET 2015 No filme Jardim (2007), o realizador João Vladimiro presentifica, em certos momentos, a possibilidade de abstractização do jardim, uma agudização da sua índole mais anónima e intrínseca, apelando à sua condição mais nativa. Neste filme, concebido inteiramente com as imagens do Jardim da Fundação Gulbenkian, o reconhecimento deste espaço irrompe, particularmente, nas imagens dos trabalhos de conservação do jardim dirigidos por Gonçalo Ribeiro Telles, sendo estas as imagens que melhor inscrevem a relação entre o exterior e o interior – a intertextualidade existente entre o museu e o jardim: os dois lugares convocam num espaço um outro espaço e obedecem a uma visão de percurso e organização, onde cada peça é meticulosamente colocada em relação com o lugar e com as relações que estabelece de confronto ou parentesco. O jardim é uma intersecção plena entre o humano e a natureza, congregando uma volubilidade (uma compleição intrinsecamente natural) e uma artificialidade (um temperamento humano). O jardim é, portanto, a representação de um ordenamento racionalmente humano do mundo natural, reflectindo um certo instinto de propriedade – através de um sentido de controlo, dependência e recriação – que contraria o estado, naturalmente, indomesticado da natureza. Pode o Museu ser um Jardim?, exposição com curadoria de João Ribas para o Museu de Serralves, é uma expressão precisa destes pressupostos. Ainda que o título da exposição se constitua no modo interrogativo, a intenção do curador está claramente sitiada na proposta de uma visão do museu enquanto jardim: um lugar de deambulação, experiência, sinestesia e contemplação de diferentes formas, cores e objectos conciliados num espaço. A exposição parte, sobretudo, das obras pertencentes na Colecção do Museu de Serralves, apresentando-as numa dupla forma expositiva que irá alterar-se conforme as estações do ano (Primavera-Verão e Outono-Inverno). A exposição cursa questões alegóricas e estéticas associadas ao jardim, inscrevendo representações híbridas entre a natureza e a arte, uma relação presente desde sempre num plano simbólico e estético. Neste sentido, Pode o Museu ser um Jardim? dialoga intimamente com o espaço desenhado pelo arquitecto Álvaro Siza Vieira, que estabeleceu uma correspondência persistente entre o interior e o exterior, transpondo a extensão do jardim para o volume interior do museu. Esta interlocução permite um contacto visual constante com o ambiente natural circundante, através de portas e janelas que enquadram pontos de vista imprevistos sobre a paisagem. Neste sentido, se o percurso de Pode o Museu ser um Jardim? cruza-se extensamente por espaços fechados sobre o white cube, o fim do caminho desemboca numa última sala, caracterizada pelas suas grandes janelas, onde se reencontra o parque. Um percurso que ao convocar uma leitura construída sobre a natureza, ganha um impulso maior naquela última sala em que o mundo natural transpõe o espaço e o real se intensifica e potencializa. Nesta exposição muitas das obras versam questões como a paisagem e a natureza – seja através do uso de materiais naturais ou de representações paisagísticas –, embora outros trabalhos convoquem diferentes dimensões inerentes ao jardim (e ao museu), como a ideia de percurso e espaço. Para além das obras da colecção, foram adicionadas peças de Hans Haacke e Louise Lawler, dois trabalhos que partem, precisamente, de elementos ligados à natureza para questionar o sistema museológico. Em Grass Grows (1967/68) – um monte de terra onde foi semeada erva que, ao longo da exposição, vai germinando –, Haacke circunscreve questões relacionadas com o carácter expositivo dos museus e o conceito de autoria artística. Grass Grows, um sistema com carácter irrepetível e vida própria, contrapõe-se ao fluxo temporal e autoral do museu, afirmando um modo de crescimento e renovação biológica, que sendo um processo natural se transforma num processo museologicamente narrativo. Já, na peça sonora de Louise Lawler, Birdcalls (1972-81), ouvimos o trinado de vários pássaros que aparentemente entoam nomes de artistas afamados, um chamamento individual feito apenas a artistas masculinos. Lawler coloca, sarcasticamente, o acento crítico sobre o estatuto hierarquizado dos artistas, abordando também as possibilidades do sistema museológico, na medida em que este trabalho foi gravado em cassete e distribuído por correio. Neste contexto, podemos sublinhar a presença de outras abordagens ao binómio obra-museu, como Caixa de Baratas (1967) de Lygia Pape, uma caixa de acrílico com fundo espelhado, onde estão cientificamente alinhadas uma série de baratas embalsamadas. O agrupamento numa malha geométrica, e a sua colocação num contexto museológico, retiram às baratas o seu forro de aversão, conduzindo a uma reflexão sobre a instrumentalização da arte pelas instituições. Ana Jotta evoca, igualmente, a ideia de coleccionismo na obra Zambujeira do Mar (2000), onde metalizou uma série de objectos desgastados que foi recolhendo da praia, concedendo-lhes uma perpectuação e regeneração. Nesta obra, o acto de coleccionismo expede tanto para a recolha das peças, como para uma subversão do conceito de autoria, pois é dada autonomia a cada curador para agrupar as peças conforme entender. Pode o Museu ser um Jardim? interpela, particularmente, a questão do jardim associado à paisagem, duas dimensões intrínsecas e que se assemelham enquanto extensões de construção cultural. A paisagem é dita na aguarela Sem Título (2005) de Raoul Keyser, que embora brote de uma composição aleatória, adquire uma dimensão ambiguamente paisagística; ou, então, na pintura Ohne Titel (Landschaft mit Pfeilen) (1974) de Anselm Kiefer, onde a paisagem desponta interrompida por várias setas, elementos gráficos que de forma hesitante poderão conformar diversas importâncias, como o movimento cíclico. Podemos ainda pronunciar a exploração da percepção do mundo natural em Structure Piece – Leaves (1) (2003), obra de Jan Dibbets, que inicia a exposição, apresentando uma sequência de fragmentos fotográficos de imagens de folhas que, montadas em linha horizontal e descontextualizadas num grande plano, concebem um novo horizonte; a convocação de materiais efémeros e deterioráveis nas pinturas feitas sobre papel de jornal, Golden Web (1975) e Potato (1975), de Paul Thek, que observa a transitoriedade da vida aportando em representações e materiais naturalmente frágeis e degradáveis; ou, de forma esperada, a representação dos movimentos associados à “land art”, pelo tríptico de Robert Smithson, Crator (1966), Crator with Dislocated Radiation (1966) e Crator with Reflected Numbers on the Hexagonal (1966), uma série de medições e mapeamentos de crateras, feitos em papel milimétrico, que embora representem o ponto mais alto do vulcão de onde este expele a sua matéria, aqui permite-nos um olhar em profundidade, remetendo para um movimento involutivo, que se enrola para dentro. A visão e o movimento – dimensões persistentes na experiência do museu e do jardim – são formas próprias do homem se relacionar com aquilo que o rodeia, supondo uma implicação mútua entre o espaço e o sujeito. Assim, a partir da modalidade cinética e do trajecto, Pode o Museu ser um Jardim? parte da errância física e mental, para se centrar numa fenomenologia do lugar e do percurso. Neste sentido, a exposição apresenta obras do “walking artist” Hamish Fulton, que em The Outlines of Seven Stones for: Seven Days Walking Seven Nights Camping (1994) e Outline of a Mountain Rock from the Basque Pyrenees (2001) constrói um registo dos percursos que vai fazendo, agregando a experiência da arte à experiência das suas caminhadas na natureza; ou, então, as obras Steps (1971), 1m x 1m (1986) ou A Distance of 336 Steps (2000) de Stanley Brouwn, um artista que inscreve constantemente o acto de caminhar no seu trabalho, procurando porém eliminar o seu próprio rastro, que passa a ser recriado pelo visitante do museu, uma desmaterialização espacial e autoral como forma de emancipação de si mesmo e fusão com o espaço. Será ainda pertinente frisar dois trabalhos que, tendo como referente uma natureza humanizada – a jarra de flores e o jardim –, actuam sobre questões e médiuns distintos. A série Sombras à Volta de um Centro, dos anos 80, de Lourdes de Castro, substancia-se numa perscrutação sobre a sombra, um registo que se presentifica de forma etérea e fugidia, envolvendo realidade e ilusão. Nesta série de desenhos, a artista expõe à luz várias jarras de flores, inscrevendo posteriormente o contorno da projecção das suas sombras. A imagem torna-se, simultaneamente, a imagem de si e a representação transfigurada de uma outra imagem, presentificando a ausência, através do movimento da memória e da imaginação sobre a clareza do real. Já, no filme O Jardim (2005), Vasco Araújo apresenta imagens do Jardim Colonial de Lisboa – uma convocação miniatural do “império” colonial português – um espaço de relevo na Exposição do Mundo Português (1940), e, que após o 25 de Abril, passar-se-ia a chamar Jardim Tropical. A partir de enunciações da mitologia e do colonialismo, as estátuas de negros presentes no jardim adquirem vozes a partir da leitura, por parte de afro-descendentes, de excertos da Ilíada e da Odisseia de Homero. Concebendo um diálogo do passado com o presente, o artista reflecte, criticamente, a situação pós-colonialista e a substância redutora relativa a termos como “colonial” e “tropical”. O Jardim interpela, identicamente, a condição do estrangeiro e a relação com a diferença, implicando reflexões sobre a identidade, a política e a sociedade. Ainda que a exposição Pode o Museu ser um Jardim? cumpra o intento interrogativo a que se propõe, poderia alongar-se numa reflexão ainda mais aprofundada sobre a simbologia menos evidente do jardim, como chega a fazer quando convoca os conceitos de autoria e coleccionismo. Pode o Museu ser um Jardim? é, porém, uma forma estimulante de pensar, auto-referencialmente, as potencialidades temáticas da colecção de um museu, e o próprio conceito de curadoria, autoria e espaço expositivo. Os atributos semióticos do jardim assomam enquanto território de convergência de várias questões, aludindo a uma humanização do jardim ou naturalização do homem, tal como refere simbolicamente a pintura Sem Título (1972) de Luís Noronha da Costa, onde umas paredes brancas sem tecto, que parecem replicar os muros de um museu, visibilizam a paisagem exterior permitindo que a natureza irrompa para o interior do espaço arquitectónico.
Sara Castelo Branco
:::: [a autora escreve de acordo com a antiga ortografia]
|